O estudo “Quem paga as raspadinhas?”, promovido pelo Conselho
Económico e Social (CES), em parceria com a Universidade do Minho (UM), traça a
dimensão do vício e o perfil do jogador da lotaria instantânea. São os mais
pobres, mais velhos e com pior saúde mental que mais contribuem para os 4,1 milhões
de euros gastos por dia em raspadinhas.
A iniciativa foi lançada em maio de 2022, por
Francisco Assis, presidente do CES, que apontou “responsabilidades públicas” ao
vício deste jogo e manifestou expetativas de que fossem tomadas decisões para
minimizar a situação, após o conhecimento das conclusões. A sua realização esteve prevista para antes do
surgimento da covid-19, mas a pandemia e problemas de financiamento,
adiaram-no, avançando quando se juntaram ao projeto a Apifarma, a Fundação
Mestre Casais, a Fundação Social Bancária e a Fundação Manuel António da Mota.
Os resultados agora conhecidos dizem respeito à primeira
fase do referido estudo, faltando duas: a próxima, ainda sem data para
arrancar, focar-se-á nos jogadores, numa abordagem realizada nos locais de
venda, caraterizando estas pessoas, de forma mais fina, ou seja, com mais
perguntas que permitam perceber o diagnóstico da patologia de jogo; e a
ulterior será uma fase clínica, com um grupo reduzido de pessoas diagnosticadas
com processos complexos de dependência instalada. Far-se-ão ressonâncias
magnéticas para detetar alterações cerebrais que levam as pessoas a não se
controlarem perante o jogo, para se perceber se há um novo mecanismo cerebral
associado a esta adição, ativado pela visualização da raspadinha.
Já havia indicadores do perfil do comprador da
raspadinha, ou seja, do que torna este jogo o mais rentável da Santa Casa da Misericórdia
de Lisboa (SCML) – 1,5 mil milhões de euros de lucro bruto por ano: 4,1 milhões
por dia – e faz de Portugal o país com maior gasto per capita nesta
lotaria, dez vezes mais do que os espanhóis, mais do dobro da média europeia.
No quotidiano de cafés e de tabacarias ou nas consultas de psiquiatria,
percebe-se que os cartões de raspar atraem uma classe envelhecida, menos
esclarecida, pouco abonada.
O estudo valida, agora, de forma científica, e
aprofunda cada um dos traços do consumidor
frequente: tem mais de 50 anos, o ensino básico ou secundário e rendimentos
abaixo do ordenado mínimo. “Tal como outros jogos, também este funciona como um imposto regressivo,
em que quem tem menos meios de
subsistência é quem mais joga”, explica Luís Aguiar-Conraria, economista
e professor catedrático da UM, coordenador do estudo com Pedro Morgado,
psiquiatra do Hospital de Braga e investigador na Escola de Medicina da UM.
Através de 2554 inquéritos telefónicos, realizados a
residentes maiores de 18 anos, aferiu-se que 8,7% jogam regularmente e que o consumo de raspadinhas é três vezes mais
frequente entre quem aufere de 400 a 664 euros por mês do que por pessoas com vencimento
líquido superior a 1500 euros. Mesmo os que recebem menos de 400 euros têm
o dobro da probabilidade de raspar de forma regular, em comparação com as
classes de rendimento superior.
Por outro lado, os consumidores mais viciados são os que alegam sentir necessidade de
comprar raspadinhas para ganhar dinheiro. Dizem-no 83% das pessoas que
jogam diariamente e 58% das que o fazem semanalmente. E, como quem joga muito
em média perde dinheiro, conclui-se que a grande maioria tem perceções erradas
das probabilidades associadas aos prémios.
Turvam o julgamento a facilidade de aquisição, o valor
baixo da aposta, o prémio imediato.
Só foi possível apurar por
defeito quanto cada jogador gasta em raspadinhas, com a certeza de que o valor
declarado pelos entrevistados é desmentido pela realidade. Jogam todos os dias, porque precisam de dinheiro,
mas perdem a conta à chapa gasta ou omitem este dado.
Quanto a gasto anual médio, a amostra apresenta o
valor de 38 euros. Com base nos relatórios de contas da Santa Casa da
Misericórdia de Lisboa (SCML), seria de esperar um valor de 140 a 160 euros anuais.
Na origem desta subestimação estará o facto de os inquiridos não darem o valor
certo, por haver censura social ou sentimento de culpa, ou por não terem noção
do dinheiro em causa. “Seja como for, a realidade será sempre pior”, sustenta
Luís Aguiar-Conraria.
A tentar afinar o valor e compreender o enviesamento,
a equipa de investigadores da UM olhou para as entrevistas incompletas (1207),
não tidas em conta para os resultados. “Nessas, 231 indivíduos chegaram à
pergunta de quanto gastavam. Aí, o gasto médio é de 227 euros, isto é, cerca de
seis vezes superior à média da amostra das entrevistas completas. Assim, parece
que jogadores frequentes e que apostam grandes montantes tendem a parar de
responder. Porém, como a caraterística mais prevalente nos jogadores
problemáticos é a impulsividade e a impaciência, estes resultados
apresentam “per se” muita
relevância. “A subestimação dos
montantes gastos em jogo é uma das distorções cognitivas mais frequentes nas
pessoas com jogo problemático ou patológico”, explica-se.
Além do nível de rendimentos do consumidor, o estudo
permite apurar que a aquisição de
raspadinhas aumenta à medida que diminui o nível de ensino. Quem não completou
ao ensino secundário tem probabilidade quase seis vezes superior de jogar, por
oposição a quem tem mestrado ou doutoramento. Quanto a profissões – atual e passada, para caraterizar também os
reformados –, saltam à vista os
operários (mecânicos, eletricistas, pedreiros, estivadores, etc.) entre
os jogadores frequentes. Em matéria de idades, são os mais velhos, entre os 51 e os 65 anos, que em maior número compram
lotaria instantânea de forma regular.
A investigação considera que estes aspetos não estão
isentos da construção de expectativas erróneas sobre a probabilidade de ganho
por parte de quem joga, o que, em parte, justifica a maior frequência de jogo e
incrementa o potencial aditivo. Assim, a vulnerabilidade contextual e
socioeconómica emerge como dimensão crucial de compreensão dos problemas. Porém, quando o estudo se debruça sobre a
saúde dos compradores e sobre o grau de perturbação que a raspadinha traz às
suas vidas, é que mede o pulso ao vício. Entre os 2554 entrevistados, 79
jogadores revelaram risco moderado de desenvolver problemas de jogo, dos quais
31 dizem comprar frequentemente raspadinhas. Ou seja, o estudo conclui que
3,09% dos adultos está em risco de desenvolver problemas de jogo e que as
questões relacionadas com
raspadinhas podem afetar 1,21% dos maiores de 18 anos.
Extrapolando para a população nacional, dir-se-á que,
em cerca de 440 mil pessoas que jogam a
raspadinhas, há cerca de cem mil
adultos (quase 50%), com comportamentos problemáticos, dos quais cerca
de 30 mil apresentam perturbação de jogo patológico – número muito
significativo e elevado. Há, aqui,
ligeiramente mais mulheres do que homens, um traço deste jogo,
quando, na generalidade dos vícios, os homens estão em maioria. E, encontra-se,
neste grupo, neuroticismo instalado, de ansiedade, raiva, depressão, com alterações de humor e reações
impulsivas, o que não acontece noutros jogadores e que pode estar
associado a este jogo.
No grupo em que a adição das raspadinhas é
especialmente marcante, foram registados mais sintomas leves, moderados e
severos de depressão, de ansiedade e de stresse. Há também um consumo superior
de tabaco, de café, de bebidas energéticas, de álcool e de outras substâncias,
como cannabis ou cocaína, mostrando que são pessoas vulneráveis, no âmbito da
saúde.
A associação ao álcool acarreta preocupação acrescida,
promovendo desinibição e dificuldade nas tomadas de decisão promotoras de
saúde. Este facto, associado a caraterísticas estruturais prévias de
funcionamento psicológico, mais evidentes em pessoas com problemas de jogo,
indicia que estas ficarão mais vulneráveis ao contacto com os dispositivos de jogo.
A solução do problema não será proibir a venda de raspadinhas,
mas regulá-la. As pessoas precisam de ter uma forma de defesa, como sucede
noutros jogos. Devem ter a possibilidade de autoexclusão, em que o apostador
peça que o ponham numa lista de impedimento de compra de raspadinhas. Nem será
preciso mudar as leis. Pode ser a SCML a mudar as regras: limitar a venda diária
a cada pessoa; não entregar o prémio na hora, para não ser gasto em mais jogo; aumentar a literacia financeira das pessoas (por
exemplo, levá-las a não deitar fora a raspadinha não premiada, tornando
saliente a despesa total ao fim de um período de tempo; fazer campanha contra o
excesso de otimismo, fornecer estatísticas de gastos, etc.); não dar destaque à
raspadinha no local de venda; não deixar jogar ali; desincentivar a compra, por
exemplo, alegando não haver troco.
***
Porém, a SCML refere que a raspadinha motiva só 12% dos pedidos de ajuda à
instituição.
Todos os dias
úteis, entre as 14 horas e as 18 horas, a Linha de Apoio ao Jogo Responsável,
da SCML, atende quem tem problemas de jogo, bem como familiares e amigos dos
apostadores. Em 2022, recebeu 274 contactos e 135 dos casos (quase 50%) revelaram
necessidade de apoio psicológico, sendo reencaminhados para equipas de
tratamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS) na zona de residência ou
referenciados para acompanhamento continuado da própria linha.
O número de chamadas anuais tem descido (diminuiu 25% de 2021 para 2022),
mas, nos últimos cinco anos, só em 2019, a gravidade das adições relatadas
obrigou a mais encaminhamentos para apoio especializado. São apostadores de
diversos tipos de jogos a dinheiro, físicos ou online, dos Jogos Santa Casa ou
de outros operadores, não existindo até ao momento uma predominância vincada de
qualquer tipo.
A raspadinha, que dá 4,1 milhões de euros de lucro diário bruto à SCML,
origina 12% das chamadas de jogadores cuja dependência necessitou de
intervenção clínica, um peso que vem a diminuir ao longo dos anos (era de 20%,
em 2018). Não chegam, pois, ali os 100 mil viciados nos cartões da lotaria
instantânea, entre os quais 30 mil (quase um terço) com perturbação de jogo
patológico, números revelados pelo estudo.
Quem tem menos dinheiro é quem mais joga, na tentativa (quase sempre
frustrada) de multiplicar os rendimentos. Com 30 cêntimos pode-se ganhar €4500
nas “Letras da Sorte”, €6000 no “Cosmic Pop” ou €7500 na “Joaninha da Fortuna”.
Um euro pode render €10 mil no “Mineiro Sortudo” ou €15 mil na “Sorte do
Feiticeiro”. E com aposta máxima de €10 pode sair-se do quiosque com €504 mil,
dados pelo “Mega Pé de Meia”.
A provedora da SCML, Ana Jorge, assegura que as recomendações serão
analisadas e tidas em conta, estando a instituição disponível para trabalhar
com várias entidades, a fim de “encontrar soluções dentro do quadro da saúde
mental”. Sem falar de medidas concretas – é prematuro –, alerta para as
especificidades da lotaria instantânea, que “impõem uma série de
constrangimentos técnicos” na aplicação de soluções mais restritivas, e defende
que “o principal trabalho passa pelo reforço da prevenção e educação junto da
sociedade, porque a informação e a consciencialização são a melhor forma de
prevenir ou atenuar o problema das dependências”.
Ana Jorge quer reforçar a ligação da SCML com o Serviço de Intervenção nos
Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD). Para tal, conta com a
concordância do diretor-geral, João Goulão, que quer passar dos contactos
informais para uma relação mais institucional, que permita a construção e a
execução conjunta de planos estratégicos e planos de ação. Para tal contribuirá
o reforçado poder executivo e de intervenção do futuro Instituto para os
Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD), aprovado em Conselho de
Ministros, que sucederá ao SICAD.
Do lado do governo, coube a Ana Mendes Godinho reagir à dimensão da
dependência nacional da raspadinha, revelada pelo estudo. A ministra do
Trabalho, Solidariedade e Segurança Social garantiu que o Executivo avaliará o
estudo e, em função disso, implementará medidas.
***
A importância deste estudo do CES consiste em fornecer aos decisores o estado
da arte e levá-los a tomar as medidas adequadas para a eliminação ou para a minimização
dos problemas, sobretudo através da sensibilização pública, da educação e da fiscalização.
2023.09.23 – Louro de Carvalho
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