quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Lucília Gago em fim de mandato como procuradora-geral da República

 

Recentemente, em duas cerimónias, a procuradora-geral da República interveio, referindo que talvez fosse a última comunicação pública do seu mandato, que termina em outubro.

A 4 de setembro, na cerimónia de tomada de posse de procuradores-gerais-adjuntos e de magistrados nomeados para inspetores do Ministério Público (MP), para o Departamento Central de Contencioso do Estado e Interesses Coletivos e Difusos (DCCEICD) e para o Gabinete da Família, da Criança, do Jovem, do Idoso e contra a Violência Doméstica (GFCJIVD) da Procuradoria-Geral da República (PGR), Lucília Gago deixou três mensagens.

A primeira foi assinalar, com “surpresa e prudente gáudio”, o súbito e recente interesse que a atividade do MP aparenta despertar, nomeadamente, quanto à necessidade de prestação de contas, de que “nem esta magistratura nem a sua cúpula estão dispensadas”. E, neste âmbito, a PGR sustenta que tal quesito é prática habitual, com a atividade inspetiva que incide, com regularidade, no desempenho funcional dos magistrados, “verificando a respetiva adequação e qualidade, bem como, sempre que tal se justifica, nos comportamentos assumidos, suscetíveis de acarretar responsabilidade disciplinar”. Depois, vem a publicitação do relatório anual da atividade do MP cuja leitura habilita “ao conhecimento da evolução registada, na globalidade dos setores em que aquela se desenvolve e nas suas vertentes mais elucidativas”, e “à adoção de medidas por parte de quem para o efeito detém competência que a permitam incrementar qualitativamente, em benefício da realização da Justiça e da comunidade no seu todo”.

Em segunda mensagem, lamenta que o súbito interesse pelo MP “não haja há mais tempo eclodido, permitindo, designadamente, o aprofundamento das razões que não vêm permitindo a ultimação de complexas e relevantes investigações criminais em prazo substancialmente mais curto e, acima de tudo, contribuindo para a superação do feixe de constrangimentos que a tal tem longa e lamentavelmente obstado”. E, tacitamente, verbera o desconhecimento dos críticos sobre outras áreas de atividade do MP, que não a penal, a geradora “de especial interesse mediático, em razão da qualidade ou notoriedade dos visados”.

E, em terceira mensagem, espera que a História, “com o imprescindível distanciamento”, caraterize e avalie “o período transcorrido, desde finais de 2018 até ao outubro que agora espreita, incluindo tudo o que, na área da Justiça e da atividade do MP, ele conteve de único, pelas melhores e pelas piores razões”. Além disso, sustenta a esperança na rejeição da miragem, apontada por alguns, de “reformas imponderadas, quanto ao conteúdo, e imprevisíveis, quanto aos resultados, a reboque do ribombar dos tambores da ignorância, da superficialidade ou de uma contagiante e incauta maledicência enraizada em pérfidos desígnios”.  

A 16 de setembro, na cerimónia solene de abertura do 41.º Curso de Formação de para os Tribunais Judiciais e do 11.º Curso de Formação para os Tribunais Administrativos e Fiscais, no Centro de Estudos Judiciários (CEJ), Lucília Gago referiu ter dito, no contexto de audição na Assembleia da República (AR), que os magistrados do MP fazem enorme esforço “para levar por diante a sua missão num quadro deficitário, sendo também, há muito, deficitário o quadro de oficiais de justiça, não obstante as insistentes sinalizações da situação extrema que se vive nos tribunais e para a qual, há anos, se vem, veemente e infrutiferamente, chamando a atenção”.  

Por outro lado, revelou que o último balanço social elaborado pela Procuradoria-Geral da República (dados reportados a 30 de maio de 2024) que aponte para um aparente acréscimo de magistrados não tem verdadeira adesão à realidade, pois, dos 1738 magistrados ali refletidos (mais 110 do que os existentes em 2018), encontram-se 42 ainda em fase de estágio. Depois, esse número inclui magistrados em situação de ausência prolongada, de licença de longa duração e de comissão de serviço, dentro e fora da magistratura, levando a que o número de magistrados em efetividade de funções desça para 1630. Também o acréscimo de competências e atribuições do MP e as crescentes necessidades de especialização, a par da existência de elevado nível de risco de burnout dos magistrados – de acordo com estudo do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, que revelou a existência de 32,7% dos magistrados com risco médio-alto de burnout e 14,8% com risco elevado – constituem fatores de agravamento do défice de recursos humanos. Tudo, numa magistratura com forte preponderância feminina na qual se sente, com acuidade, o peso das ausências ao serviço decorrentes de licenças de maternidade ou outros ponderosos motivos inerentes a essa condição.

Como esta asserção, produzida na AR, concitou fortes críticas na opinião pública, a magistrada clarificou, agora, que desta afirmação, que se mantém, não se retira a mínima colisão com os adequados e justos direitos, “há muito legalmente consagrados”. Assim, afastou a hipótese de regresso ao tempo pré-abrilino, em que era vedado à mulher o acesso à magistratura.

Sustenta a procuradora-geral que a esta falta de magistrados se encontra associada a dificuldade de recrutamento de auditores de justiça (futuros juízes). A predominância de candidatos do Norte do país constitui dimensão do problema a carecer de especial atenção, pois está conexa com os custos da habitação em Lisboa, que demovem muitos de se candidatarem. Por isso, lamentou que não se tenha ainda criado o polo do CEJ no Norte, como fora anunciado, mas não concretizado.

Reconheceu que o seu tempo se esgotara, mas “o que foi feito está, com honestidade intelectual e sem alarde, tendo como único foco os resultados”. É pena que o foco esteja só nos resultados e não também na qualidade da via para os atingir (os fins não justificam todo o tipo de meios).

Não obstante, incita os auditores de justiça a que, perante a experiência e o conhecimento técnico dos formadores, “nunca hesitem em os questionar, aproveitando, com sentido crítico, a transmissão do saber, nas suas múltiplas vertentes”. É desafio ironicamente audaz da parte de quem não faz autocrítica e divisa veneno em qualquer crítica ou tentativa de escrutínio externo.

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A 11 de setembro, a procuradora-geral da República foi ouvida pela AR, na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, a pedido do Bloco de Esquerda e do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN), alertando para o risco de eventual revisão da lei de recurso a escutas fazer cair algumas investigações judiciais, vincando que o número de interceções telefónicas diminuiu, nos últimos anos, e que o MP “apenas recorre a escutas, quando, justamente e de forma criteriosa percebe que elas são essenciais”. Ora, “se for outra a opção do legislador, algumas investigações poderão vir a soçobrar. É bom que não tenhamos qualquer dúvida”, avisou.

Lucília Gago considerou estranho o “súbito interesse” dos deputados no relatório de atividades do MP. “É a primeira vez que um procurador-geral é questionado sobre o relatório de atividades do Ministério Público”, atirou, para desfazer o equívoco de que não comparece na AR: “Esta é a quarta vez, desde o início do meu mandato, que me encontro a ser ouvida na Assembleia da República, correspondendo a solicitações. Em 2019, no âmbito da comissão parlamentar de inquérito de Tancos; em junho do mesmo ano, no âmbito de uma audição sobre crianças e jovens; e, em 2021, numa audição sobre a diretiva dos poderes hierárquicos em processo penal”, recordou.

Por outro lado, desvalorizou o facto de o relatório do MP só ter sido divulgado em agosto, quando o prazo previsto é 31 de maio, ao lembrar atrasos no mandato da antecessora. “Em setembro de 2018, antes de iniciar o meu mandato, foram divulgados três relatórios, reportados aos anos 2017, 2015-16 e 2015-14. Relativamente ao meu mandato, os relatórios foram sequenciais e tudo foi rigorosamente cumprido, salvo o momento de apresentação”, observou, com deselegância.

Não é culpada de nada. Até as razões do atraso no relatório pesam sobre colegas e outras entidades. Assim, apontou o envio retardado de dados por comarcas do MP e as greves dos funcionários judiciais, apesar de reconhecer a “justeza das reivindicações” dos seus profissionais.

Os partidos insistiram na questão das violações do segredo de justiça, tendo Lucília Gago lembrado que “perseguir os responsáveis pela violação do segredo de justiça” obrigaria a recorrer a “meios intrusivos de obtenção de prova”. Aliás, isso é recorrente nos diversos processos!

Na primeira intervenção, após as questões do PAN e do BE (não fizera qualquer declaração inicial), deu conta das dificuldades que magistrados do MP têm em trabalhar. Porém, saiu da AR sem concretizar o que afirmou sobre a alegada campanha orquestrada contra o MP (complexo de perseguição) e sem se referir ao caso que atingiu o ex-primeiro-ministro António Costa.

Ao longo de hora e meia de audição, os deputados, do Partido Comunista Português (PCP) ao partido do Centro Democrático Social (CDS), com exceção do Chega, pediram a Lucília Gago para concretizar o que dissera, designadamente quem e com que objetivo está envolvido numa campanha contra o MP.

O deputado do PCP António Filipe abordou também o caso da Operação Influencer, que provocou, em novembro de 2023, a demissão de António Costa das funções de primeiro-ministro, perguntando, diretamente, até quando se prolonga a investigação, mesmo que, aparentemente não tenham sido detetados crimes. Porém, nas duas intervenções de fundo que fez perante os deputados – e, apesar da insistência na questão da alegada campanha orquestrada –, optou por não responder. Frisou, que, ao invés do que foi noticiado, esta foi a quarta, e não a primeira vez, que se deslocou à AR, para prestar esclarecimentos. Todavia, não houve esclarecimentos sobre a deficiente comunicação com o público sobre processos em curso, nem sobre a manutenção em aberto de processos para os quais não há sólida sustentação.

O líder do Partido Socialista (PS) considerou que na audição parlamentar da procuradora-geral da República houve “apenas justificações”, quando se impunha a capacidade para “fazer uma análise crítica do seu trabalho”, porque ninguém faz tudo bem. “Eu julgo que nós precisamos de avançar nessa matéria, porque, ontem [dia 11], tivemos apenas justificações. Nós precisamos que haja capacidade crítica também de quem está no Ministério Público”, respondeu aos jornalistas Pedro Nuno Santos ao ser questionado sobre a audição parlamentar de Lucília Gago.

Para o secretário-geral do PS, em “qualquer atividade”, é preciso haver “a capacidade de fazer a crítica ao próprio trabalho”. “Nós nunca fazemos tudo bem e, em cada profissão, temos de ter a capacidade, não só de criticar os outros, mas também de olhar para nós, ouvir as críticas dos outros a nós”, defendeu, sustentando que deve ser assim na política, mas também “qualquer procurador ou procuradora tem de ter a capacidade de fazer uma análise crítica também do seu trabalho”.

Sobre se gostaria de ser ouvido pelo governo para a nomeação de quem irá substituir Lucília Gago, o líder do PS considerou que seria natural, mas não faz disso um finca-pé. “Não há nenhuma obrigação constitucional em fazê-lo. O Partido Socialista não faz essa exigência. Eu acharia natural como acharia natural que o principal partido da oposição fosse ouvido noutras matérias que não tem sido”, explicou.

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Lucília Gago passará à História não como a pior procuradora-geral, como dizem alguns, mas pela não assunção pública de responsabilidades pelo que falhou no MP, pela crença na teoria da conspiração, sem a especificar, pela rejeição de qualquer escrutínio externo e pela dificuldade em comunicar com o público. De resto, quanto à consecução de objetivos ou quanto à suposta ambição política de magistrados do MP, segue a linha dos antecessores, bem como na fraca liderança do MP.

Acho deselegante dizer alguém, agora, que o perfil ideal para a PGR era o de Joana Marques Vidal. Pelo que dela conheço, não se sentia singular, muito menos insubstituível, e o seu tempo, infelizmente, passou. Se achei oportuno (embora desnecessário) o manifesto dos 50 por melhor Justiça, não concordo com as dez exigências para a PGR. Basta que cumpra e faça cumprir, na íntegra, o Estatuto dos Magistrados do Ministério Público e o Código de Conduta. E deixará de merecer crítica. É óbvio que tem de ser líder e a liderança passa pela comunicação.

2024.09.17 – Louro de Carvalho

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