domingo, 29 de setembro de 2024

Não somos donos do bem ou da verdade

 

Uma das lições significativas da liturgia do 26.º domingo do Tempo Comum no Ano B é que ninguém é dono exclusivo do bem e da verdade, mas que tem de ser capaz de reconhecer e de aceitar a presença e a ação do Espírito de Deus através das pessoas de boa vontade que, independentemente da situação e enquadramento eclesial, são sinais do amor de Deus no Mundo.

primeira leitura (Nm 11,25-29), a partir de um episódio ocorrido enquanto o Povo de Deus caminhava pelo deserto, convida a reconhecer e a acolher a ação do Espírito de Deus na vida dos homens, ainda que se concretize através de pessoas “improváveis”. O crente aceita sempre a iniciativa de Deus, seja como for que ela se apresente, e acolhe-a de coração agradecido.

O Livro dos Números, assim designado, na versão grega da Bíblia Hebraica, pelas listas de censos, de registos e de outras listas (começando inclusive com os números do recenseamento do Povo de Deus, tribo por tribo, feito por Moisés a mando de Deus), apresenta um conjunto de tradições sobre a estada no deserto dos hebreus libertados do Egito, tradições que os teólogos das escolas javista, elohista e sacerdotal utilizaram com fins catequéticos. Mais do que uma crónica de viagem do Povo de Deus desde o Sinai até às portas da Terra Prometida, o Livro dos Números é um livro de catequese a mostrar que a essência de Israel é ser povo reunido à volta de Deus e da Aliança, com os hagiógrafos a descrever como, por ação de Javé, o grupo de nómadas libertado do Egito foi ganhando uma consciência nacional e religiosa, até chegar a formar a “assembleia santa de Deus”. Israel faz uma caminhada espiritual, durante a qual se vai libertando da mentalidade de escravo, para adquirir a cultura de liberdade e de maturidade.

O episódio que a liturgia do 26.º domingo comum selecionou como primeira leitura acontece pouco depois da partida do Sinai. Em Tabera, o povo revoltou-se por não ter comida em abundância e murmurou contra Javé. Moisés, cansado e desiludido, queixou-se ao Senhor de não aguentar o fardo da condução deste povo rebelde. Então, Javé propôs a Moisés escolher setenta anciãos que, ungidos pelo Espírito de Deus, o ajudariam nas tarefas inerentes à condução do Povo.

Os anciãos (em Hebraico: “tzequenîm”) eram uma instituição no universo político e social do Povo de Deus. Eram os chefes de família que formavam, em cada cidade, um conselho e que presidiam à comunidade. Tinham prestígio ímpar e participavam, ativamente, nas deliberações e tomadas de decisão importantes. Alguns veem nesta instituição o embrião do futuro Sinédrio.

Ora, o livro faz remontar à época do deserto a instituição dos anciãos como referência comunitária: por indicação de Deus, foram designados 70 anciãos para ajudar Moisés na governação. É número simbólico que expressa a totalidade: eles representam a totalidade do povo.

Fortemente sugestiva é a descrição da forma como se deu a designação dos anciãos: Deus tirou uma parte do Espírito que estava em Moisés e derramou-o sobre os designados. Moisés possuía a plenitude do Espírito, enquanto dirigia sozinho o Povo de Deus; porém, quando foi dividida com os 70 anciãos a responsabilidade da governação, o Espírito que repousava em Moisés foi repartido por todos. A bizarra descrição dá a ideia da unidade do Espírito e da partilha do mesmo Espírito por todos aqueles que Deus chama a uma missão em prol da comunidade.

A presença do Espírito nos anciãos patenteia-se na capacidade de profetizar. Contudo, o exercício profético destes anciãos não se traduz na comunicação à comunidade de mensagem escrita ou falada, na linha dos profetas pregadores e escritores que Israel conhecerá mais tarde, mas exprime-se em manifestações extáticas percecionadas pela comunidade como sinais da presença e da força de Deus. Com os seus gestos e palavras arrebatados, os anciãos mostram ao Povo que Deus está ali; e isso é garantia de que Deus continua interessado em Israel e em conduzir Israel.

A saga tem, porém, um epílogo inesperado: Eldad e Medad, dois anciãos que faziam parte da lista dos escolhidos, mas que não estavam presentes aquando da receção do Espírito, também profetizavam. E Josué, ajudante de Moisés, interpretando isso como usurpação de competências lesiva da autoridade, pede a Moisés que lhe ponha cobro. A resposta de Moisés a Josué é de um homem magnânimo, livre, de espírito aberto: “Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta e que o Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles!” Moisés mostra não estar preocupado em guardar para si os mecanismos de controlo do poder; a sua preocupação é que o povo faça uma experiência forte de Deus e sinta a presença e a ajuda de Deus. Assim, quantos mais membros do Povo experimentarem e sinalizarem a presença de Deus, mais facilmente a comunidade irá atrás de Deus e das suas propostas.

O carisma profético não é o bem de um líder; é dom que Deus distribui como entende. Moisés aceita que Deus aja onde quer, como quer, e através de quem quer; aceita que Deus escolha os seus colaboradores, até os mais improváveis, para concretizar o seu desígnio. O desejo de Moisés – um Povo inteiro que recebe o Espírito de Deus e que é animado por Ele – concretizar-se-á no Pentecostes, quando o Espírito de Deus se derramar sobre a totalidade do Povo da Nova Aliança.

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No Evangelho (Mc 9,38-43.45.47-48), Jesus desafia os discípulos a porem de lado os interesses pessoais e de grupo e a viverem na lógica do Reino. Exorta-os a não serem comunidade fechada, sectária, intransigente, ciumenta, arrogante, e a acolherem, de braços abertos, todos os que se dispõem a trabalhar por um Mundo mais humano e mais livre; exorta-os a não excluírem da dinâmica comunitária os pequenos e os pobres; e pede-lhes que arranquem da própria vida todos os sentimentos e atitudes incompatíveis com a opção pelo Reino.

Começamos por ouvir João a expor a Jesus o que acontecera um pouco antes e a forma como os discípulos lidaram com isso: “Mestre, nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome e procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco”. É como no Livro dos Números.

Na opinião de João, a atuação dos discípulos parece justificável: a utilização do nome de Jesus por parte de alguém que não pertence ao grupo é abuso a não tolerar. João está muito decidido e cheio de certezas. Nem sequer pede a opinião de Jesus; apenas O informa de algo que os discípulos decidiram e fizeram. João fala de forma impositiva e arrogante, como se o grupo tivesse o direito de tomar as decisões que houvesse por bem, sem consultar o Mestre. Mais grave ainda: a atuação dos discípulos apresenta laivos de autoritarismo e de sectarismo, em total contradição com a proposta de Jesus. De facto, a ação do exorcista anónimo não beliscava o “bom nome” de Jesus, nem prejudicava o projeto do Reino; e mais importante do que o prestígio do grupo é a libertação dos seres humanos das cadeias que os impedem de ter Vida.

Tudo se percebe, se considerarmos que os discípulos andavam obcecados com os primeiros lugares, com as honras, com os privilégios, com os sonhos de poder e domínio. Tinham apostado tudo no seguimento de Jesus e queriam ter o exclusivo de Jesus, em compensação do investimento feito. Por isso, não estavam dispostos a partilhar Jesus com eventuais concorrentes. Aquele desconhecido que agia em nome de Jesus poderia revelar-se um concorrente que lhes disputaria os primeiros lugares na estrutura política do Reino. Portanto, era preciso neutralizá-lo. Os discípulos de Jesus estavam preocupados apenas em proteger os interesses pessoais ou de grupo. A sua atitude, que grassa hoje, na Igreja, mostra sectarismo, intransigência, intolerância, ciúmes, mesquinhez, inveja – valores incompatíveis com o dinamismo do Reino.

Jesus, com paciência, procura levar os discípulos a ultrapassar esta visão sectária e egoísta: “Não o proibais, porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome e, depois, dizer mal de Mim. Quem não é contra nós é por nós.” A Jesus só O preocupa a libertação do homem de tudo o que o desumaniza e lhe rouba a Vida. Quem luta pela justiça e faz obras em favor do homem, está do lado de Jesus, embora não esteja formalmente em determinado grupo. Quem for capaz de fazer qualquer gesto em favor de um irmão, pertence à comunidade do Reino e está vinculado a Jesus.

A comunidade de Jesus não pode ser fechada, exclusivista, monopolizadora, que amua e sente ciúmes quando alguém de fora faz o bem; nem pode sentir-se atingida pelo facto de o Espírito de Deus atuar fora das fronteiras institucionalmente definidas. Deve, antes, ser comunidade que põe, acima dos seus interesses, a preocupação com o bem do homem e ser comunidade que acolhe, apoia e estimula todos os que atuam em favor da libertação dos irmãos. O fator decisivo deve ser o bem dos irmãos, não a defesa de interesses pessoais ou corporativos.

Depois disto, a lição de Jesus orienta-se para outras temáticas. De facto, Marcos junta diversos ditos de Jesus que nem sempre apresentam uma linha de continuidade temática.

O primeiro desses ditos é um aviso a quem escandaliza os “pequeninos”. Entre nós, “escandalizar” é protagonizar mau exemplo ou facto revoltante que melindra ou fere a suscetibilidade dos que testemunham essa ação. Na linguagem de Marcos, porém, “escandalizar” tem significado diferente. O verbo grego “scandalídzô” está relacionado, em Marcos, com ser “pedra de tropeço” ou com ser obstáculo a que alguém tome determinada atitude. Neste contexto, escandalizar seria fazer algo que impedisse alguém de aderir a Jesus, de O seguir. Os “pequeninos” de que Jesus fala são os membros da comunidade que estão em situação de dependência, de debilidade, de necessidade. Os membros da comunidade devem, pois, abster-se de qualquer atitude que possa afastar alguém (especialmente, os pequenos, os débeis, os pobres) da adesão a Jesus e ao caminho que Ele propõe. Fazer algo que afaste alguém de Cristo e da comunidade é inadmissível e impensável (a quem fizer isso, “melhor seria que lhe atassem ao pescoço uma dessas mós movidas por um jumento e o lançassem ao mar”).

O segundo dito de Jesus refere-se à necessidade de arrancar da vida todos os sentimentos e atitudes incompatíveis com a opção por Cristo. Quando Jesus fala em cortar a mão (a mão é, nesta cultura, o órgão da ação pelo qual se concretizam os desejos que nascem no coração) ou de cortar o pé ou de arrancar o olho que é ocasião de pecado (o olho é o órgão que dá entrada aos desejos), está a vincar a necessidade de atuar onde as ações más do homem têm origem e de eliminar, na fonte, as raízes do mal. Estando em jogo o destino do homem, não se podem adiar cortes importantes no egoísmo e na autossuficiência.

Há ainda, neste segundo dito, referências sucessivas a um castigo na Geena, “onde o verme não morre e o fogo não se apaga”, para os que recusarem cortar com as atitudes e com os sentimentos incompatíveis com o seguimento de Jesus. A palavra “Geena” vem do Hebraico “Ge Hinnon” (“Vale do Hinnon”), situado a Sudoeste de Jerusalém, onde eram enterrados os mortos e onde, dia e noite, ardia o lixo produzido pelos habitantes da cidade. Era, pois, um lugar, impuro, tenebroso, que convinha evitar. Jesus usa a imagem do “Ge Hinnon”, para falar de vida perdida, frustrada, destruída. Quem não for capaz de cortar com o egoísmo, com a autossuficiência, é como se, em lugar de viver num lugar livre e feliz, estivesse condenado a viver no “Ge Hinnon”.

O que é que une estes ditos de Jesus é, para Marcos, serem indicações dirigidas aos discípulos sobre a necessidade de purificarem os seus critérios de vida e os seus valores, a fim de integrarem a comunidade do Reino. Os discípulos que não conformarem a vida pelas orientações de Jesus não podem seguir atrás d’Ele no caminho para Jerusalém, que leva à cruz e à ressurreição.

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Na segunda leitura (Tg 5,1-6), um mestre cristão do século I, previne os crentes de que apostar a vida nos bens materiais é mau negócio: eles desaparecem e não asseguram a Vida. A obsessão pelos bens materiais é fonte de injustiças e de sofrimento; e Deus nunca abençoará quem, por cobiça e ambição, explora e fere os irmãos.

A primeira parte do trecho em referência refere-se ao destino infeliz que espera os ricos. Como em visão profética, o autor contempla o final dos tempos e descreve a sorte daqueles cujo objetivo na vida foi acumular bens. Os bens, o poder, a consideração de que gozaram não lhes servirá de nada, a quando do juízo final, momento em que se joga o destino definitivo do homem.

Os bens em que os ricos depositam a sua segurança e esperança são perecíveis (“as vossas riquezas estão apodrecidas e as vossas vestes estão comidas pela traça. O vosso ouro e a vossa prata enferrujaram-se…”); é, pois, insensato basear neles a existência. Quando desaparecerem, nada ficará. Mais: serão testemunha de acusação, que denunciará o orgulho e a autossuficiência, a leviandade com que viveram, as injustiças e as violências que praticaram para os acumular. Então, o destino final dos ricos será o dos bens que endeusaram: desaparecerão numa nuvem de nada.

Na segunda parte, o epistológrafo refere-se à origem dos bens acumulados pelos ricos. A sua análise não admite dúvidas nem meio-termo: a riqueza provém da exploração dos pobres. Como exemplo, o autor cita o não pagamento dos salários devidos aos trabalhadores que ceifaram os campos dos ricos. É pecado que a Lei condena veementemente. Não pagar o salário ao trabalhador é condená-lo à morte, bem como a toda a família. Os luxos e os prazeres dos ricos vivem da morte dos pobres. Deus não pode pactuar com a injustiça e, por isso, não ficará indiferente ao sofrimento do pobre e do oprimido. O clamor dos injustiçados sobe da terra até junto de Deus e faz com que Deus atue. Com ironia mordaz, o autor compara o rico ao cevado que, engordando, apressa o dia da própria matança: os ricos, vivendo no luxo e nos prazeres à custa do sangue dos pobres, preparam para si próprios um destino de desgraça e de castigo.

A linguagem do epistológrafo é violenta e sarcástica, ao estilo dos pregadores epocais. Mas, além da veemência das palavras e do colorido das imagens, fica a mensagem essencial: quem vive para os bens materiais e põe neles o sentido da existência, dificilmente terá disponibilidade para acolher os dons de Deus e para acolher a Vida plena que Deus oferece aos homens. Por outro lado, Deus não tolera a exploração, a opressão do pobre; e quem conduzir a vida por caminhos de injustiça não poderá integrar a família de Deus. 

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Enfim, é preciso atender ao Espírito, que sopra onde e donde quer, e atender às necessidades dos irmãos. Esta é a grande mensagem acolhida a 29 de setembro de 1979 (há 45 anos), na ordenação presbiteral – em missa vespertina do 26.º domingo do Tempo Comum no Ano B – do Adriano Alberto Pereira, do António Lemos de Almeida, do Armindo Costa Almeida e minha.

2024.09.29 – Louro de Carvalho

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