Em Markowa (pequena
aldeia no Sudeste da Polónia), com perto
de 4500 habitantes, é aguardada, com ansiedade e com orgulho, a beatificação
da família Ulma, um símbolo da coragem e da compaixão de tantos outros polacos.
Estima-se que 300 mil tenham escondido e ajudado Judeus, na Segunda Guerra
Mundial, e que cerca de mil tenham sido executados.
Pai, mãe e os sete filhos (um deles
recém-nascido, com minutos de vida) serão todos beatificados, a 10 de setembro,
num processo canónico inédito na História da Igreja Católica. Exterminados por
ocultarem oito judeus na casa de família, em Markowa, já tinham sido
considerados Justos entre as Nações pelo Estado de Israel, em 1955.
Agora, têm honras de altar.
Casaram em 1935, quatro anos antes do início da guerra.
Józef trabalhava no campo, como agricultor e apicultor, e dedicava-se, nos
tempos livres, à fotografia; e Wiktoria cuidava da casa e das crianças. Porém,
na manhã de 24 de março de 1944, após ter recebido, da parte de um espião, a
denúncia de que estariam a dar abrigo a Judeus, uma patrulha nazi cercou-lhes a
casa: começou por atirar em direção ao teto, onde se encontrava o sótão, de onde
começou a escorrer o sangue dos oito judeus ali escondidos (Shaul Goldmann, com
os quatro filhos, Lea Didner, com a filha Reshla, de cinco anos, e Golda
Grünfeld). Em baixo, no lugar onde caía o sangue, havia uma mesa sobre a qual fora
posta – não se sabe porquê – uma foto das duas mulheres judias. O braço de uma
delas mostrava a estrela de David desenhada. Esta foto foi conservada até hoje
como “relíquia” deste martírio judaico e cristão.
Depois, trouxeram o casal para fora de casa e dispararam
contra Józef e contra Wiktoria (grávida de sete meses). Quando as crianças
começaram a gritar, por verem os pais a serem assassinados, os nazis dispararam
contra elas: Stanisława, de oito anos, Barbara, de sete, Władysław, de seis,
Franciszek, de quatro, Antoni, de três, e Maria, de dois. Depois,
incendiaram-lhes a casa, para que não restassem dúvidas aos habitantes da aldeia:
era o que lhes aconteceria, caso arriscassem ajudar os Judeus. E, mais tarde,
quando o corpo de Wiktoria ia ser colocado dentro do caixão, percebeu-se que,
do seu ventre, saíam a cabeça e parte do corpo do bebé recém-nascido. Na
iminência do extermínio da família, teria começado a dar à luz.
A história desta família ganhou fama nacional na
Polónia e, em menor grau, por todo o Mundo em 2003, quando a arquidiocese de
Przemyśyl iniciou o processo de canonização. A fama cresceu quando Francisco
aprovou o decreto sobre o martírio dos Ulma, a 17 de dezembro de 2022, abrindo
caminho à beatificação.
A celebração do dia 10 de setembro – para a qual são
esperadas cerca de 35 mil pessoas – ficará marcada como a primeira vez em que é
beatificada uma família inteira. Será presidida pelo cardeal italiano Marcello
Semeraro, prefeito do Dicastério para as Causas dos Santos, com a participação do
rabino-chefe da Polónia, Michael Schudrich.
O Vatican News,
portal de Notícias do Vaticano, dedica ao episódio palavras de apreço.
Vivendo o quotidiano na
simplicidade, esta família vivia e tornava vivo o Evangelho. A educação à fé, a
oração comum em família, a leitura da Bíblia, tudo isto fazia da família Ulma o
que São João Paulo II chamava “Igreja doméstica”, aberta aos mais necessitados.
Naqueles anos, “os mais necessitados” eram, sobretudo, os Judeus. A oito deles,
a família abriu as suas portas, ofereceu abrigo, comida e amizade, embora
estivesse ciente do imenso risco que corria.
Para sabermos mais sobre a história
da família Ulma, temos de voltar aos nossos dias, através de Manuela Tulli,
jornalista da agência ANSA e autora, com
o padre Paweł Rytel-Andrianik, historiador e responsável do Programa Polaco de
Vatican News – Rádio Vaticano, do livro “Mataram até as Crianças: a família
Ulma mártir que ajudou os judeus” (Edições Ares).
Enviada à Ucrânia, para
acompanhar as notícias da tragédia no coração da Europa, a jornalista, que fez escala
no Sudeste da Polónia, disse: “Conheci a família Ulma por
acaso. Trata-se de uma história que eu não escolhi, mas uma história que me
escolheu. […] Na Polónia, vi em todos os lugares imagens, desenhos e fotos
desta família numerosa, que viveu há mais de 80 anos. Sinceramente, eu nem sabia
quem era, embora os polacos quase o presumissem. Porém, sentiam-se felizes só
em vê-los, a estes dois pais tão jovens, já com tantos filhos pequenos.
Enquanto estava lá, pensei na guerra de hoje e na guerra de ontem: pensei na
amizade de hoje, pois, também hoje, os polacos abriram as portas das suas casas
a dois milhões de refugiados. Não foram apenas os institutos e os conventos que
deram hospitalidade; pensei na amizade de ontem, no facto de como esta família
abriu as portas da sua pobre casa, de apenas dois quartos, a oito judeus.”
E, antes de
continuar a viagem, o postulador da beatificação da família Ulma, ao explicar-lhe
o que os polacos faziam pelos ucranianos, ofereceu-lhe um livro, pedindo-lhe
que dedicasse algum à sua leitura, a fim de conhecer melhor a família. Meteu o
livro na mala e partiu para a Ucrânia. Quando regressou à Itália, soube que o
Papa decidira beatificar a família Ulma, pelo que procurou “entender melhor a
sua história”.
Em Markowa,
entre as paredes da sua casa, encontra-se a Bíblia da família Ulma – ainda
conservada – com a palavra “samaritano” sublinhada e com a palavra “sim”
escrita em anotação à margem. Era, pois, uma escolha consciente, uma vocação
abraçada na simplicidade de uma vida, que permaneceu atuante e harmónica,
apesar do período histórico do tempo em que a violência, o ódio e a divisão impunham
a desordem. Testemunho desta vida eram também as inúmeras fotos tiradas pelo
chefe da família, Josef, fotógrafo amador, homem de talento e ativo na
comunidade de Markowa. Depois, a denúncia, a traição e os nazistas, que
invadiram a pequena casa da família Ulma, dando tiros em direção ao sótão, onde
os amigos judeus estavam escondidos. Foi um massacre. Josef e Wiktoria foram
arrastados para fora e fuzilados na presença dos filhos. A mãe estava no sétimo
mês de gravidez. Depois do pai e da mãe, foi a vez de os filhos serem
“executados” e de a casa ser incendiada.
***
O padre Paweł
Rytel-Andrianik, historiador e autor do livro, junto com Manuela Tulli, recorda
que o assassinato da família Ulma consiste num martírio não apenas cristão: “O
padre François-Marie Léthel, consultor do Dicastério para as Causas dos Santos,
escreveu no jornal L’Osservatore Romano,
que este foi um martírio judaico-cristão. Com esta declaração, quis destacar a
evidência dos factos, pois foram assassinadas pessoas inocentes: a família Ulma
e oito Judeus: Shaul Goldmann, com os seus quatro filhos, Lea Didner, com a sua
filha Reshla, de cinco anos, e Golda Grünfeld.”
O Padre
Rytel-Adrianik conclui que, nesta história, notamos os horrores do Holocausto e
a luz do Evangelho, que “provém dos que o quiseram incarnar na concretude da
vida de cada dia”. O mal da guerra não conseguiu apagar a luz deste
acontecimento. Os membros da família Ulma, declarados Justos entre as Nações
pelo Estado de Israel e Beatos pela Igreja Católica, foram reconhecidos pela
Igreja católica como mártires, até o sétimo filho, ainda vivo no ventre da mãe.
O cardeal
Marcello Semeraro, em entrevista para a publicação do livro “Mataram até as
Crianças”, disse que, a petição para a beatificação, apresentada ao Santo
Padre, incluiu a criatura que estava no ventre da mãe, que havia começado, provavelmente,
a dar à luz, por medo, durante a sua execução. De facto, referindo-se a um
episódio evangélico, que pode ser chamado Batismo de sangue, como o caso dos
Santos inocentes, o purpurado afirmou: “Este é um caso muito singular. Este
nascituro, encontrado na fossa comum após o massacre [a cabeça e parte do seu corpo já estavam saindo do ventre de Wiktoria],
foi considerado digno do martírio.”
***
Pela primeira
vez na História da Igreja, será beatificada uma família inteira. Polacos, reconhecidos
como os “samaritanos de Markowa”, foram movidos pelo mandamento do amor e pelo
exemplo do Bom Samaritano. Constituem exemplo de coragem, de fé e, sobretudo, de
amor ao próximo, uma caridade sem limites, capaz de abalar até os mais duros corações,
afirma o Padre Witold Burda, postulador da Causa de Beatificação e sacerdote da
Arquidiocese de Przemyśl dos Latinos.
“A Igreja
está cheia de argumentos teológicos que nos ajudaram a demonstrar aos teólogos
do Dicastério para as Causas dos Santos que mesmo aquela criança por nascer,
sem batismo nem nome, pode ser considerada mártir da fé de Cristo”, afirma o padre
Burda, que lembra o martírio dos Santos Inocentes, as crianças que foram mortas,
em Belém, a mando do rei Herodes. É um martírio que continua até aos nossos
dias, com muitas crianças, especialmente as não nascidas, descartadas pelo
homem. Porém, Wiktoria e Józef Ulma alimentaram-se do amor pela vida e alimentaram
os seus filhos, mas, acima de tudo, deram o seu amor ao próximo acolhendo oito
Judeus em casa na Segunda Guerra Mundial, sabendo que ajudá-los lhes poria as
vidas em perigo.
Em nove anos
de matrimónio, tiveram seis filhos que “educaram sabiamente com espírito de fé
e amor”, afirma o postulador, “uma fidelidade diária aos dois maiores
mandamentos: o do amor a Deus e o do amor ao próximo”. A união da família que
participava na missa, todos os domingos, e as orações em casa que o casal
rezava diariamente com os filhos lembram-nos a importância da educação que
recebemos. “Tudo começa na família: começa-se com a vida, continua-se com a
educação.” Na família Ulma, o amor pela pátria e pela terra eram muito fortes.
Ambos eram de Markowa, vilarejo que, na época, se caraterizava pelo trabalho na
lavoura, o que os levou a ter grande respeito pela terra, como base para nossas
vidas.
Já poucas
horas após a execução dos servos de Deus, esta morte foi considerada pelo povo
como um martírio. As pessoas que relataram o trágico evento falavam com “grande
estima e respeito” e esta fama espontânea começou imediatamente. Há muitos anos,
um amigo de Józef adoeceu e, a caminho do túmulo da família Ulma, pediu a
intercessão deles para que fosse curado – graça que veio a acontecer e que o
homem se convenceu de ter recebido por intercessão de Józef.
Desde então, a história e
a devoção à família Ulma vem crescendo, não só na Polónia, mas em todo o Mundo.
De facto, em 2016, foi inaugurado, em Markowa, um museu dedicado aos Polacos
que salvaram os Judeus na Segunda Guerra Mundial.
O nome do
museu homenageia a família Ulma e, nos três primeiros anos, foi visitado por
cerca de 50 mil pessoas. Além disso, muitos peregrinos param, para honrar, a sua
sepultura a cada ano, isto porque representam, para muitos fiéis, um modelo de cônjuges
amorosos que construíram as suas vidas, juntos, sobre uma base sólida de fé. A fidelidade
diária ao mandamento do amor a Deus e ao próximo é o que distingue os
Samaritanos de Markowa. Por isso, o postulador convida todos os casais e
famílias a invocarem a intercessão dos Ulma, para que, como os servos de Deus, também
possam seguir o caminho do amor, baseando o seu caminho na fé e na presença
real de Cristo em suas vidas.
***
Na audiência
geral de 28 de novembro de 2018, ao saudar os peregrinos polacos, o Papa
recordou que foi aberta, no dia anterior, uma mostra, na Pontifícia
Universidade Urbaniana, dedicada à família Ulma, exterminada pelos nazistas
alemães (martírio silencioso), na II Guerra Mundial, por terem escondido e
ajudado os Judeus: “Esta
numerosa família de Servos de Deus, que aguarda a beatificação – disse
Francisco – deve ser para todos nós um exemplo de fidelidade a Deus e aos Seus
mandamentos, de amor ao próximo e de respeito à dignidade humana”.
A história
foi contada ao Papa durante a visita ao campo de extermínio Birkenau, em julho
de 2016. Nas perseguições antissemitas, muitos católicos tentavam ajudar os Judeus,
mas arriscavam a vida. Józef e Wiktoria não duvidaram. Um espião denuncia-os
aos nazistas. Os nazistas capturam os Judeus, matando-os com tiros na nuca.
Józef e Wiktoria são assassinados à porta de casa diante das crianças e de
muitos habitantes de Markowa obrigados a assistir como advertência a todos.
Depois, os nazistas atiram nos seis filhos, com bárbara frieza.
***
Por tudo,
honra aos mártires, semente de cristãos!
2023.09.09 – Louro de Carvalho
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