Mais do que a constituir escândalo o gesto deveria ser
a provocar o debate e a reflexão. É certo que o Batismo é o sacramento-porta para
a entrada na comunidade eclesial e o Código
de Direito Canónico estabelece
que quem não tiver recebido o batismo não pode ser admitido validamente aos
demais sacramentos.
Os sacramentos de iniciação cristã são enunciados por esta ordem: Batismo, Confirmação
e Eucaristia. Porém, é usual ministrar-se a Eucaristia a quem ainda não foi confirmado,
apesar de quem for batizado na adultez dever receber, de imediato, a Confirmação
– o que não é fácil nas comunidades que vivem longe da cidade episcopal, pois o
Bispo é o ministro ordinário desse sacramento, na Igreja Latina. Por outro
lado, não se interioriza que, perdoando o Batismo todos os pecados, o batizado
deve receber, logo a seguir, a comunhão. Todavia, a adultos batizados impõe-se
que passem pelo sacramento da Reconciliação, se estiverem em pecado mortal.
Além disso, os apóstolos, comensais da Última Ceia judaica e a Primeira Santa
Ceia cristã, não tinham recebido o Batismo que nós recebemos e a maturidade discipular
deles foi como se viu: Judas traiu o Mestre, Judas negou-O, os outros fugiram,
com exceção de João. Se a Eucaristia fosse prémio pelo mérito, teríamos o
absurdo. No entanto, a Eucaristia foi instituída perante eles e eles comungaram.
***
Dom Geremias Steinmetz, arcebispo metropolitano de Londrina (Brasil), deu a
comunhão ao xeque Ahmad Saleh Mahairi, fundador da mesquita da cidade, na missa
de exéquias do cardeal Geraldo Majella Agnello, arcebispo emérito de São Salvador,
que faleceu a 26 de agosto. O vídeo do momento da comunhão foi partilhado nas
redes sociais e vem suscitando inúmeras dúvidas e críticas, pelo que o prelado
sentiu a necessidade de emitir uma nota, em que cita o Papa Francisco, para
recordar que “ninguém conquistou um lugar para a última ceia” e que é o próprio
Jesus quem atrai todos os que vão à celebração eucarística.
O arcebispo de Londrina assinalou que “o xeque Mahairi conhecia Dom Geraldo
Majella desde a década de 1980, quando estava no funeral do cardeal Agnelo como
amigo pesaroso pelo sepultamento de outro amigo, e frisou que este “é um homem
conhecido em vários âmbitos da sociedade e mantém respeitosa relação com a
Igreja Católica”. Foi como amigo que “participou na celebração eucarística” e,
colocando-se na fila da comunhão, “recebeu o corpo de Cristo”.
Como as imagens do vídeo que circula nas redes sociais, mostram o xeque a
receber a hóstia consagrada, mas não a consumi-la, Steinmetz fez questão de
esclarecer o caso: lamentando o ocorrido, pois o seu intuito não foi desrespeitar
a Igreja Católica, o xeque Mahairi disse ao vigário geral que recebeu Jesus,
foi até ao banco, sentou-se e consumiu a Eucaristia. Segundo ele, Dom Albano, ex-arcebispo
de Londrina, falecido em 2017, havia explicado, há muitos anos, que a
Eucaristia é o corpo de Jesus, considerado um profeta para o Islão.
Depois, Dom Geremias Steinmetz recordou “o que o Papa Francisco nos ensina
no seu último documento sobre a Liturgia, Desiderio Desideravi,
de 2022”, destacando: “Ninguém havia conquistado um lugar para a última Ceia.
Foram, antes, os discípulos convidados, atraídos, pelo desejo ardente do
próprio Jesus de comer aquela Páscoa com eles, cujo cordeiro é Ele próprio”.
Assim, “antes da nossa resposta ao convite – muito antes – está o seu desejo
por nós: até podemos não ter consciência disso, mas, de cada vez que vamos à
Missa, a razão primeira é porque somos atraídos pelo seu desejo de nós”.
Assinalando que a Eucaristia que se erige como verdadeiro Corpo e Sangue de
Jesus, o Senhor, é comungada pelo povo reunido em torno do altar, como sinal de
caridade, do amor irrepetível de Deus que se manifesta na Cruz de Jesus, o
arcebispo conclui que ela “ensina o exercício nobre da caridade, alimenta a
mansidão, conduz-nos à fraternidade e ao respeito por todos” e é, para todos,
fonte de graça e de luz que ilumina os caminhos da vida”.
E, voltando a citar o Papa, exorta: “Abandonemos as polémicas para
escutarmos, juntos, o que o Espírito diz à Igreja, conservemos a comunhão,
continuemos a maravilhar-nos pela beleza da Liturgia. Foi-nos dada a Páscoa,
deixemo-nos guardar pelo desejo que o Senhor continua a ter de a poder comer connosco.
Sob o olhar de Maria, Mãe da Igreja.” (Desiderio Desideravi,
n.º 65)
***
Como se
disse, o arcebispo de Londrina, em nota sobre a ocorrência, pronunciou-se sobre
o facto que deve ser visto no contexto do luto pela morte do cardeal Geraldo
Majella Agnelo, arcebispo emérito de São Salvador e primaz do Brasil,
ex-arcebispo de Londrina, reconhecendo que o próprio arcebispo ministrara a
comunhão ao Sheiki Jeque Ahmad Saleh Mahairi.
De facto, foi
uma cerimónia, com muita unção espiritual e comunitária, da Igreja Católica
Apostólica Romana, “que celebra, não a morte, mas a fé na vida eterna através
do Cristo vivo e ressuscitado”. O funeral de Dom Geraldo, homem entre os mais
importantes da Igreja do Brasil e do Mundo, mobilizou mais de 24 horas de
orações ininterruptas na Catedral Metropolitana de Londrina, com a presença de
padres de todos os decanatos da arquidiocese, que abrange 16 municípios e cerca
de 20 bispos (sendo três cardeais), padres e religiosos de todo país.
Além de respeitada
autoridade religiosa, o arcebispo emérito era amigo e ente querido de muitos,
que se fizeram presentes nas celebrações, sobretudo na última Santa Missa antes
do sepultamento, às 10 horas, para lhe prestarem homenagem. São pessoas de
diversas confissões religiosas, de entre elas, autoridades civis e religiosas,
como o Sheiki Jeque Ahmad Saleh Mahairi, da Mesquita Rei Faiçal.
Ora, Sheiki
Mahairi conhecia Dom Geraldo Majella desde a década de 1980 e estava no funeral
do Cardeal Agnelo como amigo, pesaroso pelo sepultamento de outro amigo. O
Sheiki é conhecido em vários âmbitos da sociedade e mantém respeitosa relação
com a Igreja Católica. Foi também amigo de Dom Albano Cavallin, outro arcebispo
de Londrina, com quem mantinha relação próxima. Como amigo, participou na celebração
eucarística e, pondo-se na fila da comunhão, recebeu o corpo de Cristo.
Diante da
repercussão das imagens, que mostram Sheiki Mahairi a receber a Eucaristia, mas
não o mostram a consumir, o arcebispo pediu padre Rafael Solano, vigário geral
da arquidiocese, que fosse conversar com o Sheiki Mahairi a esclarecer a
situação. Lamentando o ocorrido, pois não era seu intuito desrespeitar a Igreja
Católica, o interpelado informou que recebeu Jesus, foi até ao banco, sentou-se
e consumiu a Eucaristia, pois, segundo ele, Dom Albano explicara, há muitos
anos, que a Eucaristia é o corpo de Jesus, profeta para o Islão.
Ora, como
lembra o arcebispo, a Igreja olha com estima os muçulmanos, que adoram o Deus
Único, vivo e subsistente, misericordioso e omnipotente, criador do céu e da
terra, que falou aos homens e a cujos decretos procuram submeter-se de coração,
como a Deus se submeteu Abraão, que a fé islâmica evoca de bom grado. Embora
sem O reconhecerem como Deus, veneram Jesus como profeta e honram Maria, sua
mãe virginal, a quem, por vezes, invocam devotamente. Esperam o dia do juízo,
em que Deus retribuirá a todos os homens, uma vez ressuscitados. Têm em apreço
a vida moral e prestam culto a Deus, sobretudo com a oração, com a esmola e com
o jejum (cf Declaração Nostra aetate,
n.º 3)
Por fim, o
prelado metropolita considerou o que o Papa Francisco nos ensina no seu último
documento sobre a Liturgia, Desiderio
Desideravi, de 2022. Ninguém havia conquistado um lugar para a última Ceia.
Foram os convidados atraídos pelo desejo ardente do próprio Jesus de comer
aquela Páscoa com eles, sendo Ele próprio o cordeiro.
Muito antes
da nossa resposta ao convite, está o seu desejo por nós, mesmo que disso não tenhamos
consciência. Cada vez que participamos na Missa, a grande razão é porque somos
atraídos pela sua sede de nós. E a resposta possível, a ascese mais exigente é a
de nos rendermos ao seu amor, de nos deixarmos atrair por Ele. Na verdade, as
nossas comunhões no Corpo e Sangue de Cristo foram desejadas por Ele na última
Ceia. Toda a criação é manifestação do amor de Deus. E desde que esse amor se
manifestou na plenitude da Cruz, “toda a criação é atraída por Ele. É toda a
criação que é assumida para ser posta ao serviço do encontro com o Verbo
encarnado, crucificado, morto, ressuscitado, que subiu ao Pai.” (cf n.º 42)
A Eucaristia
é verdadeiro Corpo e Sangue de Jesus, comungado pelo povo reunido em volta do altar,
como sinal de caridade ou amor irrepetível de Deus que se manifesta na Cruz de
Jesus. Assim, é imperioso que abandonemos as polémicas para escutarmos, juntos,
o que o Espírito diz à Igreja, conservando a comunhão e maravilhando-nos pela
beleza da Liturgia. Porque nos foi dada a Páscoa, é forçoso que nos deixemos possuir
pelo desejo que o Senhor tem de a poder comer connosco. (cf n.º 65). A
Celebração Eucarística ensina-nos o exercício da caridade, alimenta-nos a
mansidão e conduz-nos à fraternidade e ao respeito por todos. Seja, pois, a
Eucaristia, para todos, mistério do amor, fonte de graça e de luz que ilumina
os caminhos da vida.
***
O cânone 912,
do Código de Direito Canónico estabelece que “qualquer batizado, que não esteja
proibido pelo direito, pode e deve ser admitido à sagrada comunhão”. O que tem
lógica, em termos normais, mas é pena que as condicionantes não se firmem na fé
e na graça, mas no direito. Na verdade, enquanto o direito é bastante
limitativo, a fé e a graça primam pela superabundância, mercê da imensa
caridade divina e da inefável Misericórdia de Deus.
É de advertir,
no entanto, que o caso vertente é episódico. O arcebispo não convidou o líder
muçulmano para a comunhão. O que sucedeu foi que este se colocou na fila. E não
é decente que o ministro da comunhão censure, publicamente, alguém que, presumivelmente,
de boa-fé ou por ignorância, se aproxime da mesa da comunhão. São lamentáveis os
casos abundantes de ministros da comunhão que a negaram aparatosamente a
potenciais comungantes, às vezes, por motivos bem mesquinhos. Até havia uma indicação
segundo a qual o cristão que, inadvertidamente, se pusesse na fila, quando a
consciência o acusava de pecado grave não confessado, poderia avançar, pois
ninguém tem a obrigação de se autoinfamar.
Não obstante,
o caso em apreço deveria levar-nos a refletir sobre a ministração da comunhão a
crentes não católicos. Concedo que não católicos não presidam à Eucaristia
católica e que ministros católicos não presidam a celebrações equivalentes de outras
confissões cristãs. Porém, se participam em celebrações católicas, não vejo por
que não possam ser admitidos à comunhão. Com efeito, a celebração eucarística não
é um congresso partidário, para o qual são convidados adversários, para verem o
que pensamos e como procedemos, ficando com a liberdade política de nos
criticarem. Se convidados, são recebidos como irmãos e como amigos, não como
estranhos.
Se quiséssemos
levar as coisas ao máximo rigor, teríamos de pensar em excluir da Liturgia Eucarística
(a segunda parte da Missa) todo os que não comungassem. E à Liturgia da Palavra
(a primeira parte) só admitiríamos, além desses, os catecúmenos e os penitentes…
Queremos agarrar-nos
a um tempo histórico ultrapassado, que a exiguidade numérica dos cristãos,
ameaçada pelas perseguições, justificou (procedimento similar ainda hoje existente em alguns lugares de perseguição iminente)? Ou estamos abertos a dar testemunho da vida
da fé numa sociedade plural, abrindo as portas da Igreja e os tesouros da
salvação aos demais, porque a Igreja é para todos?
2023.09.11 – Louro de Carvalho
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