O Professor Marcelo Rebelo de Sousa compareceu na
Universidade de Verão do Partido Social Democrata (PSD), partido de que já foi
líder, o que é, de todo, considerado desadequado.
No nosso ordenamento jurídico-constitucional, o Presidente
da República (PR) é um órgão de soberania unipessoal, que é o garante da
unidade nacional e do regular funcionamento das instituições democráticas. E,
embora possa ser proveniente de uma área partidária e concitar o apoio de
partidos políticos, as candidaturas são pessoais e independentes, não
partidárias.
De resto, os antecessores Marcelo Rebelo de Sousa,
eleitos em democracia, souberam distinguir o patamar partidário e o da
chefatura do Estado, não constando que tenham comparecido em eventos
partidários durante os respetivos mandatos presidenciais. Mário Soares fez
questão de entregar o seu cartão de militante do Partido Socialista (PS); e,
após o cumprimento de dois mandatos consecutivos, recusou a devolução do cartão,
embora passasse e fazer intervenções públicas de índole socialista.
Não é assim com o primeiro-ministro (PM), nem com
os outros membros do governo. Efetivamente, o governo emana da Assembleia da
República (AR), cuja composição é constituída, exclusivamente, por deputados apresentados
em listas partidárias (embora haja deputados com estatuto de independente, mas apresentados
em listas de partido, bem como deputados que passaram a independentes ou não
inscritos, que tinham sido apresentados por partidos). Por isso, o que se exige
ao PM e aos outros governantes é que não misturem funções governativas com
funções partidárias e equipamentos de governo com os de partido. Todavia, não
lhes está vedada a participação em eventos do respetivo partido.
O atual PR deu, a princípio, sinais de uma
postura de proximidade crítica em relação ao governo e à AR: apoiando, discordando,
criticando, vetando e promulgando (às vezes com comentários a propósito e a
despropósito). Entretanto, depois que o PS ganhou, em eleições (antecipadas) para
a AR, a maioria absoluta, as coisas mudaram bastante. O PR participou em
eventos organizados pela sua família partidária ou em que suas altas figuras estiveram
em evidência e passou a invetivar, diretamente, ministros e secretários de Estado,
a ponto de o PM ter vindo a terreiro fazer estalar o verniz, obviamente com
perdas para o governo.
É certo que o PR já tinha intervindo numa Universidade
de Verão do PSD, por videoconferência. Era menos mau. Porém, desta vez, foi
pior. Participou de forma presencial, com o logótipo do PSD e a par de figuras
como Durão Barroso.
A este respeito, o constitucionalista Vital Moreira
exarou, no bloque “Causa nossa”, a 1 de setembro, a sua discordância em relação
a esta postura do PR, referindo que “o inesgotável ativismo político do atual inquilino de Belém” (ativismo
que não entrou de férias) terá forçado “as margens do seu estatuto
constitucional”, designadamente, “com a sua participação num evento político do
PSD […] num deslocado sinal de cumplicidade política”.
Também
eu penso que nenhum PR interveio “num evento partidário, num entendimento” –
como diz o Professor Vital Moreira – “constitucionalmente apropriado, de
separação entre a Presidência da República e os partidos políticos”, uma “prudente
e consolidada prática, desde a origem do atual sistema político-constitucional”,
de que o atual PR se tem afastado.
É
certo que os seus antecessores conduziram, na reta final dos segundos mandatos,
uma campanha clara de hostilização aos governos então em funções. Assim, Ramalho
Eanes deu cobertura à constituição do Partido Renovador Democrático (PRD) (que
liderou depois de sair de Belém) o qual, nas eleições seguintes para a AR, granjeou
18% dos votos do eleitorado. Mário Soares, após dura campanha contra a segunda
maioria de Cavaco Silva, conseguiu dar posse ao primeiro governo liderado por
António Guterres, por força das eleições de que o PS saiu ganhador. Jorge
Sampaio, que dera posse ao governo de Santa Lopes, com vigilância apertada em determinadas
áreas, dissolveu a AR, meses depois, e convocou eleições antecipadas, de que
saiu vencedor o PS; E Cavaco Silva, que parecia, nesse aspeto, bastante mais
discreto, não se dispensou de, logo no discurso de tomada de posse para o
segundo mandato (9 de março de 2011), mandar uma bojarda contra o segundo governo
de José Sócrates, instigando ao “sobressalto democrático” os jovens que se iam
manifestar a 12 de março; em outubro de 2015, no pressuposto de que a força
política mais votada, em eleições legislativas, fora a coligação Portugal à
Frente (PàF), coligação de PSD e Cendro Democrático Social (CDS), fez questão
de nomear Passos Coelho como primeiro-ministro; e como o seu programa de
governo foi rejeitado pela AR, para aceitar um governo presidido por António
Costa, exigiu acordos partidários escritos.
Entretanto,
Vital Moreira explicita que, ao invés do que ocorre em sistemas
presidencialistas e em alguns sistemas semipresidencialistas, em Portugal, o PR
“não é candidato eleitoral de partidos nem tem partido, uma vez eleito, o que
está de acordo com o seu papel de ‘poder moderador’, que supõe a sua
imparcialidade partidária”. Assim, ao infringir o princípio da separação
dos poderes, invocado por alguns só quando convém, o PR “também perde em
autoridade quanto ao seu papel primacial de garante do ‘regular funcionamento
das instituições’, que supõe, obviamente, a ausência de qualquer
enviesamento partidário”.
O
renomado constitucionalista também não concorda com o facto de o PR se ter,
eventualmente, oferecido “para intervir em reuniões das juventudes partidárias
do PS – que obviamente rejeitou – e do CDS, partido que nem sequer em
representação parlamentar”, que “aceitou, agradecido”. Todavia, não se conhece
o critério que levou o chefe de Estado a disponibilizar-se para intervir em sessões
destes partidos e excluir os demais.
***
Segundo noticiava o jornal online Observador, Marcelo
Rebelo de Sousa disponibilizou-se para ir à rentrée do PS, designadamente à
Academia Socialista, mas socialistas não quiseram, sob a alegação de que o “Presidente
não deve participar em eventos partidários”. A Juventude Socialista (JS) “considerou que seria mais oportuno noutra
ocasião”, diz o Palácio de Belém.
Marcelo
Rebelo de Sousa informou a JS de que estaria disponível para
intervir na Academia Socialista, tal como esteve na Universidade de Verão do
PSD. Mas o PS, onde a participação do chefe de Estado no evento
social-democrata caiu mal, não
se mostrou interessado em recebê-lo e o PR acabou por falar só aos jovens do
próprio partido, numa aula sobre a guerra da Ucrânia.
Por sua vez,
a Juventude Popular (JP) aceitou a disponibilidade do chefe do Estado.
Assim, a
rentrée de Marcelo será marcada pela presença em dois eventos partidários à
direita, neste caso organizados pelos jovens
do PSD e do CDS. A participação na Academia Socialista poderia
ajudar a contornar as leituras políticas feitas a partir da notícia da
participação do PR, mas os jovens do PS não se disponibilizaram para o receber em
Évora. “Um Presidente da República não deve
participar em eventos partidários”, disse ao Observador um alto dirigente socialista, em jeito de explicação
sobre a ausência de Marcelo na Academia Socialista.
Porém, a
frase socialista tem duplo efeito: se o seu teor se aplica à rentrée do PS,
alegam os socialistas, também se deveria aplicar à Universidade de Verão do PSD,
em Castelo de Vide. No PS, cujos dirigentes têm acalmado as reações públicas
mais hostis ao PR, pois a coabitação
é cada vez mais difícil – os últimos episódios foram os vetos de
diplomas relevantes como o da carreira docente ou o das medidas da Habitação –,
a ida do PR a Castelo de Vide não foi bem vista.
A SIC tinha
noticiado que o chefe de Estado teria mostrado “disponibilidade” para estar
presente na Academia Socialista. A tentativa de
aproximação terá sido feita pela assessora do Presidente para a
Juventude, Rita Saias, que contactou a direção da JS, o que sucedeu, pelos
vistos, ainda antes de ter sido anunciada publicamente a ida do PR ao evento
social-democrata.
O PR definiu
uma regra para contornar a leitura de setores do PS que o definem como líder da
oposição: só falar do tema da Ucrânia, não de assuntos nacionais. E cumpriu.
Porém, Luís Montenegro deslocou-se a Castelo de
Vide – sem os jornalistas terem antecipadamente essa informação –, para receber
o Presidente, que falaria durante duas horas ao lado do logótipo do partido,
imagem inédita desde que está em Belém, de que boa parte do PS não gostou.
***
Considerar que o PR, na intervenção em Castelo de Vide, não explicitou
apoio ao PSD, pois se limitou a falar da Ucrânia, e não de política interna, é
tentar tapar o sol com a peneira. O apoio ao PSD decorre logo do facto de o PR
ir a um evento partidário e da publicitação que se faz do facto de o chefe de
Estado e antigo líder do partido (como outros que intervieram) ter comparecido.
A isto acresce o ter falado em prolongada exposição nos canais de televisão com
o logótipo do partido atrás de si. E, como vinca Vital Moreira, “mesmo que
tenha um poder de consulta qualificado em matéria de política externa, esta também
é da competência decisória do governo, que por ela responde perante a AR, e não
do PR, não fazendo sentido que este vá discuti-la num evento político do
principal partido da oposição, como se fosse o responsável por ela”.
O
facto de Marcelo Rebelo de Sousa usar e abusar do seu estatuto profissional de
professor, como fez agora em Castelo de Vide, para ir dar uma aula aqui e acolá
em escolas de todos os níveis de educação e de ensino, em universidades e até
no #Estudo/em casa#, aquando da pandemia, também merece reparo. Isso não traz
mais-valia significativa para os estudantes. Pode ser fator de simpatia para
com crianças e para com jovens, mas que podia cingir-se à visita e ao diálogo.
Porém, em jeito de aula, é, sobretudo, um fator de vedetismo do PR cuja aposta
é na popularidade, em Portugal e no estrangeiro.
E,
por falar da prestação do PR na Ucrânia, compreendo que os Ucranianos tenham apreciado
a visita, as palavras e os gestos de Marcelo Rebelo de Sousa. Porém, discursar
em língua ucraniana não passou de simpatia e de vedetismo. Um chefe de Estado
fala na língua do seu país. Quanto às selfies e transgressões das normas de
segurança em tempo de guerra não comento. E, quanto à incursão televisionada
por uma trincheira de guerra, penso que é ousadia a mais para um visitante estrangeiro,
por mais qualificado que seja. Faz-me lembrar António de Spínola, que aterrava
à frente da linha de combate na Guiné-Bissau, contra o que é indicado para um alto
comandante militar, que deve ir junto à retaguarda, protegido pelas tropas do
seu estado-maior de campanha, e nunca na frente de combate. Mas, pelos vistos, António
de Spínola, que nunca teve um revés, sabia o motivo por que o podia fazer.
De
resto, queremos na chefatura de Estado o Presidente da República, não o professor,
o comentador (de palácio, de rua ou de praia), o treinador de bancada, ou o
aventureiro, o popular, a vedeta, ou o protagonista do trágico drama socioeconómico
que assola este “jardim à beira-mar plantado”.
2023.09.04 – Louro de Carvalho
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