quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Privatização da TAP em 2015: negócio ou esquema ruinoso para o Estado

 

A Inspeção-Geral de Finanças (IGF) concluiu a auditoria às contas da TAP (entre 2005 e 2023), solicitada pelo anterior ministro das Finanças, Fernando Medina, com suspeitas de crime no processo de privatização, em 2015, e na gestão da dupla David Neelman e Humberto Pedrosa.

Os auditores dizem que TAP foi comprada com garantia da empresa transportadora, a qual fez um contrato simulado que serviu, na prática, para pagar 4,3 milhões a três administradores.

De acordo com o relatório, conhecido a 2 de setembro, o negócio de compra da TAP por David Neelman foi financiado com um empréstimo de 226,75 milhões de dólares (MUSD) da Airbus, em troca da compra de 53 aviões à fabricante de aeronaves europeia; e, como a companhia aérea dava a garantia ao crédito, obrigava-se a pagar os 226 milhões de dólares emprestados a Neelman, se o empresário não comprasse os aviões.

O esquema permitiu contornar o Código das Sociedades Comerciais (CSC), que impede a cedência de empréstimos ou fundos a um terceiro para que este adquira ações próprias.

A IGF refere que a Atlantic Gateway, consórcio de David Neeleman e Humberto Pedrosa, adquiriu 61% do capital da TAP, SGPS, “comprometendo-se a proceder à sua capitalização, através de prestações suplementares de capital, das quais 226,75 milhões de dólares americanos foram efetuadas através da sócia DGN Corporation (DGN) com fundos obtidos da Airbus”.

O montante de capitalização “coincide com o valor da penalização (226,75 MUSD) assumida pela TAP, SA, em caso de incumprimento dos acordos de aquisição das 53 aeronaves (A320 e A330), o que evidencia possível relação de causalidade entre a aquisição das ações e a capitalização da TAP, SGPS e os contratos celebrados entre a TAP, SA e a Airbus”.

A auditoria dá nota de que a operação era do conhecimento da Parpública, que junta as participações empresariais do Estado e dos titulares das Finanças e das Infraestruturas do governo então liderado por Pedro Passos Coelho, sendo ministra das Finanças Maria Luís Albuquerque – acabada de escolher por Luís Montenegro para comissária europeia – e secretário de Estado das Infraestruturas, Transportes e Comunicações, primeiro, Sérgio Monteiro e, depois, Miguel Pinto Luz, atual ministro das Infraestruturas e Habitação.

A IGF propõe o envio do relatório ao Ministério Público (MP) para investigação, sobretudo tendo em conta as conclusões conexas com o processo de privatização. O governo confirmou o envio do relatório ao MP e à Assembleia da República (AR) após tê-lo recebido na semana anterior, como revelou, a 3 de setembro, o ministro das Infraestruturas e Habitação.

A oposição reagiu às conclusões do relatório, exigindo explicações a Miguel Pinto Luz e a Maria Luís Albuquerque na AR e defendendo que não têm condições para exercer funções públicas.

A líder parlamentar do Partido Socialista (PS), Alexandra Leitão, desafiou o primeiro-ministro (PM), Luís Montenegro, a esclarecer se mantém a confiança política no ministro Miguel Pinto Luz, para dirigir a futura privatização da TAP, aduzindo que já participou num processo semelhante, “envolto em suspeitas”, em 2015, como secretário de Estado. “A pessoa que hoje está a conduzir, novamente, a privatização da TAP é a pessoa que, em 2015, conduziu a privatização da TAP com esta falta de transparência, com este negócio que, agora, tudo aponta que tem graves suspeitas de falta de transparência de utilização de dinheiro da própria TAP para comprar a empresa”, criticou a deputada, anunciando que o PS vai pedir a audição parlamentar do ministro das Infraestruturas e Habitação, bem como a da ex-ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque – agora indicada pelo governo para comissária europeia – e a de Sérgio Monteiro, além de pretender que o tema seja debatido na próxima reunião da comissão permanente.

O líder parlamentar do Chega, Pedro Pinto, classificou como “uma trapalhada” o negócio da privatização da TAP e acusou o PM de ser cúmplice, porque, ao chamar Miguel Pinto Luz para o governo, “sabia quem estava a nomear”. Assim, a posição do ministro Pinto Luz “fica muito débil”, pelo que deve ser afastado do processo de reprivatização da companhia aérea, pois “não tem condições políticas” para continuar a acompanhar esse dossiê. Além de Pinto Luz, o Chega quer chamar à AR a antiga ministra das Finanças Maria Luís Albuquerque, e os auditores da IGF que elaboraram o relatório. E, pela Iniciativa Liberal (IL), Rodrigo Saraiva sustenta que o relatório “não traz grandes novidades”, vincando que o documento resulta do trabalho da comissão parlamentar de inquérito (CPI) à gestão da TAP, cabendo ao MP “avaliar a licitude ou não” dos procedimentos em causa. O deputado liberal remeteu para o PM a necessidade de eventuais consequências políticas, após a divulgação do relatório da IGF.

Já a coordenadora do Bloco de Esquerda (BE) considerou que Pinto Luz é um “ativo tóxico” no governo, que “não tem idoneidade” para gerir o dossiê da TAP, cabendo, segundo Mariana Mortágua, ao PM “decidir” o futuro do governante, que “esteve envolvido, no passado, com um negócio ruinoso para a TAP e não pode ter qualquer coisa a ver com a gestão da TAP no presente”. Tal como o PS e o Chega, os bloquistas pediram a audição parlamentar de Miguel Pinto Luz e de Maria Luís Albuquerque.

Na mesma senda, a líder parlamentar do Livre considerou que a TAP ter sido comprada com o dinheiro da empresa foi “uma chico-espertice”. Isabel Mendes Lopes sustenta que os responsáveis públicos, à altura da privatização, “sabiam e foram cúmplices deste esquema” e que “é muito importante que a investigação do Ministério Público seja feita o mais rápido possível”.

Por seu lado, a porta-voz do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) defendeu que Pinto Luz deve ser afastado da gestão do dossiê da reprivatização da TAP, frisando que o ministro “não tem idoneidade política” para continuar a acompanhá-lo. E Inês de Sousa Real, reiterando que “é fundamental que todos os esclarecimentos sejam prestados”, anunciou que o partido vai chamar à AR também o antigo presidente da Parpública, bem como o atual ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, para que esclareça “o que é que o Ministério das Finanças vai fazer para garantir o interesse público” e para evitar “áreas cinzentas” na “legislação aplicável a este tipo de contratos e de reprivatizações”.

A líder parlamentar do Partido Comunista Português (PCP), Paula Santos, defendeu que “é preciso tirar consequências e, desde logo, consequências políticas”, desta auditoria, pois “não deixa de ser significativo que uma das principais responsáveis e que deu cobertura a este crime [Maria Luís Albuquerque] seja agora indicada para comissária europeia”.

Para lá da suspeita de que a TAP terá sido comprada com garantias da própria empresa, o relatório da IGF aponta para que as remunerações dos gestores da TAP, no período em que foi parcialmente privatizada, foram pagas recorrendo a contrato de prestação de serviços “simulado” com uma empresa de David Neelman, procedimento que se afigura “irregular no pagamento/recebimento das remunerações aos membros do Conselho de Administração, que, assim, eximiram-se às responsabilidades quanto à tributação em sede de IRS [imposto sobre o rendimento das pessoas singulares] e [de] contribuições para a Segurança Social”. Assim, foi possível pagar 4,3 milhões em prémios e em remunerações a três administradores (Neelman, Humberto Pedrosa e David Pedrosa), não registados como tal e não pagando os impostos a que estavam obrigados.

Também Fernando Pinto, antigo CEO da TAP, é visado na auditoria, pelo recebimento de 326,7 mil euros correspondentes a férias não gozadas, considerando a IGF não “existir base legal ou contratual que sustente este pagamento”.

A IGF questiona “a racionalidade económica” da TAP em participar no negócio da TAP Manutenção e Engenharia Brasil e em não partilhar os riscos e encargos daquela participação com a Geocapital. E admite “perdas muito significativas com aquele negócio pela não recuperabilidade dos valores envolvidos, que, até 2023, ascendiam a 906 milhões de euros”. Por outro lado, questiona a contratação de serviços de consultoria, entre 2005 e 2022, no valor total de 400,6 milhões de euros, envolvendo cerca de 1308 entidades, adiantando que, nos contratos celebrados com a Seabury Aviation Consulting, com a LLC e com a KPMG & Associados, no montante global de 11,7 milhões, “não foi possível identificar claramente o beneficiário desses serviços”.

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Alexandra Leitão lembra a auditoria da TAP, do governo do PS, cujas conclusões são semelhantes às da IGF e que, em final de 2022, foi remetida para o MP (na altura, o titular da pasta era Pedro Nuno Santos) e que o PS insistiu nesta matéria na CPI à TAP, refutando as críticas feitas por outros partidos sobre a responsabilidade do PS. Agora, como refere a deputada, “a IGF vem confirmar a gravidade da situação e confirmar todas estas suspeitas” e, “a ser verdade o que vem noticiado na comunicação social, a TAP é comprada pela Atlantic Gateway com dinheiro da própria TAP. na sequência do negócio feito com a Airbus”.

A IL quer saber quando e como é que a TAP será privatizada pelo governo PSD/CDS-PP [Partido Social Democrata e Partido do Centro Democráticos Social / Partido Popular] e remete para o PM a necessidade de eventuais consequências políticas após a divulgação do relatório da IGF. Além de transparência no processo de reprivatização do atual governo, quer saber “quando é que os 3,2 mil milhões de euros poderiam ser devolvidos aos contribuintes portugueses” e crítica o anterior executivo socialista liderado por António Costa.

A coordenadora do BE quer estabilidade à TAP, com o fim dos “negócios ruinosos para o Estado e para a TAP, que geram instabilidade e perda de milhares de milhões de fundos públicos”.

A porta-voz do PAN considera que o ministro das Infraestruturas “não tem idoneidade política para pôr acima de tudo o interesse dos Portugueses, porque ficou mais do que claro que, na altura, este negócio não teve em consideração aquilo que era o interesse de Portugal, o interesse da evolução da economia do nosso país e a manutenção desta empresa”.

Portanto, defende que o PM “deve indicar outro governante que fique responsável por todo este processo ou chamá-lo a si, para que, efetivamente, não haja qualquer dúvida [de] que é o interesse público que vai prevalecer” e garantir que o dinheiro público injetado na companhia aérea é “devolvido aos Portugueses, porque faz muita falta em muitas áreas do país”. Por outro lado, sublinha que “é fundamental que todos os esclarecimentos sejam prestados, que ninguém fique acima daquilo que é a legislação, que não haja intocáveis”, e que “este relatório vem demonstrar que os Portugueses pagaram um dos bilhetes mais caros da História Portuguesa sem reembolso e só de ida, sem volta”. E, lembrando que, nas negociações do Orçamento do Estado, tem ouvido, por parte dos sucessivos governos, “que não há dinheiro”, assinala que, “pelos vistos, há dinheiro para as negociatas, como foi o caso da TAP”, insistindo que o executivo tem de garantir que “todo e qualquer cêntimo que foi injetado é devolvido aos Portugueses”. 

O PCP, ao invés da IL (que pensa que os privados gerem melhor), considera estar, hoje, “mais do que comprovado que a privatização da TAP não é solução”, mas é “insistir num processo que é prejudicial para o país e para o interesse nacional não pode ser”. Adverte que esta auditoria surge num momento em que também é noticiado que estão no país “elementos da Lufthansa para discutirem com o governo a privatização da TAP que o governo PSD e CDS quer, agora, também [fazer] avançar”. E anunciou que vai propor que o âmbito da audição de Maria Luís Albuquerque sobre a privatização da ANA, agendada para dia 11 de setembro, seja alargado, para ouvir, na AR, também Miguel Pinto Luz, que, em 2015, era secretário de Estado das Infraestruturas, Transportes e Comunicações, no segundo governo de Passos Coelho, que caiu, após ter sido rejeitado o seu programa na AR, mas que concluiu, na mesma, o processo de privatização da TAP.

Além disto, o PCP quer confrontar o PS, o PSD, a IL e o Chega com uma iniciativa legislativa para travar a privatização da TAP e para garantir a gestão pública da TAP e o desenvolvimento da própria companhia. “O que se exige, por parte do governo, é que adote as medidas necessárias de valorização da companhia, que vá ao encontro dos interesses do país, que garanta uma gestão transparente e eficaz e, naturalmente, subordinada ao interesse nacional”, defende.

A auditoria não traz novidades, mas enquadra, devidamente, numa só peça o que já constava (2005-2023). Todavia, é de questionar como, tendo as auditorias sido remetidas para o MP, não há (não parece haver) processos em marcha e, como havendo tanta “bagunça” na TAP, só caiu o Carmo e a Trindade com a tentativa de indemnização de meio milhão à ex-gestora dispensada.

2024.09.03 – Louro de Carvalho

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