Portugal conta, a partir de 30 de setembro, com seis cardeais, quatro dos
quais possíveis eleitores em próximo conclave, tendo D. Américo Aguiar, bispo-eleito
de Setúbal, chegado ao cardinalato antes de completar 50 anos, com o pregão
enunciado em epígrafe.
O principal
rosto da organização da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), em Lisboa, em
agosto, assegura, em entrevista conjunta à agência Lusa e à agência Ecclesia,
não ter “expectativa nenhuma” sobre a elevação a cardeal, confessando que os
primeiros sentimentos, a 9 de julho, ao conhecer a sua nomeação, foram de medo,
de incapacidade, de se sentir um “danoninho” (produto alimentício da Danone
voltado para o público infantil). Porém, logo
surgiu a confiança, pois, quando tem um desafio, entrega-se-lhe na totalidade,
aprende e tenta corresponder. “E é nessa disponibilidade que vou responder ao
desafio”, assegurou.
Viu na
nomeação para o colégio cardinalício “um gesto de homenagem aos jovens, aos
jovens portugueses” envolvidos na preparação da JMJ, por quem o Papa sempre
manifestou carinho, homenagem, gratidão, nos quatro anos da sua preparação.
Admite que os contactos frequentes com o Pontífice, em Roma, para a preparação
da JMJ tenham sido fulcrais. Acredita e interpreta, humanamente, que o facto de
ter tido seis, oito, 10, 12 audiências privadas com o Papa nestes anos, levou a
que ele o mirasse, “tirasse as medidas” e decidisse o que decidiu”, afirma o
“cardeal Américo”, como já era conhecido no seminário e visto por muitos como
“um terrível seguidor de Francisco”, podendo esta faceta ter sido determinante.
Segundo o
cardeal, o Papa, face à sua leitura dos tempos atuais da Igreja e dos desafios
futuros da Igreja”, terá valorizado a “disponibilidade, sincronização,
fidelidade” ao que Francisco significa para o futuro cardeal, mas também o que
significaram Bento XVI e João Paulo II. Todavia, reconhece que não ousou
perguntar ao Papa porque é decidiu fazer dele cardeal.
Quanto ao papel
enquanto cardeal, diz concordar com uma frase que leu recentemente e que aponta
para o estar a assistir-se a uma mudança de paradigma: de cardeais “príncipes
da Igreja” para cardeais “príncipes do Papa”: “É isso que o Papa, nas suas
últimas nomeações, tem reforçado: não é poder, não é fausto, não é nada disso.
São aqueles que ele chama mais proximamente para junto de si, sem ser até
geográfico, mas para aquilo que seja o governo da Igreja, naquilo que seja o
ter mais perto as sensibilidades, seja da idade, seja da geografia, seja das
outras circunstâncias”, sustenta, verificando a proximidade das posições do
Papa levou alguns setores da Igreja a estarem distantes das suas próprias
posições, como quando, antes da JMJ, referiu que naquele encontro não se quereria
“converter os jovens a Cristo ou à Igreja”.
De imediato
“choveram” críticas de setores mais conservadores, mas desdramatizou,
considerando que, em casa, com os amigos, com a família, com os conhecidos, não
estamos todos na mesma posição, nem com as mesmas proximidades. E defende que,
“nesta família que somos, nesta humanidade que constituímos”, é importante – é o
que o Papa tem dito e o cardeal referiu, muitas vezes, até em relação à JMJ – é
“conhecer os outros, conhecermo-nos uns aos outros e o que é diferente não deve
ser obstáculo, não deve ser problema”. “O que é diferente deve ser
oportunidade, deve ser riqueza e deve ser caminho em conjunto. Eu sinto isso”,
disse, lamentando: “Estamos na era da liberdade de expressão, mas parece que,
quando alguém se expressa de modo diferente daquilo que eu penso, dá uma
guerra”.
Para o
cardeal, que respondeu a todos os críticos que lhe enviaram mensagens sobre a
posição tomada a poucas semanas da JMJ, “é uma coisa estranha”. Exigimos
respeito pela liberdade de expressão, mas reagimos violentamente, quando alguém
pensa diferente. “Dentro de casa, às vezes, há reações que eu acho que não são
justificáveis”, verificou.
***
Sobre o aspeto financeiro da JMJ, D. Américo Aguiar,
diz que “ainda é preciso tempo” para falar dos momentos mais difíceis vividos
na preparação do encontro, mas garante que o encontro deu lucro e que, em breve,
serão conhecidos os números. Considera que “é preciso tempo”, pois o mais difícil envolve sempre
pessoas e não é justo, porque se pode estar a ver mal. Para já, diz que houve
“dificuldades, problemas”, quer na Igreja, quer na relação com instituições.
No
entanto, contrapõe o entusiasmo dos dias da Jornada nos muitos profissionais de
diversos setores com quem contactou. “Eu gostava de dizer que, durante a
Jornada, porque é sentido e foi verdade, eu estava preso naquela coisa do
séquito, e não pude sair muito fora daquela ‘prisão domiciliária’. Mas, à
noite, dei umas escapadinhas e andei a ver e falei com polícias, falei com
médicos e falei com os homens da higiene urbana […]. Estavam felizes. A ideia
que eu tinha é de que havia um desconforto, porque tiveram de trabalhar, porque
vieram não sei de onde. Não foi isso que eu encontrei. Foi alegria de
participar, alegria de ser parte”, garante.
E
é isso que o cardeal quer que os portugueses sintam: “Que cada um sinta que fez
uma coisinha pequenina e fez a Jornada.” O sucesso da Jornada aconteceu “graças
ao polícia, ao bombeiro, ao homem da higiene urbana, ao anónimo”, enfim, “ao
empenho de todos”. Por isso, dói e magoa, quando vem a crítica fácil, o
populismo, “a rafeirada ou não se sabe o quê estragar algo feito “com tanto
carinho, com tanta entrega, com tanto sacrifício por todos os portugueses”.
Quanto às
polémicas dos últimos meses, desde logo com os custos da organização, como o
altar-palco do Parque Tejo, Américo Aguiar diz que “gostaria que algumas não
tivessem acontecido, mas aconteceram”. E diz-se o único culpado por não ter conseguido
explicar, mas, quanto mais tempo passa, acredita que Portugal e os portugueses vão
entendendo a dimensão do evento.
Julga ter
sido o seu calcanhar de Aquiles não ter conseguido transmitir a dimensão de
tudo o que envolveu a JMJ: participantes, custos, gastos, tempos, tudo. Porém, entende
que tudo foi muito bom, pelo custo, pelo empenho, pela dedicação e pelos
problemas.
Tendo
anunciado que as contas finais da semana da JMJ serão apresentadas em breve e
que o encontro deu lucro, a questão é saber se a Fundação JMJ Lisboa 2023 será
extinta ou se continuará. “Inicialmente, quando começámos o caminho, o objetivo
era que a Fundação, após cumprimento dos prazos legais das suas obrigações
fiscais, pudesse ser extinta, porque se extinguiu o objetivo fundamental”. Porém,
o patriarca Rui Valério pode entender, “porque não é descabido, que a fundação
se mantenha, até para dar seguimento a coisas que podem acontecer no país
ligadas à juventude, sempre como legado, como herança do que foi a JMJ 2023”.
***
Uma das mais
fortes mensagens deixadas por Francisco na JMJ de Lisboa foi a de uma Igreja
para “todos, todos, todos”, o cardeal avisa que não se pode traduzir por “tudo,
tudo, tudo”.
Aqui recordo,
o abade de Tarouca, Manuel Carlos Pereira Lopes, que dizia, já há muitos anos,
que a Igreja é para todos, mas não para tudo. E eu acrescento, “mas não para
proveito próprio, quando dá jeito, quando interessa para a fotografia
económica, política, clerical ou laical”.
O novo
purpurado sustenta que “isto é um caminho que estamos a fazer” e confessa que “quanto
mais o Papa dizia ‘todos’, mais eu ficava feliz”. E, quando, em Fátima, disse –
e ele é magnífico, “porque tem os textos que estão feitos e, a certa altura, é
capaz de ler a sua audiência e o contexto e, rapidamente, se focar – que a
Igreja é como esta igreja [a Capela das Aparições], não tem portas, toda a
gente entende. Nós não temos o direito de barrar a ninguém o acesso a Cristo”.
No entanto, o
homem que passou a integrar o grupo de cardeais é perentório a alertar: “Agora,
‘todos, todos, todos’ não se traduz por ‘tudo, tudo, tudo’. Quem ama, quem
quer, quem cuida, sabe que o Pai ama, quer e cuida, [mas] isso não quer dizer
tudo, tudo, tudo.” “Ou seja, o nós chamarmos a atenção, o nós corrigirmos, o
nós termos considerações, não significa menos amor, menos entrega e menos
dedicação, pelo contrário. Portanto, o ‘todos, todos, todos’ […] é que nós não
temos o direito de vedar a ninguém o acesso a Cristo”, diz D. Américo Aguiar. “A
partir do momento em que a pessoa chegou a Cristo, o meu trabalho, a minha fé é
que Cristo opere no coração dessa pessoa e a converta”, vinca.
É por isso
que tem toda a razão – e ele di-lo, também por outras palavras, na entrevista,
ao apontar que o intuito primeiro não era converter os jovens. A nós cabe
testemunhar e expor, clara e convictamente, o Evangelho, mas é Deus quem toca
os corações, que para Ele se voltam.
Do que ficou
para a Igreja em Portugal, no rescaldo da JMJ, além das mensagens do Papa, o
cardeal diz que, para já, temos “ notícias do país, das dioceses, no arranque,
na retoma”. Aliás, sabe que a diocese de Coimbra anunciou que vai arrancar, com
um Sínodo da Juventude. Isso é fundamental que, tendo retirado do sofá os
jovens, que eles não regressem ao sofá.
Recordando
que o Papa defende, na exortação apostólica ‘Christus vivit’ (Cristo Vive) que
os jovens devem ser convidados para a missão, para arregaçar as mangas e
trabalhar, ir ao encontro das periferias, ir ao encontro das pessoas, D.
Américo Aguiar frisa que “os jovens gostam disso”. Gostam de ajudar no bairro
ou na aldeia, de limpar a praia, de apanhar plásticos, de tirar beatas do chão.
Porém, é preciso ter em conta que muitos não conhecem as orações ou nem sabem
rezar. Alguns não sabem quem é Cristo. E isto coloca algumas limitações. Neste
contexto, sustenta que “o convite à missão é urgente”, mas avisa que “isso tem
o lado do ‘back office’, e dá muito trabalho, é muito exigente”. Isso dá muito
trabalho, mas é preciso que, na realidade de cada diocese, se aproveite a maior
riqueza da JMJ em Portugal, que foi descobrir, em todo o país, norte, sul,
litoral, interior, continente e ilhas, milhares de jovens que estiveram a
preparar a Jornada e que estão em prontidão para corresponder ao que a Igreja
lhes proporcionar. E, para o conseguir, é preciso continuar a “provocar”
nos jovens o desejo de alcançar as metas, nomeadamente fazer com que não sejam
“administradores de medos, mas empreendedores de sonhos”, como Francisco pediu no
encontro na Universidade Católica Portuguesa.
Para termos
um tempo novo, os jovens têm de reconquistar o gosto, a coragem de sonhar,
pois, não tendo os jovens emprego, ganham pouco, não podendo comprar casa ou
não tendo como pagar, não podendo ter filhos ou não tendo onde os deixar, deixa-os
um pouco deprimidos.
Outro dos legados
da JMJ foi a lei da amnistia, que levou à libertação de mais de 400 de jovens.
“O importante
da amnistia foi, humanamente, nós devolvermos esperança a alguém que cometeu
uma falha na sua vida. Isto é profundamente humano e ultrapassa a questão
religiosa. Quando eu disse ao Papa da possibilidade de amnistia, o Papa ficou
felicíssimo exatamente neste registo. Um de nós comete um crime, a sociedade
impõe uma pena, nós cumprimos essa pena, é humano termos a capacidade de
devolver esperança a essa pessoa”, acrescentou, lamentando as críticas que se
ouvem sobre as libertações ao abrigo desta decisão extraordinária. Uma coisa é falar
com o presidiário ou com a sua família e outra é falar com a família das
vítimas ou com as vítimas. O sentimento é totalmente diferente e é preciso
conhecer e compreender os dois lados. Agora, “quem sofreu as consequências dos
atos graves do que tem estado limitado na sua liberdade tem esta grandeza de
aceitar que humanamente nós temos de ser maiores do que aquele que cometeu o
crime e temos de lhe dizer: ‘nós vamos-te devolver um pozinho de esperança’”,
afirma o cardeal.
Defensor
assumido das ideias do Papa Francisco, D. Américo Aguiar reconhece os momentos
difíceis que a Igreja atravessa, com as divisões entre a ala progressista e a conservadora.
A poucos dias do início da primeira sessão da XVI Assembleia Geral Ordinária do
Sínodo dos Bispos, de 4 a 29 de outubro, no Vaticano, frisa que o Papa avisa
que “o sínodo não é um parlamento, em que chegam lá as várias fações, cada uma
conta as espingardas […] e ganha a maioria”. O sínodo é um local onde cada um
se deve sentir livre para falar, ter o gosto de ouvir e deixar o Espírito Santo
decidir. Às vezes, “o Espírito Santo toma a decisão que não é propriamente a da
maioria”.
Falamos de irmãos
e irmãs que como sensibilidades diferentes sobre alguns temas. E o Papa tem-nos
provocado a todos para que possamos refletir sobre eles. De facto, consultando
os documentos preparatórios do sínodo se verifica “alguma conexão” entre as
diferentes sensibilidades. Assim, “há preocupações europeias que casam com
preocupações americanas, africanas e asiáticas”. No entanto, “depois, quando
começamos a pôr o microscópio a aproximar, depois vem muito mais a identidade
nacional e realidades muito específicas”, diz o cardeal D. Américo Aguiar.
É muito
importante não desvalorizar a opinião do irmão, a opinião de um país, a opinião
de uma conferência episcopal. Não quer dizer que estejam errados ou certos, mas
importa que se sintam respeitados ao pronunciarem-se e que estejam disponíveis
para acolher o sentir da Igreja em processo sinodal. Com isto, Américo Aguiar
mostra-se convicto de que o período da Assembleia Geral do Sínodo será um tempo
“de muita oração, de muito trabalho”, confessando-se expectante em relação às
conclusões. E enfatiza a vigília de oração ecuménica, de 30 de setembro, a
anteceder o início da Assembleia Geral do Sínodo, com o Papa a rezar com outros
12 líderes de confissões cristãs, na Praça de São Pedro, no Vaticano, integrada
iniciativa Together, dirigida aos
jovens.
Perante este
facto, Américo Aguiar lembra que a JMJ de Lisboa fortaleceu o espírito
ecuménico.
“É um caminho
que vem sendo feito nas jornadas mundiais da juventude e eu gostei muito do que
aconteceu no nosso país. Algumas dioceses têm alguma tradição de ecumenismo, de
diálogo inter-religioso, noutras nem tanto, são realidades totalmente
diferentes, e confesso que gostei e fiquei muito feliz com aquilo que foi o
acontecer de vários eventos, acontecimentos, uns mais oficiais no calendário da
jornada, outros oficiosos, outros laterais, ou seja, acho que todas as pessoas
tiveram oportunidade de dizer, de se dar a conhecer”, recorda.
Reconhecendo
que, às vezes, há “reações menos positivas daqueles que não gostam”, o novel
purpurado frisa que, “desde que tudo aconteça no respeito pelos outros, tem de
se fazer caminho”. E lembra que, nos quatro anos de preparação da JMJ, sobretudo
com a Comunidade de Taizé, surgiu a questão dessa vigília, do encontro de
jovens de várias religiões e de sentimento diferente, diferenciado de
transcendência. Ora, é “muito interessante e muito rico, que os jovens se
disponibilizem e queiram, nas suas diversas confissões, rezar ou ter presente
uma vigília de oração”. Eles são os filhos do Sínodo”, conclui.
***
Que o cardeal
D. Américo (do seminário e do Papa) se robusteça cada vez mais pessoalmente, no
pastoreio da diocese de Setúbal (que ainda não tem os vícios das velhas
dioceses) e na sua ligação com Roma e com o Papa, sem eclipsar a solicitude
paulina por todas as Igrejas. Quanto às críticas, é de vincar que “só se atiram
pedras às árvores de fruto”.
2023.09.29 – Louro de Carvalho
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