Recentemente, em duas cerimónias, a procuradora-geral
da República interveio, referindo que talvez fosse a última comunicação pública
do seu mandato, que termina em outubro.
A 4 de setembro, na cerimónia de tomada de posse de
procuradores-gerais-adjuntos e de magistrados nomeados para inspetores do
Ministério Público (MP), para o Departamento Central de Contencioso do Estado e
Interesses Coletivos e Difusos (DCCEICD) e para o Gabinete da Família, da
Criança, do Jovem, do Idoso e contra a Violência Doméstica (GFCJIVD) da Procuradoria-Geral
da República (PGR), Lucília Gago deixou
três mensagens.
A primeira foi assinalar, com “surpresa
e prudente gáudio”, o súbito e recente interesse que a atividade do MP aparenta
despertar, nomeadamente, quanto à necessidade de prestação de contas, de que “nem
esta magistratura nem a sua cúpula estão dispensadas”. E, neste âmbito, a PGR sustenta
que tal quesito é prática habitual, com a atividade inspetiva que incide, com
regularidade, no desempenho funcional dos magistrados, “verificando a respetiva
adequação e qualidade, bem como, sempre que tal se justifica, nos
comportamentos assumidos, suscetíveis de acarretar responsabilidade disciplinar”.
Depois, vem a publicitação do relatório anual da atividade do MP cuja leitura
habilita “ao conhecimento da evolução registada, na globalidade dos setores em
que aquela se desenvolve e nas suas vertentes mais elucidativas”, e “à adoção
de medidas por parte de quem para o efeito detém competência que a permitam
incrementar qualitativamente, em benefício da realização da Justiça e da
comunidade no seu todo”.
Em segunda mensagem, lamenta que
o súbito interesse pelo MP “não haja há mais tempo eclodido, permitindo,
designadamente, o aprofundamento das razões que não vêm permitindo a ultimação
de complexas e relevantes investigações criminais em prazo substancialmente
mais curto e, acima de tudo, contribuindo para a superação do feixe de
constrangimentos que a tal tem longa e lamentavelmente obstado”. E,
tacitamente, verbera o desconhecimento dos críticos sobre outras áreas de
atividade do MP, que não a penal, a geradora “de especial interesse mediático,
em razão da qualidade ou notoriedade dos visados”.
E, em terceira mensagem, espera
que a História, “com o imprescindível distanciamento”, caraterize e avalie “o
período transcorrido, desde finais de 2018 até ao outubro que agora espreita,
incluindo tudo o que, na área da Justiça e da atividade do MP, ele conteve de
único, pelas melhores e pelas piores razões”. Além disso, sustenta a esperança
na rejeição da miragem, apontada por alguns, de “reformas imponderadas, quanto
ao conteúdo, e imprevisíveis, quanto aos resultados, a reboque do ribombar dos
tambores da ignorância, da superficialidade ou de uma contagiante e incauta
maledicência enraizada em pérfidos desígnios”.
A 16 de setembro, na cerimónia solene de abertura do 41.º Curso de Formação
de para os Tribunais Judiciais e do 11.º Curso de Formação para os Tribunais
Administrativos e Fiscais, no Centro de Estudos Judiciários (CEJ), Lucília Gago
referiu ter dito, no contexto de audição na
Assembleia da República (AR), que os magistrados do MP fazem enorme esforço “para
levar por diante a sua missão num quadro deficitário, sendo também, há muito,
deficitário o quadro de oficiais de justiça, não obstante as insistentes
sinalizações da situação extrema que se vive nos tribunais e para a qual, há
anos, se vem, veemente e infrutiferamente, chamando a atenção”.
Por outro lado, revelou que o
último balanço social elaborado pela Procuradoria-Geral da República (dados
reportados a 30 de maio de 2024) que aponte para um aparente acréscimo de
magistrados não tem verdadeira adesão à realidade, pois, dos 1738 magistrados
ali refletidos (mais 110 do que os existentes em 2018), encontram-se 42 ainda
em fase de estágio. Depois, esse número inclui
magistrados em situação de ausência prolongada, de licença de longa duração e de
comissão de serviço, dentro e fora da magistratura, levando a que o número de
magistrados em efetividade de funções desça para 1630. Também o acréscimo de
competências e atribuições do MP e as crescentes necessidades de
especialização, a par da existência de elevado nível de risco de burnout dos magistrados – de acordo com
estudo do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, que revelou a
existência de 32,7% dos magistrados com risco médio-alto de burnout e 14,8% com risco elevado –
constituem fatores de agravamento do défice de recursos humanos. Tudo, numa
magistratura com forte preponderância feminina na qual se sente, com acuidade,
o peso das ausências ao serviço decorrentes de licenças de maternidade ou outros
ponderosos motivos inerentes a essa condição.
Como esta asserção, produzida na
AR, concitou fortes críticas na opinião pública, a magistrada clarificou, agora,
que desta afirmação, que se mantém, não se retira a mínima colisão com os
adequados e justos direitos, “há muito legalmente consagrados”. Assim, afastou
a hipótese de regresso ao tempo pré-abrilino, em que era vedado à mulher o
acesso à magistratura.
Sustenta a procuradora-geral que a
esta falta de magistrados se encontra associada a dificuldade de recrutamento
de auditores de justiça (futuros juízes). A predominância de candidatos do Norte
do país constitui dimensão do problema a carecer de especial atenção, pois está
conexa com os custos da habitação em Lisboa, que demovem muitos de se
candidatarem. Por isso, lamentou que não se tenha ainda criado o polo do CEJ no
Norte, como fora anunciado, mas não concretizado.
Reconheceu
que o seu tempo se esgotara, mas “o que foi feito está, com honestidade
intelectual e sem alarde, tendo como único foco os resultados”. É pena que o
foco esteja só nos resultados e não também na qualidade da via para os atingir
(os fins não justificam todo o tipo de meios).
Não
obstante, incita os auditores de justiça a que, perante a experiência e o
conhecimento técnico dos formadores, “nunca hesitem em os questionar,
aproveitando, com sentido crítico, a transmissão do saber, nas suas múltiplas
vertentes”. É desafio ironicamente audaz da parte de quem não faz autocrítica e
divisa veneno em qualquer crítica ou tentativa de escrutínio externo.
***
A
11 de setembro, a procuradora-geral da República foi ouvida pela AR, na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos,
Liberdades e Garantias, a pedido do Bloco de Esquerda e do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN), alertando
para o risco de eventual revisão da lei de recurso a escutas fazer cair algumas
investigações judiciais, vincando que o número de interceções telefónicas
diminuiu, nos últimos anos, e que o MP
“apenas recorre a escutas, quando,
justamente e de forma criteriosa percebe que elas são essenciais”. Ora, “se for
outra a opção do legislador, algumas investigações poderão vir a soçobrar. É
bom que não tenhamos qualquer dúvida”, avisou.
Lucília Gago
considerou estranho o “súbito interesse” dos deputados no relatório de atividades
do MP. “É a primeira vez que um procurador-geral é questionado sobre o
relatório de atividades do Ministério Público”, atirou, para desfazer o equívoco
de que não comparece na AR: “Esta é a quarta vez, desde o início do meu mandato,
que me encontro a ser ouvida na Assembleia da República, correspondendo a
solicitações. Em 2019, no âmbito da comissão parlamentar de inquérito de
Tancos; em junho do mesmo ano, no âmbito de uma audição sobre crianças e
jovens; e, em 2021, numa audição sobre a diretiva dos poderes hierárquicos em
processo penal”, recordou.
Por outro
lado, desvalorizou o facto de o relatório do MP só ter sido divulgado em
agosto, quando o prazo previsto é 31 de maio, ao lembrar atrasos no mandato da antecessora.
“Em setembro de 2018, antes de iniciar o meu mandato, foram divulgados três
relatórios, reportados aos anos 2017, 2015-16 e 2015-14. Relativamente ao meu
mandato, os relatórios foram sequenciais e tudo foi rigorosamente cumprido,
salvo o momento de apresentação”, observou, com deselegância.
Não é
culpada de nada. Até as razões do atraso no relatório pesam sobre colegas e
outras entidades. Assim, apontou o envio retardado de dados por comarcas do MP
e as greves dos funcionários judiciais, apesar de reconhecer a “justeza das
reivindicações” dos seus profissionais.
Os partidos
insistiram na questão das violações do segredo de justiça, tendo Lucília Gago
lembrado que “perseguir os responsáveis pela violação do segredo de justiça”
obrigaria a recorrer a “meios intrusivos de obtenção de prova”. Aliás, isso é
recorrente nos diversos processos!
Na primeira
intervenção, após as questões do PAN e do BE (não fizera qualquer declaração inicial),
deu conta das dificuldades que magistrados do MP têm em trabalhar. Porém, saiu
da AR sem concretizar
o que afirmou sobre a alegada campanha orquestrada contra o MP (complexo de
perseguição) e sem se referir ao caso que atingiu o ex-primeiro-ministro
António Costa.
Ao longo de hora e meia de audição,
os deputados, do Partido Comunista Português (PCP) ao partido do Centro
Democrático Social (CDS), com exceção do Chega, pediram a Lucília Gago para
concretizar o que dissera, designadamente quem e com que objetivo está
envolvido numa campanha contra o MP.
O deputado do PCP António Filipe
abordou também o caso da Operação Influencer, que provocou, em novembro de
2023, a demissão de António Costa das funções de primeiro-ministro,
perguntando, diretamente, até quando se prolonga a investigação, mesmo que,
aparentemente não tenham sido detetados crimes. Porém, nas duas intervenções de
fundo que fez perante os deputados – e, apesar da insistência na questão da
alegada campanha orquestrada –, optou por não responder. Frisou, que, ao invés
do que foi noticiado, esta foi a quarta, e não a primeira vez, que se deslocou
à AR, para prestar esclarecimentos. Todavia, não houve esclarecimentos sobre a
deficiente comunicação com o público sobre processos em curso, nem sobre a manutenção
em aberto de processos para os quais não há sólida sustentação.
O líder do Partido Socialista (PS)
considerou que na audição parlamentar da procuradora-geral da República houve
“apenas justificações”, quando se impunha a capacidade para “fazer uma análise
crítica do seu trabalho”, porque ninguém faz tudo bem. “Eu julgo que nós
precisamos de avançar nessa matéria, porque, ontem [dia 11], tivemos apenas
justificações. Nós precisamos que haja capacidade crítica também de quem está
no Ministério Público”, respondeu aos jornalistas Pedro Nuno Santos ao ser questionado
sobre a audição parlamentar de Lucília Gago.
Para o secretário-geral do PS, em
“qualquer atividade”, é preciso haver “a capacidade de fazer a crítica ao
próprio trabalho”. “Nós nunca fazemos tudo bem e, em cada profissão, temos de
ter a capacidade, não só de criticar os outros, mas também de olhar para nós,
ouvir as críticas dos outros a nós”, defendeu, sustentando que deve ser assim
na política, mas também “qualquer procurador ou procuradora tem de ter a
capacidade de fazer uma análise crítica também do seu trabalho”.
Sobre se gostaria de ser ouvido pelo
governo para a nomeação de quem irá substituir Lucília Gago, o líder do PS
considerou que seria natural, mas não faz disso um finca-pé. “Não há nenhuma
obrigação constitucional em fazê-lo. O Partido Socialista não faz essa
exigência. Eu acharia natural como acharia natural que o principal partido da
oposição fosse ouvido noutras matérias que não tem sido”, explicou.
***
Lucília Gago passará à História não
como a pior procuradora-geral, como dizem alguns, mas pela não assunção pública
de responsabilidades pelo que falhou no MP, pela crença na teoria da
conspiração, sem a especificar, pela rejeição de qualquer escrutínio externo e
pela dificuldade em comunicar com o público. De resto, quanto à consecução de
objetivos ou quanto à suposta ambição política de magistrados do MP, segue a
linha dos antecessores, bem como na fraca liderança do MP.
Acho deselegante dizer alguém, agora,
que o perfil ideal para a PGR era o de Joana Marques Vidal. Pelo que dela
conheço, não se sentia singular, muito menos insubstituível, e o seu tempo,
infelizmente, passou. Se achei oportuno (embora desnecessário) o manifesto dos
50 por melhor Justiça, não concordo com as dez exigências para a PGR. Basta que
cumpra e faça cumprir, na íntegra, o Estatuto
dos Magistrados do Ministério Público e o Código de Conduta. E deixará de merecer crítica. É óbvio que tem de
ser líder e a liderança passa pela comunicação.
2024.09.17 –
Louro de Carvalho
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