quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Há conselheiros de Estado que abusam do lugar

 

O Conselho de Estado, que não é, no atual ordenamento jurídico-constitucional, um órgão de soberania, mas apenas o órgão de consulta do Presidente da República (PR), vem contemplado na Constituição da República Portuguesa (CRP) a seguir ao PR (artigos 141.º-146.º), por uma razão funcional.

O artigo 145.º da CRP estabelece que, no âmbito da competência, lhe compete: a) pronunciar-se sobre a dissolução da Assembleia da República [AR] e das Assembleias Legislativas das regiões autónomas; b) pronunciar-se sobre a demissão do governo, no caso previsto no n.º 2 do artigo 195.º [se necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas]; c) pronunciar-se sobre a declaração da guerra e a feitura da paz; d) pronunciar-se sobre os atos do Presidente da República interino referidos no artigo 139.º [marcar eleições, convocar a AR, nomear o primeiro-ministro, nomear e exonerar o presidente do Tribunal de Contas, o Procurador-Geral da República e os chefes militares, exercer as funções de comandante supremo das Forças Armadas e nomear os embaixadores e diplomatas similares]; e) pronunciar-se nos demais casos previstos na Constituição e, em geral, aconselhar o Presidente da República no exercício das suas funções, quando este lho solicitar.”

O n.º 2 do artigo 144.º da CRP estabelece que “as reuniões do Conselho de Estado não são públicas”. E o artigo 146.º estabelece que os pareceres previstos no artigo 145.º “são emitidos na reunião que para, o efeito, for convocada pelo Presidente da República e tornados públicos quando da prática do ato a que se referem”.

Por sua vez, o regimento do Conselho de Estado, cuja elaboração compete ao próprio Conselho, nos termos do n.º 1 do artigo 144.º da CRP, e que foi aprovado a 7 de novembro de 1984 – não tendo sofrido alterações, embora remeta, erradamente, a demissão do governo para o n.º 2 do artigo 198.º da CRP, quando deve ser o artigo 195.º, e contempla uma competência já ultrapassada (pronunciar-se sobre as propostas de alteração ou substituição do estatuto do território de Macau) – especifica as consequências da índole não pública das reuniões.

Assim, as atas não podem ser consultadas nem divulgadas, durante um período de 30 anos a contar do final do mandato presidencial em que se realizaram as reuniões a que respeitam. Ficam ressalvadas a consulta e a divulgação das atas, no todo ou em parte, em casos excecionais, por decisão do PR. Após o referido período de 30 anos, a consulta e a divulgação das atas, que podem ser efetuadas por solicitação dirigida ao PR, será sempre assegurada pelo secretário do Conselho de Estado e pelos serviços da Presidência da República (cf artigo 13.º).

Os membros do Conselho de Estado e o secretário têm o dever de sigilo, quanto ao objeto e ao conteúdo das reuniões e quanto às deliberações tomadas e pareceres emitidos. Não obstante, o PR e o Conselho poderão concordar na publicação, após as reuniões, de uma nota informativa, na qual se indique, de forma sucinta, a totalidade ou parte do objeto da reunião e dos seus resultados (cf artigos 15.º e 16.º). Os pareceres referentes a matérias não especificadas no artigo 145.º da CRP só serão publicados, se o PR assim o determinar. E os pareceres especificados nesse artigo serão publicados, se o PR “praticar os atos de que constituem requisito”, e a sua publicação “será simultânea com a dos atos a que aqueles respeitem”.

Sendo assim, embora deva ser do conhecimento público o teor sucinto de conclusões a que chegou o Conselho, o conteúdo das intervenções será conhecido em situações muito excecionais.

Por isso, são de lamentar, sempre, eventuais fugas de informação e, sobretudo, o aproveitamento político-partidário que delas façam elementos próximos do governo, do PR e das oposições.

Apesar de o Conselho de Estado ser apenas órgão de consulta do PR, não creio que deva levar-se a mal que os conselheiros emitam opiniões fora do âmbito estrito das matérias que a CRP lhes reserva. Porém, não podem arvorar-se em analistas e juízes da atividade parlamentar ou governativa, como parece terem-no feito na reunião de 21 de julho, quase exigindo que o primeiro-ministro (PM) lhes respondesse. Na verdade, o Conselho de Estado não é um senado, nem um conselho superior, nem um conselho de curadores, nem um fórum de debate político-partidário. E, em caso de conflitualidade emergente, deve remeter-se às funções de consulta.

Também não é uma instância de explanação das ideias presidenciais ou espaço de ataque ao governo. E o PR pode ter contribuído, involuntariamente, para o disfuncionamento deste órgão, quando o presenteia com exposição de matérias relevantes, a cargo de algum convidado, e quando estabelece uma regularidade temporal das reuniões. Isto, que poderia valorizar o órgão, dá-lhe importância excessiva ou torna-o destinatário de informação/formação política de que não precisa e que pode menorizar os conselheiros. Aliás, o chefe de Estado leva, já escrita, a nota a divulgar a realização e o tema da reunião, quando devia ser o secretário a propor esse texto ao plenário para aprovação do mesmo, como faz, por vezes, uma longa intervenção final, que já vai escrita.                         

Neste contexto, Luís Marques Mendes e António Lobo Xavier Lobo Xavier, dois conselheiros que são comentadores dominicais falaram, ainda que de modo diferente, da reunião em que o PM optou por não responder às críticas e às perguntas dos membros dos conselheiros.

Desta feita, não se escusaram com base na reserva para não falarem do facto político da semana de 5 de setembro, dia em que o Conselho de Estado reuniu para dar continuidade à reunião de 21 de julho – interrompida, porque o PM teve de apanhar o voo para a Nova Zelândia e para Timor-Leste – e para abordar o tema da guerra na Ucrânia.

O silêncio do PM na reunião foi uma “anormalidade”, acusou Marques Mendes, alegando não estar a violar o dever de sigilo, por já ter sido confirmado, publicamente, que António Costa escolheu ficar em silêncio. Não violou o dever de sigilo, mas aprofundou a fuga de informação, a meu ver. E o PM tem o direito de alinhar no debate em matéria que não é da estrita competência do Conselho de Estado, como tem o direito de não alinhar nesse debate, pois o governo não é responsável perante este órgão e porque o debate sobre a situação política, social e económica do país ou a guerra na Ucrânia não são matérias sobre as quais o PR se propôs tomar decisões, pelo que estão fora da competência do Conselho de Estado.    

Na reunião de julho, como é, indevidamente, do conhecimento público, vários conselheiros fizeram críticas contundentes ao governo. O PM não deu resposta, porque o PR não lhe passou a palavra. António Costa, que tinha voo para a Nova Zelândia, onde iria representar Portugal no jogo inaugural da seleção feminina de futebol no Mundial, ainda terá dito que responderia de forma rápida, mas o chefe de Estado terá respondido que não queria que a reunião terminasse com pressa, porque ele próprio tinha muito a dizer (o PR neste espaço é mais ouvinte!).

No dia 5 de setembro, apesar de o primeiro ponto manter a continuação da análise política, económica e social, o PR começou pelo segundo ponto, entretanto acrescentado: a Ucrânia. O PM avisara o PR de que não tencionava falar na análise da situação política, pelo que este avançou para o segundo tema, no qual perguntou a António Costa se queria dizer algo, ao que ele respondeu não ter nada a acrescentar ao que o PR tinha dito, reafirmando o apoio aos Ucranianos.

A situação foi “frustrante”, segundo um conselheiro que estava na expectativa de ouvir António Costa responder às críticas e dúvidas de julho. “O que se viveu ali foi um drama”, disse outro, referindo-se à tensão entre Marcelo e Costa, que o PR, entretanto, veio contrariar.

Marques Mendes disse que “quem está no Conselho de Estado não tem apenas do direito de dar opinião, tem também o dever político e institucional” e, apontando que “não é saudável para o país um clima permanente de tensão”, avisou que, “se não houver cautela de ambas as partes, vai escalar e aí transforma-se num problema para o país”.

Já Lobo Xavier evitou comentar o que se passou na reunião, focando-se nas declarações públicas do PM, que justificou o seu silêncio com o entendimento de que não é no Conselho de Estado que se faz o debate político e lamentando a divulgação do que diz serem mentiras.

Estas declarações são absolutamente inaceitáveis”, disse Lobo Xavier, no programa “Princípio da Incerteza”, da CNN e da TSF. Se um membro do Conselho de Estado sentiu que lhe foram imputadas mentiras sobre factos ouvidos, era sua obrigação pedir autorização ao PR para desmentir e não lançar a suspeita de que há membros a violar a confidencialidade e a mentir. Também Augusto Santos Silva criticou a divulgação do que se passa nas reuniões.

E o PR frisou que, nas notícias sobre a reunião, tinham sido divulgadas mentiras. “Havia uma versão que era o contrário da verdade em relação a mim”, disse Marcelo Rebelo de Sousa.

Lobo Xavier do que leu e ouviu, não viu publicada qualquer mentira e acusou o PM de ter faltado ao respeito aos conselheiros, tratando como “um grupo de meninos” pessoas como Cavaco Silva e Ramalho Eanes. Também Lobo Xavier – que tem, como Marques Mendes, assento no órgão por escolha de Marcelo – lamentou a tensão entre o PR e o PM, considerando que “já foi longe de mais”. Porém, esquece que Miguel Cadilhe e Cavaco Silva arrasaram a ação do governo!

Ora, é preciso esclarecer que os membros de um órgão colegial não são obrigados a dar opinião sobre matérias laterais. E, sobre matérias que lhes são submetidas para dar parecer, depende: se o órgão é de consulta ou sendo deliberativo, funciona como consultivo sobre matérias que lhe sejam submetidas, os seus membros não podem abster-se na votação (que é obrigatória e nominal), pelo que têm de votar – e votar contra ou a favor. Contudo, gozam da liberdade de se pronunciarem ou não, detalhadamente, sobre as matérias, de acordo com a sua consciência ou com o seu pundonor. Alguns conselheiros, como o PM, têm o dever e o direito de informar o Conselho das razões políticas que levem o PR a tomar as decisões que se propõe, mas não sobre outras questões.

Nenhum conselheiro pode sentir-se ofendido ou diminuído por não ter respostas a questões que tenha levantado. Não há aqui lugar a qualquer tipo de temor reverencial, nem melindre pessoal.   

Vir um conselheiro pedir ao PR autorização para se defender de eventual mentira a propósito de uma reunião confidencial é pior a emenda do que o soneto: só aprofunda a quebra do sigilo.

Também considero que é lamentável a tensão entre PR e PM, mas interrogo-me sobre quem a provocou e a agudizou. Aliás, o presidente do Partido Socialista (PS), funcionando como “leal conselheiro”, também critica essa tensão e pede ao seu partido moderação e abertura.         

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Por fim, adiro à opinião do constitucionalista Vital Moreira, no blogue “Causa nossa”, sobre os dois conselheiros que vieram criticar o PM “por ter decidido não intervir na última reunião do Conselho de Estado”. Eles sabem porque tomou ele tal decisão, pois são juristas e conhecem a CRP e o regimento. E eu digo que estão, com os seus comentários, a intoxicar a opinião pública.

Vital Moreira explica: O PM “não devia coonestar a ‘golpada” presidencial (política e constitucional), de tornar, abusivamente, o Conselho em órgão de julgamento político do PM e do governo e num órgão de definição da política geral do país”. “O PR anunciou, antecipadamente que já tinha escrito a sua intervenção de encerramento”, isto é, “o seu veredicto, sem se interessar pelo que o PM teria para dizer em sua defesa, tornando-a, portanto, escusada”. Ora, não se compreende que os dois conselheiros, designados pelo PR, se abstenham de criticar a jogada política deste, com que estão de acordo, “tendo ambos intervindo no julgamento”, quando deviam poupar-se a condenar o PM, “por, com toda a legitimidade, ter frustrado tal operação”.

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Como qualquer instituição democrática, o Conselho de Estado deve funcionar nos termos e para os fins para que foi instituído. É esse o contributo que pode dar à causa da democracia, sem arrogância e sem menorização.  

2023.09.13 – Louro de Carvalho

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