Uma das lições significativas da liturgia
do 26.º domingo do Tempo Comum no Ano B é que ninguém é dono exclusivo do bem e
da verdade, mas que tem de ser capaz de reconhecer e de aceitar a presença e a
ação do Espírito de Deus através das pessoas de boa vontade que, independentemente
da situação e enquadramento eclesial, são sinais do amor de Deus no Mundo.
A primeira leitura (Nm 11,25-29), a partir de um episódio ocorrido enquanto o Povo de
Deus caminhava pelo deserto, convida a reconhecer e a acolher a ação do
Espírito de Deus na vida dos homens, ainda que se concretize através de pessoas
“improváveis”. O crente aceita sempre a iniciativa de Deus, seja como for que
ela se apresente, e acolhe-a de coração agradecido.
O Livro dos Números, assim designado, na versão grega da Bíblia
Hebraica, pelas listas de censos, de registos e de outras listas (começando
inclusive com os números do recenseamento do Povo de Deus, tribo por tribo,
feito por Moisés a mando de Deus), apresenta um conjunto de tradições sobre a
estada no deserto dos hebreus libertados do Egito, tradições que os teólogos
das escolas javista, elohista e sacerdotal utilizaram com fins catequéticos. Mais
do que uma crónica de viagem do Povo de Deus desde o Sinai até às portas da
Terra Prometida, o Livro dos Números
é um livro de catequese a mostrar que a essência de Israel é ser povo reunido à
volta de Deus e da Aliança, com os hagiógrafos a descrever como, por ação de
Javé, o grupo de nómadas libertado do Egito foi ganhando uma consciência
nacional e religiosa, até chegar a formar a “assembleia santa de Deus”. Israel
faz uma caminhada espiritual, durante a qual se vai libertando da mentalidade
de escravo, para adquirir a cultura de liberdade e de maturidade.
O episódio que a liturgia do 26.º
domingo comum selecionou como primeira leitura acontece pouco depois da partida
do Sinai. Em Tabera, o povo revoltou-se por não ter comida em abundância e
murmurou contra Javé. Moisés, cansado e desiludido, queixou-se ao Senhor de não
aguentar o fardo da condução deste povo rebelde. Então, Javé propôs a Moisés
escolher setenta anciãos que, ungidos pelo Espírito de Deus, o ajudariam nas
tarefas inerentes à condução do Povo.
Os anciãos (em Hebraico:
“tzequenîm”) eram uma instituição no universo político e social do Povo de
Deus. Eram os chefes de família que formavam, em cada cidade, um conselho e que
presidiam à comunidade. Tinham prestígio ímpar e participavam, ativamente, nas
deliberações e tomadas de decisão importantes. Alguns veem nesta instituição o
embrião do futuro Sinédrio.
Ora, o livro faz remontar à época do
deserto a instituição dos anciãos como referência comunitária: por indicação de
Deus, foram designados 70 anciãos para ajudar Moisés na governação. É número
simbólico que expressa a totalidade: eles representam a totalidade do povo.
Fortemente sugestiva é a descrição
da forma como se deu a designação dos anciãos: Deus tirou uma parte do Espírito
que estava em Moisés e derramou-o sobre os designados. Moisés possuía a
plenitude do Espírito, enquanto dirigia sozinho o Povo de Deus; porém, quando foi
dividida com os 70 anciãos a responsabilidade da governação, o Espírito que
repousava em Moisés foi repartido por todos. A bizarra descrição dá a ideia da
unidade do Espírito e da partilha do mesmo Espírito por todos aqueles que Deus
chama a uma missão em prol da comunidade.
A presença do Espírito nos anciãos
patenteia-se na capacidade de profetizar. Contudo, o exercício profético destes
anciãos não se traduz na comunicação à comunidade de mensagem escrita ou
falada, na linha dos profetas pregadores e escritores que Israel conhecerá mais
tarde, mas exprime-se em manifestações extáticas percecionadas pela comunidade
como sinais da presença e da força de Deus. Com os seus gestos e palavras arrebatados,
os anciãos mostram ao Povo que Deus está ali; e isso é garantia de que Deus continua
interessado em Israel e em conduzir Israel.
A saga tem, porém, um epílogo
inesperado: Eldad e Medad, dois anciãos que faziam parte da lista dos
escolhidos, mas que não estavam presentes aquando da receção do Espírito, também
profetizavam. E Josué, ajudante de Moisés, interpretando isso como usurpação de
competências lesiva da autoridade, pede a Moisés que lhe ponha cobro. A
resposta de Moisés a Josué é de um homem magnânimo, livre, de espírito aberto:
“Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta e que o Senhor infundisse o
seu Espírito sobre eles!” Moisés mostra não estar preocupado em guardar para si
os mecanismos de controlo do poder; a sua preocupação é que o povo faça uma
experiência forte de Deus e sinta a presença e a ajuda de Deus. Assim, quantos
mais membros do Povo experimentarem e sinalizarem a presença de Deus, mais
facilmente a comunidade irá atrás de Deus e das suas propostas.
O carisma profético não é o bem de
um líder; é dom que Deus distribui como entende. Moisés aceita que Deus aja
onde quer, como quer, e através de quem quer; aceita que Deus escolha os seus
colaboradores, até os mais improváveis, para concretizar o seu desígnio. O
desejo de Moisés – um Povo inteiro que recebe o Espírito de Deus e que é animado
por Ele – concretizar-se-á no Pentecostes, quando o Espírito de Deus se
derramar sobre a totalidade do Povo da Nova Aliança.
***
No Evangelho (Mc 9,38-43.45.47-48),
Jesus desafia os discípulos a porem de lado os interesses pessoais e de grupo e
a viverem na lógica do Reino. Exorta-os a não serem comunidade fechada,
sectária, intransigente, ciumenta, arrogante, e a acolherem, de braços abertos,
todos os que se dispõem a trabalhar por um Mundo mais humano e mais livre;
exorta-os a não excluírem da dinâmica comunitária os pequenos e os pobres; e
pede-lhes que arranquem da própria vida todos os sentimentos e atitudes
incompatíveis com a opção pelo Reino.
Começamos por ouvir João a expor a
Jesus o que acontecera um pouco antes e a forma como os discípulos lidaram com
isso: “Mestre, nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome e
procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco”. É como no Livro dos Números.
Na opinião de João, a atuação dos
discípulos parece justificável: a utilização do nome de Jesus por parte de
alguém que não pertence ao grupo é abuso a não tolerar. João está muito
decidido e cheio de certezas. Nem sequer pede a opinião de Jesus; apenas O
informa de algo que os discípulos decidiram e fizeram. João fala de forma impositiva
e arrogante, como se o grupo tivesse o direito de tomar as decisões que
houvesse por bem, sem consultar o Mestre. Mais grave ainda: a atuação dos
discípulos apresenta laivos de autoritarismo e de sectarismo, em total contradição
com a proposta de Jesus. De facto, a ação do exorcista anónimo não beliscava o
“bom nome” de Jesus, nem prejudicava o projeto do Reino; e mais importante do
que o prestígio do grupo é a libertação dos seres humanos das cadeias que os
impedem de ter Vida.
Tudo se percebe, se considerarmos
que os discípulos andavam obcecados com os primeiros lugares, com as honras, com
os privilégios, com os sonhos de poder e domínio. Tinham apostado tudo no
seguimento de Jesus e queriam ter o exclusivo de Jesus, em compensação do
investimento feito. Por isso, não estavam dispostos a partilhar Jesus com
eventuais concorrentes. Aquele desconhecido que agia em nome de Jesus poderia
revelar-se um concorrente que lhes disputaria os primeiros lugares na estrutura
política do Reino. Portanto, era preciso neutralizá-lo. Os discípulos de Jesus estavam
preocupados apenas em proteger os interesses pessoais ou de grupo. A sua atitude,
que grassa hoje, na Igreja, mostra sectarismo, intransigência, intolerância,
ciúmes, mesquinhez, inveja – valores incompatíveis com o dinamismo do Reino.
Jesus, com paciência, procura levar
os discípulos a ultrapassar esta visão sectária e egoísta: “Não o proibais,
porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome e, depois, dizer mal de Mim.
Quem não é contra nós é por nós.” A Jesus só O preocupa a libertação do homem
de tudo o que o desumaniza e lhe rouba a Vida. Quem luta pela justiça e faz
obras em favor do homem, está do lado de Jesus, embora não esteja formalmente
em determinado grupo. Quem for capaz de fazer qualquer gesto em favor de um irmão,
pertence à comunidade do Reino e está vinculado a Jesus.
A comunidade de Jesus não pode ser fechada,
exclusivista, monopolizadora, que amua e sente ciúmes quando alguém de fora faz
o bem; nem pode sentir-se atingida pelo facto de o Espírito de Deus atuar fora
das fronteiras institucionalmente definidas. Deve, antes, ser comunidade que
põe, acima dos seus interesses, a preocupação com o bem do homem e ser comunidade
que acolhe, apoia e estimula todos os que atuam em favor da libertação dos
irmãos. O fator decisivo deve ser o bem dos irmãos, não a defesa de interesses
pessoais ou corporativos.
Depois disto, a lição de Jesus
orienta-se para outras temáticas. De facto, Marcos junta diversos ditos de
Jesus que nem sempre apresentam uma linha de continuidade temática.
O primeiro desses ditos é um aviso a
quem escandaliza os “pequeninos”. Entre nós, “escandalizar” é protagonizar mau
exemplo ou facto revoltante que melindra ou fere a suscetibilidade dos que
testemunham essa ação. Na linguagem de Marcos, porém, “escandalizar” tem significado
diferente. O verbo grego “scandalídzô” está relacionado, em Marcos, com ser
“pedra de tropeço” ou com ser obstáculo a que alguém tome determinada atitude.
Neste contexto, escandalizar seria fazer algo que impedisse alguém de aderir a
Jesus, de O seguir. Os “pequeninos” de que Jesus fala são os membros da
comunidade que estão em situação de dependência, de debilidade, de necessidade.
Os membros da comunidade devem, pois, abster-se de qualquer atitude que possa
afastar alguém (especialmente, os pequenos, os débeis, os pobres) da adesão a
Jesus e ao caminho que Ele propõe. Fazer algo que afaste alguém de Cristo e da
comunidade é inadmissível e impensável (a quem fizer isso, “melhor seria que
lhe atassem ao pescoço uma dessas mós movidas por um jumento e o lançassem ao
mar”).
O segundo dito de Jesus refere-se à necessidade
de arrancar da vida todos os sentimentos e atitudes incompatíveis com a opção
por Cristo. Quando Jesus fala em cortar a mão (a mão é, nesta cultura, o órgão
da ação pelo qual se concretizam os desejos que nascem no coração) ou de cortar
o pé ou de arrancar o olho que é ocasião de pecado (o olho é o órgão que dá
entrada aos desejos), está a vincar a necessidade de atuar onde as ações más do
homem têm origem e de eliminar, na fonte, as raízes do mal. Estando em jogo o
destino do homem, não se podem adiar cortes importantes no egoísmo e na
autossuficiência.
Há ainda, neste segundo dito,
referências sucessivas a um castigo na Geena, “onde o verme não morre e o fogo
não se apaga”, para os que recusarem cortar com as atitudes e com os
sentimentos incompatíveis com o seguimento de Jesus. A palavra “Geena” vem do Hebraico
“Ge Hinnon” (“Vale do Hinnon”), situado a Sudoeste de Jerusalém, onde eram
enterrados os mortos e onde, dia e noite, ardia o lixo produzido pelos
habitantes da cidade. Era, pois, um lugar, impuro, tenebroso, que convinha
evitar. Jesus usa a imagem do “Ge Hinnon”, para falar de vida perdida, frustrada,
destruída. Quem não for capaz de cortar com o egoísmo, com a autossuficiência,
é como se, em lugar de viver num lugar livre e feliz, estivesse condenado a
viver no “Ge Hinnon”.
O que é que une estes ditos de Jesus
é, para Marcos, serem indicações dirigidas aos discípulos sobre a necessidade
de purificarem os seus critérios de vida e os seus valores, a fim de integrarem
a comunidade do Reino. Os discípulos que não conformarem a vida pelas
orientações de Jesus não podem seguir atrás d’Ele no caminho para Jerusalém,
que leva à cruz e à ressurreição.
***
Na segunda leitura (Tg 5,1-6),
um mestre cristão do século I, previne os crentes de que apostar a vida nos
bens materiais é mau negócio: eles desaparecem e não asseguram a Vida. A
obsessão pelos bens materiais é fonte de injustiças e de sofrimento; e Deus
nunca abençoará quem, por cobiça e ambição, explora e fere os irmãos.
A primeira parte do trecho em
referência refere-se ao destino infeliz que espera os ricos. Como em visão
profética, o autor contempla o final dos tempos e descreve a sorte daqueles
cujo objetivo na vida foi acumular bens. Os bens, o poder, a consideração de que
gozaram não lhes servirá de nada, a quando do juízo final, momento em que se
joga o destino definitivo do homem.
Os bens em que os ricos depositam a
sua segurança e esperança são perecíveis (“as vossas riquezas estão apodrecidas
e as vossas vestes estão comidas pela traça. O vosso ouro e a vossa prata
enferrujaram-se…”); é, pois, insensato basear neles a existência. Quando desaparecerem,
nada ficará. Mais: serão testemunha de acusação, que denunciará o orgulho e a
autossuficiência, a leviandade com que viveram, as injustiças e as violências
que praticaram para os acumular. Então, o destino final dos ricos será o dos
bens que endeusaram: desaparecerão numa nuvem de nada.
Na segunda parte, o epistológrafo
refere-se à origem dos bens acumulados pelos ricos. A sua análise não admite
dúvidas nem meio-termo: a riqueza provém da exploração dos pobres. Como
exemplo, o autor cita o não pagamento dos salários devidos aos trabalhadores
que ceifaram os campos dos ricos. É pecado que a Lei condena veementemente. Não
pagar o salário ao trabalhador é condená-lo à morte, bem como a toda a família.
Os luxos e os prazeres dos ricos vivem da morte dos pobres. Deus não pode
pactuar com a injustiça e, por isso, não ficará indiferente ao sofrimento do
pobre e do oprimido. O clamor dos injustiçados sobe da terra até junto de Deus
e faz com que Deus atue. Com ironia mordaz, o autor compara o rico ao cevado
que, engordando, apressa o dia da própria matança: os ricos, vivendo no luxo e
nos prazeres à custa do sangue dos pobres, preparam para si próprios um destino
de desgraça e de castigo.
A linguagem do epistológrafo é
violenta e sarcástica, ao estilo dos pregadores epocais. Mas, além da veemência
das palavras e do colorido das imagens, fica a mensagem essencial: quem vive
para os bens materiais e põe neles o sentido da existência, dificilmente terá
disponibilidade para acolher os dons de Deus e para acolher a Vida plena que
Deus oferece aos homens. Por outro lado, Deus não tolera a exploração, a
opressão do pobre; e quem conduzir a vida por caminhos de injustiça não poderá
integrar a família de Deus.
***
Enfim, é preciso atender ao
Espírito, que sopra onde e donde quer, e atender às necessidades dos irmãos.
Esta é a grande mensagem acolhida a 29 de setembro de 1979 (há 45 anos), na ordenação
presbiteral – em missa vespertina do 26.º domingo do Tempo Comum no Ano B – do
Adriano Alberto Pereira, do António Lemos de Almeida, do Armindo Costa Almeida
e minha.
2024.09.29 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário