quinta-feira, 19 de setembro de 2024

A situação das prisões é problema de todos os governos

 

A 18 setembro, a situação das prisões mereceu uma desadequada troca de galhardetes político-partidários na Assembleia da República (AR). O Partido Social Democrata (PSD) e o Partido do Centro Democrático Social – Partido Popular (CDS-PP) responsabilizaram o Partido Socialista (PS) por falhas no sistema prisional, com o PS, do seu lado, a acusar a direita pela situação dos reclusos e por tratar as prisões como “depósitos de pessoas que não interessam”.

A troca de acusações decorreu na AR, durante a interpelação ao governo, agendada pelo Chega, sobre “O estado dos Estabelecimentos Prisionais”, em que esteve presente a ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, e que foi marcada após a fuga, em 7 de setembro, de cinco reclusos do Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus, em Alcoentre.

No início do debate, a governante respondeu a críticas do líder parlamentar do Chega, Pedro Pinto, que a acusou de ter desaparecido na altura. “A ministra não desapareceu, a ministra não desaparece, esteve atenta, a acompanhar os assuntos desde a primeira hora”, retorquiu Rita Júdice, pormenorizando que estava no Norte do país, num casamento de onde regressou no próprio dia, mal teve conhecimento do que se passava, após pedir aos seguranças do Ministério que a fossem buscar. “Não preciso de estar nas luzes da ribalta, mas preciso, com certeza, de ajudar”, frisou.

No debate, a deputada social-democrata Paula Margarido afirmou que o tema exige “a maior seriedade e honestidade intelectual, que não é compatível com politiquices”, e julgou urgente fazer uma “resenha histórica”, na qual responsabilizou vários governos do PS pelas atuais falhas no sistema prisional. Neste sentido, evocou um relatório de 2017, altura em que Francisca Van Dunem era ministra da Justiça do primeiro governo de António Costa, que fazia um diagnóstico da situação e avançava com algumas medidas para os dez anos seguintes.

“Mais uma vez este plano foi esquecido e ficou na gaveta pelo PS”, lamentou, exprimindo preocupação pelas condições de vida nas prisões e pela carreira dos guardas prisionais.

Também o deputado João Almeida, do CDS-PP, partido que integra o governo com o PSD, deixou as mesmas críticas aos socialistas: “Durante sete anos, o PS, que tinha em suas mãos um relatório que o próprio tinha pedido, não fez nada”, criticou.

O presidente do Chega, André Ventura, juntou-se às críticas e apontou ao ex-primeiro-ministro do PS. “O antigo primeiro-ministro, António Costa, deveria assumir esta particular responsabilidade: afinal quem desativou as torres de vigia dos sistemas prisionais? Quem reduziu o número de guardas a um mínimo histórico neste país? Afinal quem não deu à guarda prisional as caraterísticas legais que lhe permitiria agir como outro órgão de polícia criminal?”, questionou.

Pelo PS, a deputada Cláudia Santos argumentou que um dos problemas do agendamento do Chega é que “faz supor que o único problema do sistema prisional é a segurança”. “É evidente que, em qualquer cadeiam a segurança é fundamental, mas é apenas um dos dois pilares do sistema prisional. O outro é a ressocialização, que implica a humanidade do sistema. Mas desse investimento não quer a direita saber. Para a direita, as cadeias são depósitos de pessoas que não interessam, que devem ser mantidas o mais longe possível do olhar dos cidadãos de bem”, acusou.

A deputada do PS Isabel Moreira salientou o facto de vários relatórios internacionais alertarem para problemas no sistema prisional português, nomeadamente, para as condições dos reclusos, como a sobrelotação de estabelecimentos ou as longas penas. E sustentou que “o encarceramento nem sempre é a melhor solução e, muitas vezes, pode ser a pior”. “Uma coisa é certa: a questão da segurança prisional é uma questão ampla e não encontra solução boa na reconstrução das torres de vigilância ou na eletrificação da rede de arame farpado. Quem assim pensar está a pensar no rescaldo de uma fuga e não na serenidade da razão, dos factos, e do que são, efetivamente, os problemas do nosso sistema prisional”, argumentou.

O líder parlamentar do Chega pediu mais investimento na carreira dos guardas prisionais e afirmou que não fogem mais reclusos das prisões portuguesas, “porque não querem”.

A líder parlamentar da Iniciativa Liberal (IL), Mariana Leitão, acusou os governos dos últimos 10 anos de terem conhecimento dos problemas e deixarem que estes subsistam; e o comunista António Filipe avisou que “cada governo anuncia que vai fazer um diagnóstico, depois faz o diagnóstico, conclui que há medidas a tomar, mas, depois, não as toma”.

A coordenadora do Bloco de Esquerda (BE), Mariana Mortágua, advertiu que “as condições de segurança das prisões não são alheias às condições de trabalho dos guardas prisionais e à insuficiência de investimento” e alertou para as “condições sub-humanas em que vive a população prisional”. Foram alertas também deixados pelo deputado do Livre, Paulo Muacho, que afirmou que “o diagnóstico está mais que feito”.

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Entretanto, a 14 de setembro, o secretário-geral da Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso (APAR), Vítor Ilharco, mostrou-se surpreendido com a facilidade com que os cinco reclusos se evadiram. Frisando que “as fugas nas cadeias nunca” o surpreendem, “porque não há nenhum recluso” que tenha “24 horas para pensar”, que esteja “numa situação degradante, que não pense em fugir”, disse que aquilo que o surpreende é “a relativa facilidade com que eles fugiram”.

A apresentação, um pouco por todo o país, do livro Sistema Prisional Português – Toda a Verdade, de Vítor Ilharco, surge quando o sistema prisional está na ordem do dia, com a fuga de cinco reclusos da cadeia de Vale Judeus. As críticas de Vítor Ilharco estendem-se à organização das cadeias que “misturam condenados com presos preventivos, condenados a grandes penas com outros com penas pequenas”. “Mesmo nesta prisão de alta segurança, os próprios agentes dizem que um dos que fugiu não oferece perigo nenhum. Foi condenado a sete anos. Se não oferece perigo nenhum, por que é que está numa cadeia de alta segurança?”, questionou.

Segundo Vítor Ilharco, na prisão de Vale de Judeus, há presos há mais de 35 e 40 anos, quando a pena máxima em Portugal é de 25 anos. “Há uma maneira encapotada de condenar as pessoas a prisão perpétua, numa prisão onde se passa fome. Não há cúmulos jurídicos e os detidos vão acumulando penas sucessivas”, explica.

O livro relata “as verdades que se passam nas cadeias e as pessoas desconhecem”, adiantou à Lusa o secretário-geral da APAR, ao alertar para a “sobrelotação” e para a falta de reabilitação dos reclusos, que “deveria ser o aspeto principal da prisão”. “A nossa lei diz que a cadeia serve para reabilitar e punir, por esta ordem, a própria Direção-Geral chama-se Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, mas, depois, ninguém se preocupa com a reabilitação”, lamentou.

Vítor Ilharco denuncia que existem “12400 presos e menos de 20 psicólogos, para as 49 cadeias”.

No livro, “retrata o dia-a-dia das prisões, como é que são por dentro, como é o que é alimentação, a dificuldade ou a impossibilidade total de estudar, os maus cuidados de saúde, com o Serviço Nacional de Saúde ausente das cadeias”.

Os dados, afirmou Vítor Ilharco, são do Ministério da Justiça (MJ) e da União Europeia (UE). “Durante 30 anos, estudámos profundamente todo o sistema prisional e tudo o que diz respeito às cadeias portuguesas”, explicou, referindo que a primeira edição do livro esgotou, mas não chegou a ser apresentada publicamente, devido à pandemia da covid-19.

Apresentado, em segunda edição, na Câmara Municipal da Covilhã, integrado nas comemorações do 25 de Abril, o livro “aborda tudo: desde a investigação levada a cabo pela Polícia Judiciária [PJ] e pelo Ministério Público [MP] aos julgamentos, à prisão, ao cumprimento da pena e depois à preparação para sair e à saída”. “Tentam esconder a realidade das cadeias. É das coisas mais inconcebíveis do que se pode imaginar dentro do sistema prisional, que é terceiro-mundista. As nossas cadeias são medievais”, apontou.

Vítor Ilharco adiantou que Portugal “é um país estranho”, já que é um dos mais seguros da Europa, “tem a mais baixa taxa de criminalidade, mas, em simultâneo, é o país que tem mais presos per capita”. “É aquele onde as penas de prisão, que são efetivamente cumpridas, são as mais elevadas. A média na Europa do cumprimento de penas de prisões é de sete meses e em Portugal é de três anos e dois meses”, revelou.

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Rui Abrunhosa Gonçalves, ex-diretor-geral dos Serviços Prisionais, considerou, Em entrevista à RTP, a 13 de setembro, que as falhas de segurança na fuga de cinco reclusos de Vale de Judeus têm também de ser apontadas aos guardas prisionais de serviço. E, ao ser questionado sobre quem falhou na fuga que levou à sua demissão, respondeu: “Os guardas.”

Segundo Rui Gonçalves, na prisão há duas grandes populações, os reclusos e os guardas. Os guardas estão, sobretudo, para exercer segurança. E houve falhas na segurança exploradas pelos reclusos. “É isso que está a ser apurado”, disse, aludindo ao processo de averiguações interno da Auditoria e Inspeção dos Serviços Prisionais e ao inquérito-crime dirigido pelo MP, sustentando que é “preciso perceber se essas falhas foram falhas de desleixo, se foram propositadas ou se, pelo contrário, existe uma outra circunstância fortuita”.

Na central de videovigilância da cadeia, o guarda é rendido de hora a hora e que o caso aponta para a mudança de turno e os cinco minutos seguintes. “As pessoas estão lá, as câmaras estão lá”, vincou o ex-responsável máximo das prisões, notando que, apesar de haver muitas câmaras na central, apenas algumas (as que davam para o perímetro da cadeia) tinham interesse para o guarda de serviço, porque, aos sábados, as oficinas e outras instalações estão fechadas.

Questionado sobre se admite que poderá ter havido conivência ou cumplicidade de algum guarda ou outro funcionário da prisão na fuga, salientou que, “neste momento e neste cenário, tudo é admissível”, mas advertiu que é “preciso esperar pelo resultado das investigações”. Contudo, reconhece que, em outras situações, como entrada de telemóveis, de droga e de outros objetos proibidos nas cadeias, se verificaram ligações a funcionários dessas cadeias, incluindo guardas.

Quanto à saída do cargo, afirmou que estava cônscio de que, “nestas circunstâncias, há sempre cabeças que rolam” e, sendo, na altura, o dirigente máximo das prisões, percebeu que isso poderia acontecer, tanto mais que “nada e ninguém se chegou à frente, para fazer algum tipo de declaração em defesa dos dirigentes” das cadeias. Por outro lado, revelou que, há mais de um ano, tinha pedido ao MJ o reforço do efetivo de guardas prisionais. Porém, sustentou que os 33 guardas existentes no dia da fuga eram suficientes para assegurar o serviço de segurança e demais tarefas.

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Um relatório do Conselho da Europa, de 2023, decorrente de visita do Comité para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos ou Degradantes (CPT) ao Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL), em 2022 – por denúncia de sobrelotação, de maus tratos, de falta de limpeza, de iluminação, de manutenção estrutural das instalações e de mobiliário essencial –, é de referir que o EPL estava em vias de encerramento, o que o relatório elogia.

Contudo, o governo dizia que, apesar do encerramento a breve prazo, se investia na manutenção do edifício enquanto permanecer em uso (por exemplo, estava em reparação a cobertura do edifício central); que estava em curso a renovação de infraestruturas existentes em outras prisões próximas de Lisboa; e que, em relação a maus tratos, se segue a política de tolerância zero.

Além disso, a tutela referiu que, entre 2017 e 2021, foram instalados CCTV (circuito fechado de televisão) em 29 prisões e que estava em andamento “a instalação progressiva deste equipamento noutras prisões”; e apontava a intenção de instalação de telefones fixos nas celas, com função de campainha, “superando assim o problema de falhas recorrentes do sistema de emergência”.  

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Os políticos ralham e todos têm um pouco de razão. Os governos investem, mas não o suficiente. As prisões são seguras, mas os reclusos fogem. Os funcionários terão culpa (Quem cuida da sua carreira e da sua formação?), mas as administrações e a tutela não podem assobiar para o lado. A oposição consegue tudo, o governo não. E a reinserção é o parente pobre do sistema prisional.

2024.09.19 – Louro de Carvalho

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