Os cristãos, individualmente considerados, e a Igreja, que os
convoca e que é formada por eles, vinculados a Cristo e entre si, estão permanentemente
instados a perdoar sempre, de forma radical e sem limites. É uma das mais
difíceis exigências que Jesus nos faz e que é condição essencial para a edificação
e para a eficácia do Reino de Deus. Jesus deu testemunho do perdão, que espelha
o amor, a bondade e a misericórdia do Pai, em gestos concretos, sobretudo na
cruz.
***
A primeira leitura do 24.º domingo do Tempo Comum no Ano A (Sir 27,33-28,9) deixa claro que a ira e
o rancor, em que o pecador é mestre, são sentimentos maus, que não convêm à felicidade
do homem; mostra a ilógica da espera do perdão de Deus aliada à recusa de
perdoar ao irmão; e adverte que a vida não pode ser estragada com sentimentos
de sofrimento e de infelicidade.
O Livro de Ben Sirah
(ou Eclesiástico), como os outros
livros sapienciais, apresenta uma reflexão prática sobre a arte de bem viver e
de ser feliz.
É o início do século II a.C., depois de o helenismo ter
começado o seu trabalho de minação da cultura e dos valores de Israel. Jesus
Ben Sirah, autor do livro, está preocupado com a degradação dos valores do seu
Povo e com as cedências, sobretudo dos jovens, à cultura grega. A fé dos pais
corre o risco de desaparecer ou, ao menos, de perder a sua identidade. Por
isso, Ben Sirah procura apresentar uma síntese da religião e da sabedoria de
Israel, vincando a grandeza dos valores judaicos e mostrando que a cultura
judaica não fica a dever nada à brilhante cultura grega. Assim, num compêndio
de sabedoria, pretende demonstrar aos compatriotas que Israel possui, na Torah,
revelada por Deus, a verdadeira sabedoria – muito superior à sabedoria grega.
O trecho bíblico tomado para a liturgia desta dominga integra
uma secção (cf Sir 24,1-42,14), onde Ben
Sirah quer demonstrar que a sabedoria – criatura de Deus, oferecida a todos os
homens piedosos (cf Sir 1,1-23,38) –
tem campo especial de ação em Israel, o Povo eleito de Deus. E, em vez de aparecer
uma estrutura clara e coerente, os temas sucedem-se e as “máximas” dominam para
ensinar os comportamentos que a assumir nas relações sociais.
O trecho em apreço aparece, na maior parte das versões
recentes da Bíblia, numerado como 27,30-28,7 e não como 27,33-28,9. No entanto,
conserva-se esta numeração, a do Lecionário
Dominical, que segue uma versão latina, mais longa do que a versão grega,
que serve de base às traduções mais recentes do Livro de Ben Sirah.
Ben Sirah ensina que a
verdadeira sabedoria está em não se deixar dominar pelo rancor, pela ira e pelos
sentimentos de vingança. O sábio (o que quer ter êxito e ser feliz) é o que perdoa
as ofensas do seu semelhante e tem compaixão dele.
É de realçar a relação estabelecida entre o perdão humano e o
perdão divino: quem se recusa a perdoar ao irmão, não pode ter a coragem de
pedir o perdão de Deus. Ao invés, quem perdoa as ofensas do outro, pode
implorar e esperar o perdão do Senhor para as próprias faltas. Ao menos dois
séculos antes de Cristo o judaísmo tinha descoberto a relação entre o perdão
que Deus nos oferece e o perdão que ele nos convida a oferecer aos irmãos. E,
para tornar mais eficaz o seu apelo, Ben Sirah exorta os concidadãos a
lembrarem-se da morte: “Pensa no teu fim e deixa de ter ódio”… Ante a realidade
final, não fazem sentido os sentimentos de rancor, de ira, de vingança que
alimentamos; e não podemos, com coerência, esperar o perdão final de Deus, se a
nossa vida é vivida na lógica do ódio e da vingança.
No essencial, é o apelo à inversão da lógica do “olho por
olho, dente por dente” – a pena de Talião, inscrita no Código de Hamurabi (que
já estabelecia uma pena proporcionada, embora cruel, comparativamente à pratica
anterior, que abusava da pena de morte) –, para que as nossas relações com os
irmãos sejam marcadas por sentimentos de perdão e de misericórdia. É dessa
forma que o homem construirá a sua felicidade na terra e é assumindo esta
lógica que poderá pedir e esperar de Deus o perdão para as suas faltas.
Estes valores tornam-se complicados
à luz da lógica que preside à mentalidade do Mundo, para a qual perdoar é
próprio dos fracos, dos vencidos, dos que desistem de impor a sua personalidade
e mundivisão. Ora, para Deus, perdoar é dos fortes, dos que sabem o que é importante,
dos que renunciam ao orgulho e à autossuficiência para apostar num mundo novo
de relações interpessoais novas e verdadeiras. E, enquanto a lógica do Mundo
aumenta a espiral de violência, de injustiça, de morte, a lógica de Deus ajuda
a mudar os corações e frutifica em gestos de amor, de partilha, de diálogo e de
comunhão. Todavia, nem sempre seguidores de Cristo se colocam na rota e no
dinamismo do perdão, ajudando a instaurar uma realidade mais humana, harmoniosa
e feliz.
Perdoar não é ceder ante quem nos magoa e nos ofende, não é
encolher os ombros e avançar com a barriga para a frente quando nos confrontamos
com situações de sofrimento e de morte para nós ou para os irmãos, não é deixar
correr enquanto as coisas não nos afetam diretamente, não é pactuar com
injustiças e opressões, não é tolerar tudo num silêncio de cobardia e de
conformismo. E perdão não é passividade, conformismo, cobardia, indiferença,
mas disponibilidade permanente para ir ao encontro do irmão, estender a mão,
reatar o diálogo, dar nova oportunidade.
***
O Evangelho (Mt 18,21-35),
de que a primeira leitura é um poderoso antelóquio, recorda-nos – mais clara e
concludentemente – o que Ben Sirah sugere: quem faz a experiência do perdão de
Deus envolve-se numa dinâmica de misericórdia que tem, necessariamente,
implicações na forma de abordar os irmãos que falharam. Não dizemos que Deus
não perdoa a quem é incapaz de perdoar aos irmãos, mas dizemos que experimentar
o amor de Deus e deixar-se transformar por Ele significa assumir para com os
irmãos nova atitude de bondade, de compreensão, de misericórdia, de
acolhimento, de amor. Perdoando e acolhendo o perdão, pertencemos ao Senhor e
vivemos para Ele. Perdoa quem ama e ama quem perdoa.
Continuamos o discurso eclesial, que preenche o capítulo 18
do Evangelho Mateus. Por detrás do trecho que a liturgia desta dominga assume, entrevemos
uma comunidade onde a tensão e o conflito degeneram em ofensa pessoal, havendo
muita dificuldade em perdoar. Ora, como se viu na primeira leitura, o mandamento
do perdão não é novo. Os catequistas de Israel ensinavam a perdoar as ofensas e
a não guardar rancor contra o irmão que tinha cometido qualquer erro. Porém, os
mestres de Israel estavam de acordo em que a obrigação de perdoar existia
apenas em relação aos membros do Povo de Deus, ficando excluídos dela os
inimigos.
E a discussão girava à volta do número-limite de vezes em que
se devia perdoar. Com efeito, todos – desde os mais exigentes aos mais
misericordiosos – aceitavam que o perdão tem limites, pelo que não se deveria
perdoar indefinidamente. É, pois, nesta problemática que Jesus é envolvido
pelos discípulos. Pedro, o porta-voz da comunidade, consulta Jesus acerca dos
limites do perdão, sabendo que Jesus tem, quanto a isto, ideias radicais e, com
ironia, pergunta a Jesus se, na sua ótica, se deve perdoar até sete vezes. Era
número já considerado perfeito (na cultura semita, indica totalidade) e humanamente
excessivo.
Porém, Jesus reforça o perdão que deve ser dado sempre com a
expressão “setenta vezes sete” (49 é o quadrado de 7, pelo que se pode
considerar o cúmulo da perfeição), ou seja, o perdão deve ser oferecido sempre
e de forma ilimitada, total e absoluta. Deve-se perdoar tudo, sempre, a toda a
gente (mesmo aos inimigos) e sem qualquer reserva, sombra ou prevenção.
É letal o propósito de não perdoar nem à hora da morte – dizem-no
alguns cristãos. Como ousam então rezar no Pai-nosso: “Perdoa-nos as nossas
ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”? É óbvio que quem não
perdoa, quando reza o Pai-nosso, está a pedir a Deus que o condene: que lhe perdoe
como ele. Ora, se ele não perdoa…
Também há quem exija, para perdoar, que o ofensor venha até ao
ofendido pedir-lhe perdão de joelhos. Nesse caso, o objetivo não é perdoar, mas
humilhar e, complementarmente, conceder o perdão como se fôssemos seus donos.
Aliás, o Evangelho mais longe, ao estabelecer: se alguém estiver junto do altar
com a sua oferta e se lembrar de que o irmão tem algo contra si (não é só se
alguém tem alguma coisa contra ele), deixe a oferta e vá, primeiro, reconciliar-se
com o irmão (cf Mt 5,20-26). Depois,
há quem decida só perdoar algumas coisas. Ora perdão parcial só é admissível em
política e nos tribunais.
É neste contexto – de caminho do ofensor para o ofendido e do
ofendido para o ofensor, com vista à reconciliação e ao perdão – e a propósito
da lógica do perdão (de sempre, total e ilimitado, de tudo e a todos) que Jesus
propõe aos discípulos uma parábola, que se apresenta em três cenas.
A primeira é uma cena de corte: um funcionário real, na hora
de prestar contas ao seu senhor, revela-se incapaz de saldar a sua dívida. O
senhor ordena que o funcionário e a família sejam vendidos como escravos; mas, ante
a humildade e a submissão do servo, deixa-se dominar por sentimentos de
misericórdia e perdoa a dívida toda (não só uma ou algumas frações). O que
impressiona mais é o montante da dívida: 10 mil talentos. O talento equivalia a
cerca de 36 Kg e podia ser em ouro ou em prata. Dez mil talentos é, portanto,
uma soma incalculável. A hipérbole da dívida releva, aqui, a misericórdia
ilimitada do senhor. A segunda cena mostra como o funcionário que experimentou
a misericórdia do seu senhor se recusou, logo a seguir, a perdoar um companheiro
que lhe devia cem denários. Um denário equivalia a 12 gramas de prata e era o pagamento
diário de um operário. Cem denários correspondiam, portanto, a quantia insignificante
para o alto funcionário do rei.
Postas as duas cenas em paralelo, sobressaem a desproporção
entre as duas dívidas e a diferença de atitudes e de sentimentos entre o senhor,
capaz de perdoar infinitamente, e o funcionário, incapaz de se converter à lógica
do perdão, apesar de ter experimentado a alegria de ser perdoado.
É desta diferença de comportamentos e de lógicas que resulta
a terceira cena: os outros companheiros do funcionário, chocados com a sua
ingratidão, informaram o rei do sucedido; e o rei, escandalizado com o
comportamento do funcionário, castigou-o duramente.
A parábola é uma catequese sobre a misericórdia de Deus.
Mostra como, na ótica de Deus, o perdão é ilimitado, total e absoluto. E
convida-nos a analisar as nossas atitudes e comportamentos, face aos irmãos que
erram. Mostra como a nossa lógica está, tantas vezes, distante da lógica de
Deus. Ante qualquer falha do irmão (por menos significativa que ela seja), assumimos
a pose de vítima magoada e, muitas vezes, tomamos atitudes de desforra e de
vingança que são o claro sinal de que não interiorizámos a lógica de Deus.
Finalmente, a parábola sugere que há uma relação (aliás já
afirmada na primeira leitura deste domingo) entre o perdão de Deus e o perdão
humano. Mateus não sugere que o perdão de Deus é condicionado e que só se
tornará efetivo se nós aprendermos a perdoar aos nossos irmãos. O que nos quer
dizer é que na comunidade cristã deve funcionar a lógica do perdão ilimitado,
pois, se essa é a lógica de Deus, terá de ser também a nossa lógica. E, se o
nosso coração não bater segundo a lógica do perdão, não terá lugar para acolher
a misericórdia, a bondade e o amor de Deus. Fazer a experiência do amor de Deus
transforma-nos o coração e ensina-nos a amar os irmãos, nomeadamente os que nos
ofenderam.
Porém, Deus não pagará na mesma moeda, punindo quem não for
capaz de viver segundo a lógica do perdão e da misericórdia. Na verdade, o
revanchismo e a vingança não fazem parte dos métodos de Deus. Mateus usa (ao
jeito semita) imagens fortes e dramáticas para vincar a urgência da lógica do
perdão, dela dependendo a construção da realidade nova de amor, de comunhão e
de fraternidade – a realidade do Reino.
***
Na segunda leitura (Rm 14,7-9),
Paulo sugere aos cristãos de Roma que a comunidade cristã tem de ser o espaço
do amor, do respeito, da aceitação das diferenças, do perdão. Ninguém deve
desprezar, julgar ou condenar os irmãos que têm perspetivas diferentes. Os seguidores
de Jesus devem ter presente que há algo de fundamental que os une a todos: Jesus
Cristo, o Senhor. Tudo o mais não tem grande importância.
Os versículos em apreço são o centro da perícopa. Paulo
recorda a todos – fortes e débeis – que pertencem ao Senhor: “Quer vivamos quer
morramos, é ao Senhor que pertencemos.” Isso é muito mais importante do que as
opiniões particulares acerca do caminho a percorrer para atingir o mesmo objetivo.
Os crentes, antes de se deixarem dividir e separar por questões secundárias (tipo
de alimentos que se devem comer, festas que se devem celebrar, jejuns que se
devem fazer), devem ter consciência do essencial da fé e do que os une: Jesus
Cristo, que morreu e ressuscitou para a todos dar a vida. A comunidade é uma
família de irmãos, reunida à volta do mesmo Senhor.
Por isso, em vez de condenar, perdoe; em vez de selecionar,
inclua; em vez, de justiçar, use de misericórdia (com misericórdia a verdadeira
justiça é mais eficaz e mais salvadora). Por outro lado, a comunidade deve
criar pessoas que perdoem e as pessoas devem tornar a comunidade cada vez mais
obreira e testemunha do perdão. É isto que nos faz entrar no caminho da perfeição,
rumo à santidade, a que todos somos chamados.
Por este caminho, assemelhar-nos-emos ao Senhor, que “é
clemente e compassivo, paciente e cheio de bondade”, e a nossa vida será de perpétuo
louvor e bendição ao seu nome santo.
2023.09.17
– Louro de Carvalho
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