A 18
setembro, a situação das prisões mereceu uma desadequada troca de galhardetes
político-partidários na Assembleia da República (AR). O Partido Social Democrata
(PSD) e o Partido do Centro Democrático Social – Partido Popular (CDS-PP) responsabilizaram o Partido
Socialista (PS) por falhas no sistema prisional, com o PS, do seu lado, a
acusar a direita pela situação dos reclusos e por tratar as prisões como “depósitos de pessoas
que não interessam”.
A troca de acusações decorreu na AR, durante a
interpelação ao governo, agendada pelo Chega, sobre “O estado dos Estabelecimentos
Prisionais”, em que esteve presente a ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice,
e que foi marcada após a fuga, em 7 de setembro, de cinco reclusos do
Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus, em Alcoentre.
No início do debate, a governante respondeu a críticas
do líder parlamentar do Chega, Pedro Pinto, que a acusou de ter desaparecido na
altura. “A ministra não desapareceu, a ministra não desaparece, esteve atenta,
a acompanhar os assuntos desde a primeira hora”, retorquiu Rita Júdice,
pormenorizando que estava no Norte do país, num casamento de onde regressou no
próprio dia, mal teve conhecimento do que se passava, após pedir aos seguranças
do Ministério que a fossem buscar. “Não preciso de estar nas luzes da ribalta,
mas preciso, com certeza, de ajudar”, frisou.
No debate, a deputada social-democrata Paula Margarido
afirmou que o tema exige “a maior seriedade e honestidade intelectual, que não
é compatível com politiquices”, e julgou urgente fazer uma “resenha histórica”,
na qual responsabilizou vários governos do PS pelas atuais falhas no sistema
prisional. Neste sentido, evocou um relatório de 2017, altura em que Francisca
Van Dunem era ministra da Justiça do primeiro governo de António Costa, que
fazia um diagnóstico da situação e avançava com algumas medidas para os dez
anos seguintes.
“Mais uma vez este plano foi esquecido e ficou na
gaveta pelo PS”, lamentou, exprimindo preocupação pelas condições de vida nas
prisões e pela carreira dos guardas prisionais.
Também o deputado João Almeida, do CDS-PP, partido que
integra o governo com o PSD, deixou as mesmas críticas aos socialistas: “Durante
sete anos, o PS, que tinha em suas mãos um relatório que o próprio tinha pedido,
não fez nada”, criticou.
O presidente do Chega, André Ventura, juntou-se às
críticas e apontou ao ex-primeiro-ministro do PS. “O antigo primeiro-ministro,
António Costa, deveria assumir esta particular responsabilidade: afinal quem
desativou as torres de vigia dos sistemas prisionais? Quem reduziu o número de
guardas a um mínimo histórico neste país? Afinal quem não deu à guarda
prisional as caraterísticas legais que lhe permitiria agir como outro órgão de
polícia criminal?”, questionou.
Pelo PS, a deputada Cláudia Santos argumentou que um
dos problemas do agendamento do Chega é que “faz supor que o único problema do sistema
prisional é a segurança”. “É evidente que, em qualquer cadeiam a segurança é
fundamental, mas é apenas um dos dois pilares do sistema prisional. O outro é a
ressocialização, que implica a humanidade do sistema. Mas desse investimento
não quer a direita saber. Para a direita, as cadeias são depósitos de pessoas que
não interessam, que devem ser mantidas o mais longe possível do olhar dos
cidadãos de bem”, acusou.
A deputada do PS Isabel Moreira salientou o facto de
vários relatórios internacionais alertarem para problemas no sistema prisional
português, nomeadamente, para as condições dos reclusos, como a sobrelotação de
estabelecimentos ou as longas penas. E sustentou que “o encarceramento nem
sempre é a melhor solução e, muitas vezes, pode ser a pior”. “Uma coisa é
certa: a questão da segurança prisional é uma questão ampla e não encontra
solução boa na reconstrução das torres de vigilância ou na eletrificação da
rede de arame farpado. Quem assim pensar está a pensar no rescaldo de uma fuga
e não na serenidade da razão, dos factos, e do que são, efetivamente, os problemas
do nosso sistema prisional”, argumentou.
O líder parlamentar do Chega pediu mais investimento
na carreira dos guardas prisionais e afirmou que não fogem mais reclusos das
prisões portuguesas, “porque não querem”.
A líder parlamentar da Iniciativa Liberal (IL),
Mariana Leitão, acusou os governos dos últimos 10 anos de terem conhecimento
dos problemas e deixarem que estes subsistam; e o comunista António Filipe
avisou que “cada governo anuncia que vai fazer um diagnóstico, depois faz o
diagnóstico, conclui que há medidas a tomar, mas, depois, não as toma”.
A coordenadora do Bloco de Esquerda (BE), Mariana
Mortágua, advertiu que “as condições de segurança das prisões não são alheias
às condições de trabalho dos guardas prisionais e à insuficiência de investimento”
e alertou para as “condições sub-humanas em que vive a população prisional”.
Foram alertas também deixados pelo deputado do Livre, Paulo Muacho, que afirmou
que “o diagnóstico está mais que feito”.
***
Entretanto, a 14 de setembro, o secretário-geral da
Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso (APAR), Vítor Ilharco, mostrou-se surpreendido
com a facilidade com que os cinco reclusos se evadiram. Frisando que “as fugas nas cadeias nunca” o surpreendem, “porque não há
nenhum recluso” que tenha “24 horas para pensar”, que esteja “numa situação degradante,
que não pense em fugir”, disse que aquilo que o surpreende é “a relativa facilidade com que eles fugiram”.
A apresentação, um pouco por todo o país, do livro Sistema
Prisional Português – Toda a Verdade, de Vítor Ilharco, surge quando o
sistema prisional está na ordem do dia, com a fuga de cinco reclusos da cadeia
de Vale Judeus. As críticas de Vítor Ilharco estendem-se à organização das
cadeias que “misturam condenados com presos preventivos, condenados a grandes
penas com outros com penas pequenas”. “Mesmo
nesta prisão de alta segurança, os próprios agentes dizem que um dos que fugiu
não oferece perigo nenhum. Foi condenado a sete anos. Se não oferece perigo
nenhum, por que é que está numa cadeia de alta segurança?”, questionou.
Segundo Vítor Ilharco, na prisão de Vale de Judeus, há
presos há mais de 35 e 40 anos, quando a pena máxima em Portugal é de 25 anos. “Há
uma maneira encapotada de condenar as pessoas a prisão perpétua, numa prisão
onde se passa fome. Não há cúmulos jurídicos e os detidos vão acumulando penas
sucessivas”, explica.
O livro relata “as verdades
que se passam nas cadeias e as pessoas desconhecem”, adiantou à Lusa o secretário-geral da APAR, ao
alertar para a “sobrelotação” e para a falta de reabilitação dos reclusos, que “deveria
ser o aspeto principal da prisão”. “A nossa
lei diz que a cadeia serve para reabilitar e punir, por esta ordem, a própria
Direção-Geral chama-se Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, mas,
depois, ninguém se preocupa com a reabilitação”, lamentou.
Vítor Ilharco denuncia que existem “12400 presos e
menos de 20 psicólogos, para as 49 cadeias”.
No livro, “retrata o
dia-a-dia das prisões, como é que são por dentro, como é o que é alimentação, a
dificuldade ou a impossibilidade total de estudar, os maus cuidados de saúde,
com o Serviço Nacional de Saúde ausente das cadeias”.
Os dados, afirmou Vítor Ilharco, são do Ministério da
Justiça (MJ) e da União Europeia (UE). “Durante 30 anos, estudámos
profundamente todo o sistema prisional e tudo o que diz respeito às cadeias
portuguesas”, explicou, referindo que a primeira edição do livro esgotou, mas
não chegou a ser apresentada publicamente, devido à pandemia da covid-19.
Apresentado, em segunda edição, na Câmara Municipal da
Covilhã, integrado nas comemorações do 25 de Abril, o livro “aborda tudo: desde
a investigação levada a cabo pela Polícia Judiciária [PJ] e pelo Ministério
Público [MP] aos julgamentos, à prisão, ao cumprimento da pena e depois à
preparação para sair e à saída”. “Tentam esconder a realidade das cadeias. É
das coisas mais inconcebíveis do que se pode imaginar dentro do sistema
prisional, que é terceiro-mundista. As nossas cadeias são medievais”, apontou.
Vítor Ilharco adiantou que Portugal “é um país
estranho”, já que é um dos mais seguros da Europa, “tem a mais baixa taxa de
criminalidade, mas, em simultâneo, é o país que tem mais presos per capita”. “É aquele onde as penas de
prisão, que são efetivamente cumpridas, são as mais elevadas. A média na Europa
do cumprimento de penas de prisões é de sete meses e em Portugal é de três anos
e dois meses”, revelou.
***
Rui Abrunhosa
Gonçalves, ex-diretor-geral dos Serviços Prisionais, considerou, Em entrevista
à RTP, a 13 de setembro, que as
falhas de segurança na fuga de cinco reclusos de Vale de Judeus têm também de
ser apontadas aos guardas prisionais de serviço. E, ao ser questionado sobre quem
falhou na fuga que levou à sua demissão, respondeu: “Os guardas.”
Segundo Rui Gonçalves,
na prisão há duas grandes populações, os reclusos e os guardas. Os guardas
estão, sobretudo, para exercer segurança. E houve falhas na segurança exploradas
pelos reclusos. “É isso que está a ser apurado”, disse, aludindo ao processo de
averiguações interno da Auditoria e Inspeção dos Serviços Prisionais e ao
inquérito-crime dirigido pelo MP, sustentando que é “preciso perceber se essas
falhas foram falhas de desleixo, se foram propositadas ou se, pelo contrário,
existe uma outra circunstância fortuita”.
Na central de
videovigilância da cadeia, o guarda é rendido de hora a hora e que o caso
aponta para a mudança de turno e os cinco minutos seguintes. “As pessoas estão
lá, as câmaras estão lá”, vincou o ex-responsável máximo das prisões, notando
que, apesar de haver muitas câmaras na central, apenas algumas (as que davam
para o perímetro da cadeia) tinham interesse para o guarda de serviço, porque,
aos sábados, as oficinas e outras instalações estão fechadas.
Questionado
sobre se admite que poderá ter havido conivência ou cumplicidade de algum
guarda ou outro funcionário da prisão na fuga, salientou que, “neste momento e neste
cenário, tudo é admissível”, mas advertiu que é “preciso esperar pelo resultado
das investigações”. Contudo, reconhece que, em outras situações, como entrada
de telemóveis, de droga e de outros objetos proibidos nas cadeias, se
verificaram ligações a funcionários dessas cadeias, incluindo guardas.
Quanto à saída
do cargo, afirmou que estava cônscio de que, “nestas circunstâncias, há sempre
cabeças que rolam” e, sendo, na altura, o dirigente máximo das prisões,
percebeu que isso poderia acontecer, tanto mais que “nada e ninguém se chegou à
frente, para fazer algum tipo de declaração em defesa dos dirigentes” das
cadeias. Por outro lado, revelou que, há mais de um ano, tinha pedido ao MJ o
reforço do efetivo de guardas prisionais. Porém, sustentou que os 33 guardas
existentes no dia da fuga eram suficientes para assegurar o serviço de
segurança e demais tarefas.
***
Um
relatório do Conselho da Europa, de 2023, decorrente de visita do Comité para a
Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos ou Degradantes (CPT)
ao Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL), em 2022 – por denúncia de sobrelotação,
de maus tratos, de falta de limpeza, de iluminação, de manutenção estrutural
das instalações e de mobiliário essencial –, é de referir que o EPL estava em
vias de encerramento, o que o relatório elogia.
Contudo,
o governo dizia que, apesar do encerramento a breve prazo, se investia na
manutenção do edifício enquanto permanecer em uso (por exemplo, estava
em reparação a cobertura do edifício central); que estava em curso a renovação
de infraestruturas existentes em outras prisões próximas de Lisboa; e que,
em relação a maus tratos, se segue a política de tolerância zero.
Além
disso, a tutela referiu que, entre 2017 e 2021, foram instalados CCTV (circuito
fechado de televisão) em 29 prisões e que estava em andamento “a instalação
progressiva deste equipamento noutras prisões”; e apontava a intenção de
instalação de telefones fixos nas celas, com função de campainha, “superando
assim o problema de falhas recorrentes do sistema de emergência”.
***
Os
políticos ralham e todos têm um pouco de razão. Os governos investem, mas não o
suficiente. As prisões são seguras, mas os reclusos fogem. Os funcionários
terão culpa (Quem cuida da sua carreira e da sua formação?), mas as administrações
e a tutela não podem assobiar para o lado. A oposição consegue tudo, o governo
não. E a reinserção é o parente pobre do sistema prisional.
2024.09.19 –
Louro de Carvalho
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