Os da última hora são aqueles/as que a sociedade marginaliza
ou deixa para trás e a quem o Senhor dá a oportunidade de se afirmarem na sua
dignidade de pessoas e de se mostrarem úteis à causa do bem comum e do
progresso, mormente no âmbito espiritual.
A liturgia do 25.º domingo
do Tempo Comum no Ano A convida-nos a descobrir um Deus cujos pensamentos e
caminhos estão acima dos pensamentos e dos caminhos dos homens, tanto quanto o
céu está acima da terra. Sugere-nos, por conseguinte, a renúncia aos esquemas
do Mundo e a conversão ao desígnio e aos procedimentos de Deus.
Assim, o Evangelho (Mt 20,1-16a)
mostra-nos que Deus chama à salvação todas as pessoas, sem olhar à antiguidade
na fé, aos créditos, às qualidades ou aos comportamentos anteriores. A Deus só
interessa o modo como se acolhe o seu convite e a transformação da nossa
mentalidade, de modo que a relação com Deus seja marcada, não pelo interesse,
mas pelo amor e pela gratuitidade.
No trecho em apreço, Jesus continua a instruir os discípulos,
de forma que eles compreendam a realidade do Reino e a testemunhem. Trata-se de
mais uma parábola do Reino.
A parábola dos trabalhadores convidados, a horas diferentes
do dia, para trabalharem na vinha de um patrão, reflete a realidade social e
económica do tempo de Jesus, bem como a de alguns lugares nos tempos hodiernos
(sucedia, entre nós, ainda no século XX). E a mentalidade da inveja sobre quem
concede ao desfavorecido benefício que julgamos injusto, mantém-se em toda a
parte.
A Galileia estava cheia de camponeses que, por causa da
pressão fiscal ou de anos contínuos de más colheitas, perderam as terras que
pertenciam à sua família. Para sobreviverem, alugavam a sua força de trabalho.
Juntavam-se na praça da cidade e esperavam que os grandes latifundiários os
contratassem para trabalharem nos seus campos ou nas suas vinhas. Cada patrão
tinha os seus servidores, isto é, homens confiáveis, a quem contratava com
regularidade e que recebiam um tratamento de favor, o que implicava serem
sempre os primeiros a ser contratados, a fim de poderem ganhar a jorna completa
(um denário era o pagamento diário habitual de um trabalhador não
especializado).
A parábola refere-se, pois, ao dono de uma vinha que, ao
romper da manhã, se dirigiu à praça e chamou os servidores para trabalharem na
sua vinha, ajustando com eles o preço habitual: um denário. O volume de tarefas
a realizar levou o patrão a sair a meio da manhã, ao meio-dia, às três da tarde
e ao cair da tarde, e que trouxesse, de cada vez, nova leva de trabalhadores,
não havendo registo de quaisquer incidentes, discussões, caos de preguiça ou de
desleixo, nem de competição desenfreada. E, ao anoitecer, os trabalhadores
foram chamados diante do senhor, para receberem a paga do trabalho. Todos, a
começar pelos que só tinham trabalhado uma hora, terminando nos que tinham trabalhado
todo o dia, receberam, cada um, um denário. Porém, os trabalhadores da primeira
hora (os servidores habituais) manifestaram o seu desconcerto por, desta vez,
não terem recebido tratamento de favor: mais dinheiro do que os outros, por
terem trabalhado mais.
A resposta do dono da vinha sustenta que não há nada a reclamar,
se ele decide derramar a sua justiça e a sua misericórdia sobre todos, sem exceção,
pois cumpriu a sua obrigação para com os da primeira hora, dando-lhes o combinado.
Todavia, não pode renunciar a ser bondoso e misericordioso para com os que
chegam no fim. E isso em nada deveria afetar os outros.
A parábola terá servido a Jesus para responder às críticas
dos adversários, que O acusavam de estar próximo dos pecadores (os trabalhadores
da última hora), mostrando Jesus que o amor do Pai se derrama sobre todos os
seus filhos, sem exceção e por igual. Para Deus, não é decisiva a hora a que se
responde ao seu apelo, mas que se tenha respondido ao seu convite para
trabalhar na vinha do Reino. Para Deus, não há tratamento especial por
antiguidade, pois todos os seus filhos são iguais e merecem o seu amor. Com
efeito, como aqueles trabalhadores da última hora, que responderam ao dono da
vinha que estavam ociosos, só porque ninguém lhes tinha ligado, há muitos e
muitas que só não seguem Jesus, porque ninguém lho apresentou.
A parábola serviu também para Jesus denunciar a conceção que
os teólogos de Israel tinham de Deus e da salvação. Sobretudo para os fariseus,
Deus é o patrão que paga conforme as ações do homem. Se este cumprisse a Lei,
conquistaria o mérito e Deus pagar-lhe-ia em conformidade. Nesta conceção, Deus
não dá nada; é o homem que tudo conquista. O Deus dos fariseus é um comerciante
ou contabilista, que aponta, diariamente, no livro de registos as dívidas e os
créditos do homem, um dia faz as contas finais, vê o saldo e premeia ou castiga.
Todavia o Pai de Jesus Cristo não é um contabilista, de lápis
na mão a fazer as contas dos homens, para lhes pagar conforme os seus méritos;
é o pai de bondade, que ama todos os s filhos por igual e que derrama sobre
todos, sem exceção, o seu amor.
Mateus adaptou a parábola à sua comunidade (a comunidade
cristã de Antioquia da Síria) para iluminar a situação concreta que ela vivia
com a entrada maciça de pagãos na Igreja. Alguns cristãos de origem judaica não
entendiam que os pagãos, vindos mais tarde, estavam em pé de igualdade com os que
tinham acolhido o Reino desde a primeira hora. Porém, na linha do evangelista e
apóstolo, o Reino é um dom oferecido por Deus a todos os seus filhos. Judeus ou
gregos, escravos ou livres, cristãos da primeira ou da última hora, todos são
filhos amados do Pai. Na comunidade de Jesus não há graus de antiguidade, de
raça, de classe social ou de mérito. O dom destina-se a todos, por igual. Assim,
a parábola insta a que percebamos que o nosso Deus é o Deus que oferece
gratuitamente a salvação a todos os seus filhos, independentemente da
antiguidade, dos créditos, das qualidades, dos comportamentos. Os crentes não
devem fazer o bem em vista de recompensa, mas para encontrarem a felicidade, a
vida verdadeira.
É, pois, necessário e urgente que mudemos a mentalidade e o coração
para acolhermos, na comunidade, os diversos convidados por Deus para o seu Reino,
em qualquer momento, na certeza de que Deus privilegia os que são deixados para
o fim, os deserdados da sorte.
***
A primeira leitura (Is 55,6-9)
pede aos crentes que voltem para Deus. Voltar para Deus é um movimento que
exige a transformação radical do homem, para que os seus pensamentos e ações reflitam
a lógica, os valores e a perspetiva de Deus.
O Deuteroisaías, autor do trecho em referência, profeta
anónimo da escola de Isaías, profetizou entre os exilados da Babilónia,
mantendo a esperança no meio de um povo amargurado e dececionado. Os capítulos
que recolhem a sua mensagem formam o “Livro da Consolação”, no fim do qual
aparecem os quatro versículos que a primeira leitura nos propõe. Aproxima-se a
libertação e, para muitos exilados, está perto o momento do regresso à Terra
Prometida. Depois de exortar os exilados a cumprirem um novo êxodo e de lhes
garantir que, em Judá, se vão sentar à mesa do banquete que Javé quer oferecer
ao seu Povo, o profeta lança-lhes um desafio:
O Exílio foi tempo de angústia e de sofrimento, mas também
tempo de amadurecimento e de graça. Israel tomou consciência das suas infidelidades
e descobriu que viver longe de Deus não dá à vida, nem a felicidade. Ao mesmo
tempo, o Exílio ajudou Israel a purificar a sua noção de Deus, da Aliança, do
culto e do significado de ser Povo de Deus. Por isso, o profeta convida os
concidadãos a percorrerem o caminho de conversão e de redescoberta de Deus que o
Exílio lhes revelou. O Povo está prestes a pôr-se a caminho em direção à Terra
Prometida, mas esse caminho não é a simples deslocação geográfica, mas é também
um caminho espiritual de reencontro com o Senhor. Deixar a terra da escravidão
e voltar à terra da liberdade significa a redescoberta dos esquemas de Deus e o
esforço para viver na fidelidade dinâmica aos mandamentos de Javé.
Trata-se de recomeçar. Nos novos caminhos que a História abre
aos exilados, este Israel renovado pela experiência do Exílio deve procurar o
Senhor, invocá-Lo e cultivar laços de comunhão e de proximidade com Ele. Israel
é convidado a converter-se (literalmente, a “voltar, em hebraico, ‘shûb’) a
Deus. A conversão postula a transformação radical, em termos de mentalidade e
em termos de comportamento (“deixe o ímpio o seu caminho e o homem perverso os
seus pensamentos”). A vida do ímpio e do homem perverso funciona na lógica da autossuficiência,
do egoísmo, do orgulho, da violência, da exploração; e Deus funciona na lógica
do amor, do serviço, da partilha, da doação. Os esquemas de Deus geram alegria,
paz verdadeira, vida definitiva, ao passo que os do ímpio geram tristeza,
conflito e guerra, destruição e morte.
Ao Povo de Deus, pede-se que prescinda da lógica do ímpio,
para abraçar a lógica de Deus; pede-se-lhe que não viva de olhos postos no
chão, mas que olhe para o céu e contemple os horizontes de Deus. Só desta forma
o Povo pode ser feliz na Terra a que vai regressar e pode continuar a ser fiel
à missão de testemunhar Javé no meio dos outros povos.
A conversão implica mudança na forma de ver Deus. O homem
tende a construir um deus à sua imagem, um deus previsível e domesticado, que
funcione de acordo com a lógica e a mentalidade do homem. Porém, Deus não pode
ser reduzido aos esquemas humanos (a parábola evangélica bem o ilustra): os
seus pensamentos não são os pensamentos do homem, as suas reações não são as do
homem, os seus caminhos não são os do homem. Converter-se é aprender que Deus
não é redutível às nossas lógicas e esquemas, mas tem os seus próprios caminhos.
Converter-se é prescindir das nossas certezas, preconceitos e autossuficiências
e confiar em Deus e na bondade dos caminhos pelos quais Ele conduz a História
da Salvação.
***
A segunda leitura (Fl
1,20c-24.27a) apresenta-nos o exemplo de Paulo, que abraçou, de forma exemplar,
a lógica de Deus.
Filipos, situada ao Norte da Grécia, foi a primeira cidade
europeia evangelizada pelo apóstolo. Era uma cidade próspera, de população
constituída, maioritariamente, por veteranos romanos do exército. Organizada ao
modo de Roma, estava fora da jurisdição dos governos das províncias locais e
dependia diretamente do imperador, gozando dos privilégios das cidades de
Itália.
A comunidade cristã, fundada por Paulo, Silas e Timóteo, no verão
do ano 49, era comunidade entusiasta e comprometida, atenta às necessidades de
Paulo e do resto da Igreja (como na coleta em favor da Igreja de Jerusalém).
Paulo nutria pelos “filhos” de Filipos um afeto especial.
No momento em que escreve aos Filipenses, está na prisão (talvez
em Éfeso). Dos Filipenses recebeu dinheiro e o envio de Epafrodito (membro da
comunidade), encarregado de ajudar Paulo em tudo o necessário. Enviando
Epafrodito de volta a Filipos, Paulo confia-lhe uma afetuosa carta para a
comunidade, em que agradece aos Filipenses a sua preocupação, solicitude e
amor. Além disso, dá notícias, informa a comunidade sobre a sua própria sorte e
exorta os Filipenses à fidelidade ao Evangelho.
O trecho em causa faz parte de uma perícopa em que Paulo fala
aos Filipenses de si, da sua situação, das suas preocupações e esperanças. Está
cônscio de que corre risco de vida, mas sereno, alegre e confiante, porque a
única coisa que lhe interessa é Cristo e o seu Evangelho.
Quando escreve a carta, não sabe se sairá da prisão vivo ou
morto mas, para ele, isso não é importante; o que é importante é que Cristo
seja engrandecido – seja através da vida, seja através da morte do apóstolo. Para
ele, Cristo é a autêntica vida, a razão de ser e de viver.
Na ótica paulina, a morte seria bem-vinda, não como
libertação das dificuldades e das dores da vida terrena, mas como caminho direto
para o encontro definitivo e imediato com Cristo. Paulo não se importaria de morrer
a curto prazo, porque significaria a comunhão total com Cristo. “Para mim,
viver é Cristo e morrer é lucro” é uma frase muito conhecida, que está escrita
no seu túmulo, em Roma. No entanto, Paulo está consciente de que Deus pode ter
outros planos e querer que ele continue – para benefício das comunidades
cristãs – algum tempo mais na terra, a dar testemunho do Evangelho de Cristo. E
Paulo, por Cristo, está disposto a tudo. Não são os interesses de Paulo que
contam, mas os interesses de Cristo.
***
Se nos convencermos de que são os interesses de Cristo que
devem prevalecer, certamente a nossa atenção se voltará para aqueles/as que a
sociedade deixa para últimos/as.
2023.09.24
– Louro de Carvalho
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