A 16 de setembro, com pompa e circunstância, foi
apresentado, no Grémio Literário, em Lisboa, o livro “O Primeiro-ministro e a
Arte de Governar”, de 226 páginas, do Professor Cavaco Silva, ex-primeiro-ministro
e ex-Presidente da República, uma edição da Porto Editora.
Apesar de nunca referir casos ou pessoas e de o estilo ser o do
ensaio político, o autor deixa vários recados nas entrelinhas, que
alguns veem dirigidos a António Costa, atual primeiro-ministro (PM). É a
leitura que faz a plateia, formada, na sua grande maioria, por elementos dos
governos do professor de Finanças e por seus correligionários e indefetíveis simpatizantes.
Efetivamente,
a sala cheia, com personalidades da direita, desde o presidente do Partido
Social Democrata (PSD), Luís Montenegro, na fila da frente, aos antigos
governantes Manuela Ferreira Leite e Eduardo Catroga, bem como o presidente da
Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, que mereceu os agradecimentos de Cavaco Silva,
ainda antes de os dirigir ao líder do PSD.
***
O mote para
os recados ao atual PM foi dado pelo antigo chefe do governo José Manuel Durão
Barroso – convidado pelo autor, mercê da sua alegada especialização em Ciência
Política e da sua efetiva experiência europeia (abandonou o governo nacional
para presidir à Comissão Europeia) –, que, na intervenção inicial, destacou
algumas passagens que qualificou de “saborosas” e que, a citar Cavaco, refere a
recomendação de que um PM, face à “reconhecida incapacidade” de um ministro em
desempenhar as suas funções, não deve insistir em mantê-lo no governo. Para lá
desta farpa, Barroso frisou a importância da participação do PM nas reuniões do
Conselho do Estado, o órgão consultivo do Presidente da República (PR), que António
Costa integra, mas que foi acusado de não intervir na última reunião, tendo
sido, depois, afastado qualquer conflito com o chefe de Estado.
Por outro
lado, Durão Barroso criticou “certa esquerda” por decretar a “morte cívica” de
Cavaco. “Por favor, continue a incomodar aqueles que ficam nervosos mesmo antes
de ouvirem”, pediu.
Em resposta,
Cavaco, frisando que a parte final do livro ficou concluída em janeiro deste
ano, pelo que rejeitou qualquer recado relacionável com os casos políticos dos
últimos oitos meses, classifica o livro como um “ensaio normativo” que ainda
não existia em Ciência Política em Portugal, área que diz não dominar. Sempre a
mesma fuga: não domina a área e escreve um normativo sobre ela! Também não é
político e foi PM, durante 10 anos, e PR, durante outros 10.
Partindo da
ideia de uma “análise normativa” que, segundo explicou, passa por perceber como
deve ser abordado o tema, neste caso, a governação, por contraposição, fez uma
análise ao fenómeno como este é de facto e revelou que a realização deste livro
o levou a recordar os seus tempos de investigador académico. Daí esta
abordagem.
Para atingir
o objetivo, que é levar o governo a governar bem, o ex-PR destaca a “realização,
com sucesso, de uma “verdadeira remodelação ministerial” como a tarefa mais
difícil, “em termos pessoas para um primeiro-ministro”. Mais uma vez, não sendo
um recado assumido para António Costa, o atual PM tem sido criticado por não
fazer uma remodelação no governo, sobretudo depois de não ter seguido a
indicação do PR, em maio, para dispensar o ministro das Infraestruturas, João
Galamba, na sequência da polémica em torno da recuperação de um computador de
um ex-assessor com informações classificadas. “A substituição de três, quatro ou cinco ministros de uma assentada exige
sangue frio, sigilo, preparação e execução meticulosas”, destacou o autor,
vincando que “apanhar a comunicação social e o país político de surpresa é o
ideal”. Assim, pensa que as duas remodelações que levou a cabo, em 1990 e 1993,
cumpriram esse desígnio.
O ex-chefe de governo do PSD (1985-1995) e ex-Presidente
(2006-2016) alerta que ninguém beneficia de um clima de conflitualidade entre o
governo e a Presidência, como sucedeu entre ele e o Presidente Mário Soares
(1986-1996) e como sucede, agora, entre António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa.
Por isso, aconselha os primeiros-ministros a não comentarem, publicamente, as
críticas do PR, mesmo que “injustas ou erradas” – a não ser que o PR cometa
“muitos erros” e ou extravase claramente as suas competências e que tal seja percebido
pela opinião pública” –, e a preocuparem-se em evitar que ele impeça o governo
de executar as suas políticas.
Num estilo de ensaio político, Cavaco Silva faz “reflexões
sobre o que deve ser o comportamento do primeiro-ministro” para que o governo
“tenha sucesso”. O mais importante, para o líder do executivo, é que o PR “adote
uma conduta marcada pela isenção e independência” relativamente aos partidos,
“não interfira no combate político e não atue como força de contrapoder,
relativamente ao governo, antes lhe garanta cooperação institucional”.
Num sistema político em que o PR não tem poderes executivos e
não pode apresentar “alternativas ao programa” dos governos, o ex-líder do PSD
aconselha um PM a “evitar responder em público” às críticas presidenciais, devendo
“reservar-se para manifestar o seu desacordo” numa reunião semanal entre os
dois ou através de telefonema pessoal, podendo sublinhar, então, o risco de o
PR ser utilizado como ‘arma de arremesso’ na luta entre partidos”.
Outro dos conselhos de Cavaco Silva aos PM é que tenham “interpretação
alargada do dever de informação” ao PR e que não ponham obstáculos aos pedidos
para se reunir individualmente (do que discordo) com ministros, sendo, ainda,
“exemplar na discrição do teor das conversas”.
O professor de Finanças que mais tempo governou em democracia
avisa que o PM deve usar as reuniões semanais, habitualmente à quinta-feira,
para “adotar um estilo sério, sóbrio, rigoroso e pouco especulativo, evitando
discutir intrigas político-partidárias ou fait
diver”.
Por outro lado, considera que um chefe do governo deve
demitir ministros, se forem desleais ou em caso de indícios de corrupção. Mais:
se um ministro, apesar de excelentes currículos técnicos, se revelar “um
desastre, por falta de qualidades políticas, de bom senso, de resiliência” ou
de “resistência psicológica”, deve ser demitido. O PM “deve deixar de lado
sentimentos pessoais e substituir o ministro, logo que se aperceba do erro
cometido com a escolha”. Com efeito, manter ministros incapazes, “por razões
pessoais ou de má avaliação” resulta em “grave prejuízo para o país”, concluiu.
Já no capítulo sobre a avaliação de ministros, Cavaco defende
que um chefe do governo não pode criticar um ministro “em frente de quem quer
que seja”, mas deve demiti-lo em cinco casos: falta de lealdade,
“comportamentos reveladores de ausência de sentido de Estado, uso de linguagem
insultuosa, de indícios de corrupção, prevaricação e de outras violações graves
da ética política”. E, se não o fizer, a credibilidade e autoridade
política e moral do PM ficam duramente feridas”, pois manter governantes
apenas pelos seus índices de popularidade também não é aconselhável nem deve
ser “critério de avaliação de desempenho com peso significativo”. “Como
se tem verificado, um ministro popular pode não ser um bom ministro, do ponto
de vista do interesse nacional”, escreveu, sem referir casos.
Também adverte que o “escrutínio das pessoas” que são
escolhidas para ministros é da exclusiva responsabilidade do PM e “não pode ser
feito na praça pública”. E os convites para ministros devem começar
pelos independentes, a quem é preciso explicar com mais pormenor a política da
pasta, ser feitos em segredo e não demorar mais do que “um ou dois dias”.
Por fim, é de referir que o livro, que inclui um ensaio
original sobre “a arte de governar”, reúne artigos publicados sobre temas
europeus, económicos e políticos, incluindo “Os políticos e a Lei de Gresham”,
segundo a qual “a má moeda expulsa a boa moeda”, publicado em 2004, quando Santana
Lopes (PSD) era PM. Ora, não há moeda boa ou má: a política monetária e cambial
é que a valoriza ou desvaloriza, de modo que o euro, que já valeu mais do que o
euro, agora vale mais.
***
Apesar de Ana Catarina Mendes do Partido Socialista (PS),
ministra-Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, ter prometido ler o livro, fazer
sublinhados e tomar notas, tal como Luís Montenegro, líder do PSD, o livro e a sessão
da apresentação, não deixam de ser lidos como ato político de crítica oposicionista
ao governo e à composição da Assembleia da República (AR). Contudo, os
observadores anotam que também são alvos dos recados de Cavaco Silva José
Sócrates (um desastre na governação), que o ex-PR acusou de deslealdade institucional;
Passos Coelho, pela falta de pulso político (veja-se a crise da demissão irrevogável
de Paulo Portas) e pela governação contra as velhas opções cavaquistas; Marcelo
Rebelo de Sousa, que, enquanto PR, interfere demasiado na governação, brita a discrição
da demissão de membros do governo e não é imune ao desaguisado que eclodiu
entre a Presidência e o governo; e o próprio Cavaco Silva, como se verá a
seguir.
Tive alguma simpatia por Cavaco Silva, quando foi PM, e muita
por alguns seus colaboradores. Efetivamente, foi sob a sua égide que se fizeram
algumas reformas importantes, como a reforma educativa (por exemplo, Lei de
Bases do Sistema Educativo, Estatuto da Carreira Docente, Desenho Curricular
coerente, criação do ensino profissional, construção de novas escolas e de estabelecimentos
da educação pré-escolar, etc.); a reforma fiscal; o Código o Procedimento Administrativo;
reformas da saúde; e abertura da televisão e da rádio ao setor privado.
Porém, a sua governação também teve os seus erros. As suas maiorias não dialogaram com a oposição; houve a tentativa de cercear os movimentos dos jornalistas na AR; as novas escolas não tinham pavilhão desportivo; começaram as privatizações a esmo; como bom aluno da União Europeia (UE), Portugal destruiu a agricultura, a marinha de pescas, a marinha comercial, cedeu nas quotas de vinho de benefício, do leite e de peixe e aceitou a destruição de grandes empresas, como a LISNAVE, a SETENAVE e a cimenteira; e descurou a ferrovia. E relação de divergência com o PR foi mais irónica do que discreta. Com efeito, falar em “forças de bloqueio”, clamar “deixem-nos trabalhar” ou dizer “tudo farei para que o senhor Presidente termine o seu mandato com dignidade” eram asserções bem denotativas do mal-estar institucional. Depois, talvez por insuficiência de escrutínio, não se conheciam grandes casos de corrupção no governo, mas emergiram caso graves, mais tarde. E não são de esquecer as viagens ao estrangeiro da parte de deputados (iam em executiva, para poderem levar o cônjuge).
Portanto, embora o ex-governante tenha o direito e o dever de
escrever, deveria abster-se de criticar, pomposamente, quem governa em dias bem
diferentes, ainda que por entre erros (Esta maior é um desastre, mas não é a
pior e tem conserto). É que lições ex-catedra
podem alvejar outros que pretendíamos proteger e, por ricochete, podem bater-nos
na testa ou no peito.
A propósito, lembro que um professor confrontou Mahatma Gandhi,
num exame, com a seguinte opção: Se fosse na rua e, abrindo-a, encontrasse a
sabedoria e um pacote com muito dinheiro, com qual ficaria? E Gandhi respondeu
que ficava com o dinheiro. Porém, quando o professor revelou que, no lugar de Gandhi,
ficaria com a sabedoria, o examinando retorquiu: “Tem razão, professor, cada um
ficaria com o que não tem.”
Atribuem a Churchill o dito: “Gosto de aprender com todos,
mas detesto que me queiram ensinar.” Por isso, percebo que António Costa,
querendo aprender com todos, deteste que o queiram ensinar e percebo que Luís
Montenegro queira aprender com todos, mas não percebo que não queira fazer o
caminho por si e com os seus colaboradores atuais.
Esta “arte de governar” lembra-me a lição de ciência política
que o PR deu ao governo, aquando do veto ao diploma sobre carreira dos
professores. Todos a sabem; difícil é a prática. E o PR só, então (no 8.º ano
sua presidência), deu conta de que os professores do Continente têm condições piores
do que os da Madeira e dos Açores! Bem fala o que se presume de sábio.
2023.09.16 – Louro de Carvalho
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