O Conselho de Estado, que não é, no atual
ordenamento jurídico-constitucional, um órgão de soberania, mas apenas o órgão
de consulta do Presidente da República (PR), vem contemplado na Constituição da
República Portuguesa (CRP) a seguir ao PR (artigos 141.º-146.º), por uma razão
funcional.
O artigo 145.º da CRP estabelece que, no âmbito
da competência, lhe compete: a) pronunciar-se sobre a dissolução
da Assembleia da República [AR] e das Assembleias Legislativas das regiões autónomas; b) pronunciar-se sobre a demissão do
governo, no caso previsto no n.º 2 do artigo 195.º [se necessário para
assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas]; c) pronunciar-se sobre a declaração
da guerra e a feitura da paz; d) pronunciar-se
sobre os atos do Presidente da República interino referidos no artigo 139.º [marcar
eleições, convocar a AR, nomear o primeiro-ministro, nomear e exonerar o
presidente do Tribunal de Contas, o Procurador-Geral da República e os chefes
militares, exercer as funções de comandante supremo das Forças Armadas e nomear
os embaixadores e diplomatas similares]; e) pronunciar-se
nos demais casos previstos na Constituição e, em geral, aconselhar o Presidente
da República no exercício das suas
funções, quando este lho solicitar.”
O n.º 2 do artigo 144.º da CRP
estabelece que “as reuniões do Conselho de Estado não são públicas”. E o artigo
146.º estabelece que os pareceres previstos no artigo 145.º “são emitidos na
reunião que para, o efeito, for convocada pelo Presidente da República e
tornados públicos quando da prática do ato a que se referem”.
Por sua vez, o regimento do Conselho de Estado, cuja
elaboração compete ao próprio Conselho, nos termos do n.º 1 do artigo 144.º da
CRP, e que foi aprovado a 7 de novembro de 1984 – não tendo sofrido alterações,
embora remeta, erradamente, a demissão do governo para o n.º 2 do artigo 198.º
da CRP, quando deve ser o artigo 195.º, e contempla uma competência já
ultrapassada (pronunciar-se sobre as propostas
de alteração ou substituição do estatuto do território de Macau) – especifica
as consequências da índole não pública das reuniões.
Assim, as atas não podem ser consultadas nem
divulgadas, durante um período de 30 anos a contar do final do mandato presidencial
em que se realizaram as reuniões a que respeitam. Ficam ressalvadas a consulta
e a divulgação das atas, no todo ou em parte, em casos excecionais, por decisão
do PR. Após o referido período de 30 anos, a consulta e a divulgação das atas,
que podem ser efetuadas por solicitação dirigida ao PR, será sempre assegurada
pelo secretário do Conselho de Estado e pelos serviços da Presidência da
República (cf artigo 13.º).
Os membros do Conselho de Estado e o secretário têm
o dever de sigilo, quanto ao objeto e ao conteúdo das reuniões e quanto às
deliberações tomadas e pareceres emitidos. Não obstante, o PR e o Conselho
poderão concordar na publicação, após as reuniões, de uma nota informativa, na
qual se indique, de forma sucinta, a totalidade ou parte do objeto da reunião e
dos seus resultados (cf artigos 15.º
e 16.º). Os pareceres referentes a matérias não especificadas no artigo 145.º
da CRP só serão publicados, se o PR assim o
determinar. E os pareceres especificados nesse artigo serão publicados, se o PR “praticar os atos de que constituem
requisito”, e a sua publicação “será simultânea com a dos atos a que aqueles
respeitem”.
Sendo assim, embora deva ser do conhecimento público
o teor sucinto de conclusões a que chegou o Conselho, o conteúdo das
intervenções será conhecido em situações muito excecionais.
Por isso, são de lamentar, sempre, eventuais fugas
de informação e, sobretudo, o aproveitamento político-partidário que delas
façam elementos próximos do governo, do PR e das oposições.
Apesar de o Conselho de Estado ser apenas órgão de
consulta do PR, não creio que deva levar-se a mal que os conselheiros emitam
opiniões fora do âmbito estrito das matérias que a CRP lhes reserva. Porém, não
podem arvorar-se em analistas e juízes da atividade parlamentar ou governativa,
como parece terem-no feito na reunião de 21 de julho, quase exigindo que o
primeiro-ministro (PM) lhes respondesse. Na verdade, o Conselho de Estado não é
um senado, nem um conselho superior, nem um conselho de curadores, nem um fórum
de debate político-partidário. E, em caso de conflitualidade emergente, deve
remeter-se às funções de consulta.
Também não é uma instância de explanação das ideias
presidenciais ou espaço de ataque ao governo. E o PR pode ter contribuído,
involuntariamente, para o disfuncionamento deste órgão, quando o presenteia com
exposição de matérias relevantes, a cargo de algum convidado, e quando
estabelece uma regularidade temporal das reuniões. Isto, que poderia valorizar
o órgão, dá-lhe importância excessiva ou torna-o destinatário de informação/formação
política de que não precisa e que pode menorizar os conselheiros. Aliás, o
chefe de Estado leva, já escrita, a nota a divulgar a realização e o tema da
reunião, quando devia ser o secretário a propor esse texto ao plenário para
aprovação do mesmo, como faz, por vezes, uma longa intervenção final, que já vai
escrita.
Neste contexto, Luís Marques Mendes e António
Lobo Xavier Lobo Xavier, dois
conselheiros que são comentadores dominicais falaram, ainda que de modo
diferente, da reunião em que o PM optou por não responder às críticas e às perguntas
dos membros dos conselheiros.
Desta feita, não se escusaram com base na reserva para não falarem do facto
político da semana de 5 de setembro, dia em que o Conselho de Estado reuniu
para dar continuidade à reunião de 21 de julho – interrompida, porque o PM teve
de apanhar o voo para a Nova Zelândia e para Timor-Leste – e para abordar o
tema da guerra na Ucrânia.
O silêncio do PM na reunião foi uma “anormalidade”,
acusou Marques Mendes, alegando não estar a violar o dever de sigilo, por já
ter sido confirmado, publicamente, que António Costa escolheu ficar em
silêncio. Não violou o dever de sigilo, mas aprofundou a fuga de informação, a meu
ver. E o PM tem o direito de alinhar no debate em matéria que não é da estrita
competência do Conselho de Estado, como tem o direito de não alinhar nesse
debate, pois o governo não é responsável perante este órgão e porque o debate
sobre a situação política, social e económica do país ou a guerra na Ucrânia
não são matérias sobre as quais o PR se propôs tomar decisões, pelo que estão
fora da competência do Conselho de Estado.
Na reunião de julho, como é, indevidamente, do conhecimento público, vários
conselheiros fizeram críticas contundentes ao governo. O PM não deu resposta, porque
o PR não lhe passou a palavra. António Costa, que tinha voo para a Nova
Zelândia, onde iria representar Portugal no jogo inaugural da seleção feminina
de futebol no Mundial, ainda terá dito que responderia de forma rápida, mas o
chefe de Estado terá respondido que não queria que a reunião terminasse com
pressa, porque ele próprio tinha muito a dizer (o PR neste espaço é mais ouvinte!).
No dia 5 de setembro, apesar de o primeiro ponto manter a continuação da
análise política, económica e social, o PR começou pelo segundo ponto,
entretanto acrescentado: a Ucrânia. O PM avisara o PR de que não tencionava
falar na análise da situação política, pelo que este avançou para o segundo
tema, no qual perguntou a António Costa se queria dizer algo, ao que ele
respondeu não ter nada a acrescentar ao que o PR tinha dito, reafirmando o
apoio aos Ucranianos.
A situação foi “frustrante”, segundo um conselheiro que estava na
expectativa de ouvir António Costa responder às críticas e dúvidas de julho. “O
que se viveu ali foi um drama”, disse outro, referindo-se à tensão entre
Marcelo e Costa, que o PR, entretanto, veio contrariar.
Marques Mendes disse que “quem
está no Conselho de Estado não tem apenas do direito de dar opinião, tem também
o dever político e institucional” e, apontando que “não é saudável para
o país um clima permanente de tensão”, avisou que, “se não houver cautela de
ambas as partes, vai escalar e aí transforma-se num problema para o país”.
Já Lobo Xavier evitou comentar o que se passou na reunião, focando-se nas
declarações públicas do PM, que justificou o seu silêncio com o
entendimento de que não é no Conselho de Estado que se faz o debate político e
lamentando a divulgação do que diz serem mentiras.
“Estas declarações são absolutamente
inaceitáveis”, disse Lobo Xavier, no programa “Princípio da Incerteza”,
da CNN e da TSF. Se um membro do Conselho de Estado sentiu que lhe foram
imputadas mentiras sobre factos ouvidos, era sua obrigação pedir autorização ao
PR para desmentir e não lançar a suspeita de que há membros a violar a
confidencialidade e a mentir. Também Augusto Santos Silva criticou a divulgação
do que se passa nas reuniões.
E o PR frisou que, nas notícias sobre a reunião, tinham sido divulgadas
mentiras. “Havia uma versão que era o contrário da
verdade em relação a mim”, disse Marcelo Rebelo de Sousa.
Lobo Xavier do que leu e ouviu, não viu publicada qualquer mentira e acusou
o PM de ter faltado ao respeito aos conselheiros, tratando como “um grupo de
meninos” pessoas como Cavaco Silva e Ramalho Eanes. Também Lobo Xavier – que tem,
como Marques Mendes, assento no órgão por escolha de Marcelo – lamentou a
tensão entre o PR e o PM, considerando que “já foi longe de mais”. Porém,
esquece que Miguel Cadilhe e Cavaco Silva arrasaram a ação do governo!
Ora, é preciso esclarecer que os membros de um órgão colegial não são
obrigados a dar opinião sobre matérias laterais. E, sobre matérias que lhes são
submetidas para dar parecer, depende: se o órgão é de consulta ou sendo
deliberativo, funciona como consultivo sobre matérias que lhe sejam submetidas,
os seus membros não podem abster-se na votação (que é obrigatória e nominal),
pelo que têm de votar – e votar contra ou a favor. Contudo, gozam da liberdade
de se pronunciarem ou não, detalhadamente, sobre as matérias, de acordo com a
sua consciência ou com o seu pundonor. Alguns conselheiros, como o PM, têm o
dever e o direito de informar o Conselho das razões políticas que levem o PR a
tomar as decisões que se propõe, mas não sobre outras questões.
Nenhum conselheiro pode sentir-se ofendido ou diminuído por não ter
respostas a questões que tenha levantado. Não há aqui lugar a qualquer tipo de
temor reverencial, nem melindre pessoal.
Vir um conselheiro pedir ao PR autorização para se defender de eventual
mentira a propósito de uma reunião confidencial é pior a emenda do que o
soneto: só aprofunda a quebra do sigilo.
Também considero que é lamentável a tensão entre PR e PM, mas interrogo-me
sobre quem a provocou e a agudizou. Aliás, o presidente do Partido Socialista (PS),
funcionando como “leal conselheiro”, também critica essa tensão e pede ao seu
partido moderação e abertura.
***
Por fim,
adiro à opinião do constitucionalista Vital Moreira, no blogue “Causa nossa”,
sobre os dois conselheiros que vieram criticar o PM “por ter decidido não
intervir na última reunião do Conselho de Estado”. Eles sabem porque tomou ele
tal decisão, pois são juristas e conhecem a CRP e o regimento. E eu digo que
estão, com os seus comentários, a intoxicar a opinião pública.
Vital
Moreira explica: O PM “não devia coonestar a ‘golpada” presidencial (política e
constitucional), de tornar, abusivamente, o Conselho em órgão de julgamento
político do PM e do governo e num órgão de definição da política geral do país”.
“O PR anunciou, antecipadamente que já tinha escrito a sua intervenção de
encerramento”, isto é, “o seu veredicto, sem se interessar pelo que o PM teria
para dizer em sua defesa, tornando-a, portanto, escusada”. Ora, não se
compreende que os dois conselheiros, designados pelo PR, se abstenham de
criticar a jogada política deste, com que estão de acordo, “tendo ambos
intervindo no julgamento”, quando deviam poupar-se a condenar o PM, “por, com
toda a legitimidade, ter frustrado tal operação”.
***
Como
qualquer instituição democrática, o Conselho de Estado deve funcionar nos termos
e para os fins para que foi instituído. É esse o contributo que pode dar à
causa da democracia, sem arrogância e sem menorização.
2023.09.13 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário