Era de esperar, pois o prometido é devido. A ex-CEO (Chief Executive Officer) ou presidente da comissão executiva da TAP Air Portugal
(TAP), Christine Ourmièrs-Widener, intentou
uma ação judicial contra o grupo empresarial do Estado. A ação, noticiada
inicialmente pelo Eco online, deu
entrada no Juízo Central Cível de Lisboa, a 5 de setembro, segundo o portal Citius.
O processo tem o valor de 5 943 196,16 euros. Ou seja, são quase 6 milhões
de euros solicitados.
Já se sabia que a ex-presidente da TAP iria litigar, só não se sabia quando,
nem em que montante. A ex-gestora de topo tinha anunciado esta intenção e, após
as férias judiciais, o processo entrou na justiça.
Discordando do seu despedimento, decidido pelos ministros das
Infraestruturas e das Finanças, João Galamba e Fernando Medina, respetivamente,
considerava ter direito a bónus pelo seu desempenho na companhia – o que o governo
negou.
Christine Ourmières-Widener foi despedida, alegadamente, por “justa causa”,
no início do ano, na sequência do relatório da Inspeção-Geral das Finanças (IGF)
sobre o acordo de saída da administradora Alexandra Reis da TAP, tendo ficado
claro que Alexandra Reis tinha sido convidada a sair pela presidente da
comissão executiva e saiu com indemnização compensatória, quando foi comunicado
ao mercado que saía por motivos pessoais (falta de verdade: saiu por
incompatibilidade com a gestora de topo).
A justificar a exoneração por “justa causa” esteve o facto de a IGF ter
considerado ilegal o acordo de 500 mil euros que levou à saída da gestora, em
fevereiro de 2022. A IGF alegou que não tinham sido cumpridas as regras do
Estatuto do Gestor Público (EGP).
Christine Ourmières-Widener deixou, efetivamente, da liderança na TAP em
abril de 2023, no quadro da polémica em torno da sua gestão, e com a comissão
parlamentar de inquérito (CPI)em curso. Mostrou que saía triste, vincando que
deixava a TAP melhor do que a encontrara, em meados de 2021. A TAP, segundo
adiantou, terminou o ano de 2022 com um lucro de 65,6 milhões de euros,
antecipando em dois anos o previsto no plano de reestruturação, o que notícias
recentes parecem desmentir, ao referirem que, neste ano, a empresa passou de prejuízos
a lucros.
Entretanto, a gestora francesa, poucos meses depois de ter sido despedida, assumiu,
a 1 de julho, a presidência executiva das companhias aéreas Air Caraibes e
French Bee. Porém, nenhuma destas integra a lista pré-definida de 15 empresas
concorrentes da TAP e das suas rotas, a que era vedado à ex-gestora aceder, em
termos de trabalho, durante 12 meses, caso contrário, sofreria penalidades.
***
A ex-CEO da TAP espera que seja reposta toda a verdade. Contudo, apesar de
mostrar “confiança na justiça”, sustenta que qualquer decisão dos tribunais no
processo não apagará os enormes danos causados por uma demissão que considera
abrupta e injustificada: “Infelizmente, qualquer decisão que venha a ser tomada
não poderá reparar integralmente os enormes danos reputacionais e pessoais que
sofri e continuo a sofrer. Ninguém deveria passar pelo que passei, nem pessoal,
nem profissionalmente.”
Numa declaração enviada à agência Lusa,
um dia depois de ser conhecida a entrada do processo nos tribunais, no qual
exige mais de 5,9 milhões de euros, relembra que foi o governo que “convidou
uma gestora internacional, com uma carreira ascendente”, não tendo sido ela a
procurar a posição de CEO da TAP. O governo “convidou uma gestora
internacional, com uma carreira ascendente, garantiu o pagamento de um bónus
que foi decisivo para a minha aceitação e [para a] decisão de mudar toda a
minha família para Portugal, assinou um contrato por cinco anos, que foi
abrupta e injustificadamente interrompido”, refere.
Reitera que agiu “sempre com total transparência” e de “boa-fé” na
liderança da companhia aérea e recorda os resultados financeiros “nunca antes
obtidos”. E confessa: “Acredito na justiça, seja em Portugal, seja no
estrangeiro. Tenho mantido o silêncio, em respeito à TAP e aos seus
trabalhadores, pelo que lamento, uma vez mais, a reação pública do governo
sobre o processo.”
***
Questionada sobre o processo contra a TAP, a 6 de setembro, no briefing após a reunião do Conselho de
Ministros, a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, afirmou que o
governo está “muito confortável” com o despedimento da ex-CEO, defendendo que o
relatório que sustentou a decisão era inequívoco: “O governo tomou uma decisão
com base num relatório que é absolutamente inequívoco e, por isso, estamos
muito confortáveis com a decisão tomada.”
A governante sublinhou que o executivo, “na altura, tomou a decisão com
base num relatório da Inspeção-Geral das Finanças (IGF)”, que considerou que “era
suficientemente sólido”. “Quanto ao tema de decisões tomadas fora do
enquadramento que deveriam ter sido tomadas, mantém naturalmente a sua decisão.
Quanto ao resto, todos temos o direito de nos defender e [de] decidirmos todos
os processos que queiramos decidir”, disse.
Entretanto, os principais sindicatos reagiram ao processo intentado contra
a companhia aérea, vindo o presidente do Sindicato Nacional do Pessoal de Voo
da Aviação Civil (SNPVAC), Ricardo Penarroias, declarar que não ficou
surpreendido com a entrada da ação nos tribunais ou os 5,9 milhões de euros
exigidos. “A preocupação que eu tenho, como diretor sindical e como trabalhador
de grupo TAP, é que a decisão [de exonerar a gestora] tenha sido a acertada e
que não tenha sido mais um ato de gestão, mais um ato de impulsividade, que
apenas prejudica a companhia”, disse à Lusa
o dirigente que representa os tripulantes de cabine da transportadora.
Já o presidente do Sindicato dos Pilotos da Aviação Civil (SPAC), Tiago
Faria Lopes, considerou os 5,9 milhões de euros “um pedido inacreditável” de
Christine Ourmières-Widener: “Claro que a forma [de a demitir] não foi a
correta, mas o historial da engenheira Christine na gestão da TAP foi completamente
desastroso e danoso.”
Todos os implicados os sabem e o dizem. A CPI não poupou a gestora
qualificada.
O Governo anunciou a exoneração de Christine Ourmières-Widener e do
presidente do Conselho de Administração, Manuel Beja, a 6 de março, depois de
divulgados os resultados de uma auditoria da IGF, que concluiu que o acordo
para a saída da antiga administradora Alexandra Reis era nulo e que grande
parte da indemnização (perto de meio de milhão de euros) teria de ser
devolvida. Tudo isto, no quadro de uma polémica iniciada no final de dezembro
de 2022, quando o Correio da Manhã
noticiou que a então secretária de Estado do Tesouro tinha recebido uma
indemnização de cerca de 500 mil euros para sair, dois anos antes do previsto,
da administração da empresa. O caso motivou uma remodelação no Governo,
incluindo a saída do ex-ministro das Infraestruturas e Habitação, Pedro Nuno
Santos.
Tanta parra pela indemnização de Alexandra Reis, quando ninguém quer saber das
indemnizações, vencimentos chorudos, pagamentos por prestações de serviços (reais
ou não) e diversas mordomias a administradores anteriores!
***
Eu,
se fosse governante, não ficaria tão confortável com a ação judicial intentada
pela ex-gestora de topo da TAP. O relatório da IGF não conclui, inequivocamente,
pela exoneração da gestora: o que recomenda é a avaliação da legalidade da atuação
dos administradores que decidiram a retirada de Alexandra Reis e a respetiva indemnização
(tal decisão deveria ter sido tomada pelos órgãos estatutários da TAP: o conselho
de Administração ou a assembleia geral). Não houve um processo dirigido especificamente
contra a gestora, com oportunidade de defesa.
Por
outro lado, o artigo 25.º do EGP (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 71/2007, de 27 de março, com a redação que
lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 50/2022, de 19 de julho) estabelece as condições de demissão
do gestor: quando lhe seja imputável, individualmente,
uma das seguintes situações: avaliação de desempenho negativa,
designadamente por incumprimento dos objetivos referidos nas orientações
fixadas ao abrigo do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de dezembro,
ou no contrato de gestão; violação grave, por ação ou por omissão, da
lei ou dos estatutos da empresa; violação
das regras sobre incompatibilidades e impedimentos; e violação do dever
de sigilo profissional. A demissão, que compete ao órgão de eleição ou
nomeação, requer audiência prévia do gestor e é devidamente fundamentada,
implica a cessação do mandato, não havendo lugar
a qualquer subvenção ou compensação pela cessação de funções.
E o artigo 27.º prevê que o gestor público possa renunciar ao
cargo, nos termos da lei comercial, e estipula que a renúncia “não
carece de aceitação, mas deve ser comunicada aos órgãos de eleição ou de
nomeação”.
Quer dizer que Alexandra Reis podia ter sido demitida por
quem de direito e não o foi; e que podia ter renunciado. E, no caso de demissão,
esta devia ser objetivamente fundamentada e a gestora em causa devia ser ouvida
previamente. É verdade que o EGP não prevê a saída negociada, mas também não a proíbe.
Por isso, é de recear que essa “coisa do outro mundo” de que falava o
Presidente da República pode não ter passado de mera opinião avaliativa da IGF.
Aliás, o artigo 40.º do EGP estabelece: “Em tudo quanto não esteja disposto no
presente decreto-lei, aplica-se o Código das Sociedades Comerciais, salvo
quanto aos institutos públicos de regime especial.” Não é o caso. A TAP é uma
empresa pública, não um instituto público.
E o que se disse em relação a Alexandra Reis, mutatis mutandis, deverá dizer-se da
ex-CEO.
**
Contudo, não há que temer. Com efeito, a TAP reforçou o dinheiro que tem colocado de lado
para eventuais encargos com processos judiciais de que é alvo. Mais do que
duplicaram essas verbas que ficam “congeladas” para eventuais custos futuros
com ações em tribunal. No fim de
2022, as provisões para tais processos – dinheiro paralisado até conhecer se se
concretizam tais encargos – situavam-se em 53 milhões de euros, número comparável
com os 23 milhões da rubrica um ano antes e que é bastante superior aos 11
milhões registados em provisões no fim de 2021.
“Em 31 de dezembro de 2022, a provisão existente, no
montante de 52,6 milhões de euros, destina-se a fazer face a diversos processos
judiciais intentados contra o grupo, em Portugal e no estrangeiro”, indica a
companhia aérea, no relatório e contas relativo ao ano passado. Esta é a provisão que existe no fim do ano, já depois de aumentada
e utilizada a “provisão de cerca de 28 milhões de euros, no âmbito do acordo
celebrado com os sindicatos”. Não há explicação adicional sobre estes encargos.
O aumento de 2021 para 2022 tinha contado com uma
provisão para “processos recebidos nos Estados Unidos da América (EUA) e em
Espanha de natureza contraordenacional decorrentes de irregularidades
operacionais”. Fora dos processos judiciais em curso, a TAP tem uma provisão para
reestruturação, para custos de redelivery (devolução de aeronaves
no final do período de locação) e outras. Isto numa
empresa em que novas ações judiciais foram admitidas pela ex-CEO presidente
executiva, contestando o seu afastamento determinado pelo governo, bem como a
não atribuição de bónus pelos resultados de 2021 e de 2022, a que diz ter
direito.
E, obviamente, se a TAP não tiver dinheiro para pagar
processos e indemnizações, o bom povo português ver-se-á “obrigado a pagar voluntariamente”
esses desmandos da TAP, como sempre. O povo não deixa ir à falência bancos e empresas
públicas. Não tenham medo!
2023.09.07 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário