Um
novo surto de violência causou, pelo menos, 71 vítimas, entre mortos e feridos,
em cinco comunidades da área metropolitana de Port-au-Prince, capital do Haiti,
no período compreendido entre 15 e 29 de agosto.
Um
exemplo dos últimos
dias mostra que também aqueles que protestam contra a violência se arriscam a
ser vítimas da mesma. Liderados pelo pastor da igreja
local, manifestantes membros de uma comunidade desfilavam e empunhavam facões,
pedindo a erradicação dos gangues criminosos nas favelas, em Canaã, nos arredores
de Port-au-Prince, de modo que seja posto fim à violência e ao sofrimento que
ela provoca. Porém, os manifestantes sentiram-se obrigados a dispersar,
quando se viram atacados a tiro.
O ataque ocorreu em Canaã, numa favela
nos arredores da capital, fundada por sobreviventes que perderam as suas casas
no devastador terramoto de 2010. Os disparos foram filmados em tempo real por
jornalistas no terreno. Várias pessoas foram mortas e outras feridas, afirmou
Marie Yolène Gilles, diretora do grupo de direitos humanos Fondasyon Je Klere,
à Associated Press (AP).
Também Gédéon Jean, diretor do Centro de Análise e Pesquisa sobre Direitos
Humanos do Haiti, disse à AP que
também assistiu ao ataque online e
que planeava pedir ao Ministério da Justiça que investigasse. Chamou o pastor
de irresponsável, por comprometer um grupo de pessoas e por as colocar numa
situação como esta. “A polícia deveria tê-los impedido de irem”, disse Jean. “É
horrível de mais que o Estado permita que algo assim aconteça.”
O Haiti vive uma onda de violência e
de forte instabilidade institucional, com a situação a agravar-se desde 2021,
depois do assassinato do presidente Jovenel Moise Jovenel.
Desde então, quadrilhas ultraviolentas tomaram o controlo de grande parte do
território nacional.
Os
confrontos envolvem os gangues rivais G9 e G-Pep, grupos que disputam o
controlo de territórios e cobram dinheiro aos moradores, em troca da alegada
oferta de ‘proteção’.
A G9 é liderada pelo ex-polícia Jimmy Cherizier, conhecido
como Churrasco, e que já foi considerado responsável por outros massacres no
passado. Há suspeitas de que o seu grupo se tenha aliado ao partido do
presidente Jovenel Moise Jovenel, que foi
assassinado há cerca de um ano – o Partido Haitiano Tèt Kale (Parti Haïtien Tèt
Kale – PHTK). Cherizier afirmou que o crime contra o presidente foi algo
cobarde e horrendo. Já o G-Pep é rival do outro grupo e é amplamente apoiado
pelos oponentes políticos do PHTK.
De 1 de janeiro a 15 de agosto, mais
de 2400 pessoas foram mortas no Haiti, mais de 950 sequestradas e 902 feridas,
segundo as estatísticas mais recentes da Organização das Nações Unidas (ONU).
No 2.º
trimestre de 2023, a violência no Haiti registou um aumento de 14% em
comparação com o primeiro, com 1860 pessoas mortas, feridas ou raptadas. É o
que denuncia o relatório periódico do departamento integrado da ONU no Haiti
(BINUH), divulgado a 31 de agosto.
O aumento da
violência dos gangues continua concentrado principalmente na capital,
Port-au-Prince, e no seu interior, com quase 300 pessoas mortas ou feridas por
franco-atiradores no bairro pobre de Cité Soleil, bem como em bairros de
similar pobreza.
Os
relatos divulgados pelas agências no terreno referem a multiplicação de casos
de graves violações e abusos dos direitos humanos, incluindo sequestros, raptos,
linchamentos e violência sexual e baseada no género, contra mulheres, contra raparigas
e contra rapazes.
A
última vaga de violência resultou na deslocação forçada de mais de dez mil
pessoas, que encontraram refúgio em mais de vinte locais e em famílias de
acolhimento.
De
acordo com Philippe Branchat, coordenador humanitário da ONU, “a
comunidade humanitária está profundamente preocupada com esta nova escalada de
violência extremamente brutal. Famílias inteiras, incluindo crianças, foram
executadas, enquanto outras foram queimadas vivas”. “Este recrudescimento da
violência tem causado um sofrimento indescritível ao povo haitiano”,
acrescentou o responsável.
Apesar
das dificuldades de acesso devido à insegurança, os parceiros humanitários
estão a prestar a assistência possível aos deslocados, nomeadamente alimentos,
água, abrigos, saneamento, cuidados de saúde e apoio psicossocial, em especial
às vítimas de violência sexual.
Os
dados da ONU indicam que quase metade da população haitiana necessita de ajuda
humanitária e alimentar e que cerca de 200 mil pessoas foram obrigadas a fugir
das suas casas, um crescimento vertiginoso, relativamente a anos recentes. A
esse número haverá que somar os repatriamentos forçados de haitianos vulneráveis
de países vizinhos, acompanhados de graves violações dos direitos humanos, os
quais terão quadruplicado desde 2022.
Perante
o agravar da situação, a organização de direitos humanos Human Rights Watch divulgou
um relatório que traça um quadro de recomendações dirigidas a várias entidades
que podem contribuir para inverter o rumo deste país caribenho. Essas
recomendações resultaram de uma audição de perto de 130 cidadãos, boa parte das
quais foram vítimas da violência, realizada nos meses de abril e maio, últimos.
O título do documento é eloquente: “Viver num pesadelo”.
***
De
acordo com este relatório, de que se dá, a seguir, um ligeira amostra, abundam
as mortes, os sequestros e o estupro generalizado, visto que os grupos criminosos
utilizam a violência sexual para aterrorizar a população e para demonstrar o
seu controlo. Os familiares das vítimas e sobreviventes disseram ter sofrido ou
testemunhado estes e outros abusos na área metropolitana de Port-au-Prince,
desde janeiro deste ano. Várias formas de violência foram frequentemente
acompanhadas de incêndios em casas e saques, forçando as pessoas a fugir, de
que resulta a existência de cerca de duas dezenas de milhares de refugiados e
de deslocados.
O
governo haitiano não conseguiu proteger as pessoas da violência de grupos
criminosos. Para os que vivem nas áreas afetadas, a polícia e outras
autoridades quase não existem.
Em resposta,
alguns residentes recorreram à “justiça popular”, formando o movimento Bwa
Kale, que ganhou força no final de abril de 2023. De acordo com o BINUH, em junho de
2023, o movimento teria matado mais de 200 pessoas suspeitas de serem membros
de grupos criminosos, muitas vezes em conluio com polícias.
A
situação de segurança é exacerbada por um intenso impasse político, um sistema
judicial disfuncional e uma impunidade prolongada para as violações dos
direitos humanos. O primeiro-ministro, Ariel Henry, controlou todas as funções
executivas e parlamentares desde o assassinato do presidente Jovenel Moïse Jovenel, em 2021 e não chegou a um
consenso com os atores políticos haitianos, para permitir uma transição
democrática. Com
base na informação disponível, conclui-se não ter havido processos ou
condenações dos responsáveis pelos assassinatos, sequestros e violência
sexual, cometidos desde o início do ano.
Entretanto,
a ONU estima que quase metade da população total do Haiti, de 11,5 milhões de
pessoas, sofre de insegurança alimentar aguda. Mais de 19 mil pessoas que vivem
na comuna de Cité Soleil, em Port-au-Prince, enfrentaram uma fome catastrófica no
final de 2022, pela primeira vez desde que há registo no Haiti e nas Américas.
Haiti
é hoje um dos países com comunidades em maior risco de morrer de fome, ao lado
do Afeganistão, do Burkina Faso, do Mali, da Somália, do Sudão do Sul, do Sudão
e do Iémen.
A
Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e o
Programa Alimentar Mundial (PMA) elevaram o Haiti ao “nível de maior
preocupação”, em termos de insegurança alimentar, no período de junho a
novembro de 2023. Além disso, como foi referido cerca de 5,2 milhões de pessoas
necessitam atualmente de assistência humanitária.
Quase 195 mil haitianos estão deslocados internamente devido à violência desde 2022, e muitos outros deixaram o país, muitas vezes empreendendo viagens perigosas que esperam que levem à segurança. Porém, no 1.º semestre de 2023, mais de 73 mil pessoas foram devolvidas, à força, ao Haiti, muitas vezes em condições abusivas, principalmente na República Dominicana e em outros países, apesar dos elevados níveis de risco para as suas vidas e para a .sua integridade física.
***
Enfim,
estamos envolvidos pelos sofrimentos do povo ucraniano, provocados por uma
invasão externa, e ignoramos – ou fingimos ignorar o que se passa em tantas
partes do planeta. E o Haiti é um dos casos de cruel guerra interna, na
sequência de uma catástrofe natural, de que não resultou a união das forças
vivas do país para a reconstrução, antes descambou a situação num caos
provocado, não tanto pela luta pelo poder, mas pela ambição do controlo, concretizada
na onda de terrorismo interno organizado em todo o país, mas principalmente nos
subúrbios da capital.
E o
controlo, que não existe efetivamente, apenas cria o ambiente de terror e de
imoralidade e de crime, nas suas mais refinadas modalidades. A ONU e toda a
comunidade mundial terão de olhar para o Haiti. É impensável que um povo sofra
tanto e a política não se organize em prol do bem comum e da colmatação das
necessidades dos cidadãos. Por trás dos números que impressionam, estão as
pessoas a sofrer e as que morreram.
2023.01.09 – Louro de Carvalho
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