O futuro
cardeal Víctor Manuel Fernández, o novo prefeito do Dicastério para a Doutrina
da Fé, principal órgão doutrinário da Santa Sé, exprimiu a sua abertura aos
debates teológicos, porque ajudam a aprofundar a compreensão que a Igreja tem
do Evangelho.
Na verdade,
como o hierarca argentino, de 61 anos, referiu, em entrevista exclusiva, por
e-mail, a 8 de setembro, a Edward Pentin, do jornal National Catholic
Register, do grupo de comunicação católico EWTN (Eternal Word Television Network, o maior canal de televisão
católico do Mundo, fundado pela Madre Angélica, em 1981), “a verdadeira doutrina só pode ser luz, guia para
os nossos passos, um caminho seguro e uma alegria para o coração”, pois, “é
claro que mesmo a Igreja ainda não compreende plenamente toda a riqueza do
Evangelho”.
Considerou
que “a doutrina não muda, o Evangelho será sempre o mesmo, a Revelação já está
encerrada”, mas, indubitavelmente, “a Igreja sempre será pequena, diante de tal
abismo de verdade e de beleza, e precisará, sempre, de continuar a crescer na
sua compreensão”.
O teólogo
argentino criticou tanto os bispos “progressistas” como os “tradicionalistas”
que creem ter um “dom especial do Espírito Santo para julgar a doutrina do
Santo Padre”, alertando que estão num caminho para a “heresia” e o “cisma”. Com
efeito, “os hereges sempre acham que sabem qual é a verdadeira doutrina da
Igreja”.
D. Víctor
Fernández, confidente próximo e suposto ghost writer do papa
Francisco, que foi arcebispo de La Plata, na Argentina, desde 2018, manifestou
a sua disposição para considerar as bênçãos da Igreja para as uniões entre
pessoas do mesmo sexo, desde que não causem “confusão”. Todavia, na entrevista
com Pentin, confessa-se incomodado com as implicações mediáticas de os seus
pontos de vista serem considerados alinhados com o Caminho Sinodal da Igreja na
Alemanha, que pediu mudanças dramáticas nos ensinamentos da Igreja sobre a
moralidade sexual e sobre outros temas.
O cardeal
eleito disse que a Igreja na Alemanha “tem sérios problemas e, evidentemente,
tem que pensar numa nova evangelização”, mas, como conhece “pouco” sobre ela,
em vez disso, falou da sua própria “receita para enfrentar a indiferença
religiosa” da sociedade na sua forma de evangelizar como padre e como bispo na
Argentina.
Sobre essa
“receita”, menciona o seu livro mais famoso Os cinco Minutos do Espírito
Santo, com uma meditação, para cada dia, sobre o Espírito Santo e que já
vendeu 150 mil exemplares.
Por outro
lado, uma vez que foi pároco e bispo diocesano, desafia a que se pergunte aos
fiéis da sua paróquia o que fez quando era pároco. E o que se verá são: adorações
eucarísticas, cursos sobre o catecismo, cursos bíblicos, missões pelas casas
com a Virgem e com uma oração para abençoar o lar; tinha dez grupos de oração e
130 jovens. Como bispo diocesano, se se perguntar às pessoas o que lhes dizia
nas homilias na catedral e nas visitas às paróquias, elas saberão responder:
sobre Cristo, sobre a oração, sobre o Espírito Santo, sobre Maria, sobre a
santificação. E, ainda no ano passado, propôs a toda a arquidiocese de La
Plata, “que nos concentrássemos em crescer, juntos, em direção à santidade”.
***
“Como o novo
prefeito do dicastério para a Doutrina da Fé, confio-te uma tarefa que
considero muito valiosa”, escreveu o Papa, em carta a D. Víctor Fernández,
publicada com o anúncio da sua nomeação como sucessor do cardeal Luis Ladaria
Ferrer, jesuíta de 79 anos, que era o chefe do Dicastério para a Doutrina da
Fé, desde 2017, e cujo perfil intelectual, teológico e eclesial D. Fernández enaltece.
Francisco
disse que o dicastério promoveu, por vezes, a perseguição de “erros doutrinais”
em vez de “promover o conhecimento teológico”. “O que espero de ti é,
certamente, algo muito diferente”, contrapunha o Pontífice, desta vez. “Peço-te,
como prefeito, que dediques o teu empenho pessoal, de forma mais direta, ao
objetivo principal do Dicastério que é guardar a fé”.
O arcebispo D.
Fernández tocou em algo semelhante ao falar sobre o seu novo papel na
entrevista com Pentin. “Acho que este Dicastério pode ser um espaço que pode
acolher estes debates e enquadrá-los na doutrina segura da Igreja, evitando,
assim, alguns debates mediáticos mais violentos, confusos e até escandalosos
para os fiéis”, especificou.
Porém, frisou
coisas concretas sobre os bispos que julgam a “doutrina do Santo Padre”. O Papa
não só tem o dever de guardar e preservar o depósito “estático” da fé, mas
também um segundo carisma único, concedido apenas a Pedro e aos seus
sucessores, que é “um dom presente e ativo”, o de “confirmar os irmãos na fé”. “Eu
não tenho esse carisma, […], nem o cardeal [Raymond] Burke. Hoje só o Papa
Francisco o tem”, disse, em aparente referência a um prefácio que Burke
escreveu para um livro de crítica ao Sínodo sobre a Sinodalidade, do próximo
mês de outubro.
Ora, se disserem
que alguns bispos têm um dom especial do Espírito Santo para julgar a doutrina
do Santo Padre, entraremos num círculo vicioso (onde qualquer um pode pretender
ter a verdadeira doutrina) e, além disso, isso seria uma heresia e um cisma. Os
hereges acham, sempre, que sabem qual é a verdadeira doutrina da Igreja. E,
hoje, não só alguns progressistas caem neste erro, mas também, paradoxalmente,
alguns setores tradicionalistas.
***
O arcebispo
Victor Manuel Fernández respondeu às críticas aos comentários recentes que fez
ao National Catholic Register,
em que apelou aos bispos a não julgarem a “doutrina do Santo Padre”, dizendo
que estava, simplesmente, a referir-se à “assistência especial” do Senhor aos Papas
para confirmarem os irmãos na fé.
Na entrevista de
8 de setembro, o prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé respondeu à
pergunta sobre o que o Papa quis dizer ao vincar a importância de aceitar o
“magistério recente”.
O arcebispo disse
que os papas têm dois carismas: salvaguardar o “depósito de fé” e um “dom vivo
e ativo” que “opera” apenas na pessoa do Santo Padre e de mais ninguém.
Os seus
comentários levaram alguns a interrogar-se se estava a sugerir que o Papa
Francisco tinha uma doutrina própria, independente do ensinamento da Igreja,
que não deveria ser julgada ou criticada. Tal novidade não estaria de
acordo com o ensinamento dogmático da Igreja, que sempre ensinou que o Papa e
os bispos em comunhão com ele são os guardiães do depósito de fé recebido do
Senhor e transmitido pelos apóstolos.
Num breve
esclarecimento enviado ao National Catholic Register, a 13 de setembro, o cardeal eleito disse que, seguindo a
argumentação em torno da asserção de que o Papa tem dois carismas, tal frase se
entenderá do modo seguinte: “Somente a Pedro Jesus Cristo prometeu assistência
especial para ‘confirmar os irmãos na fé”. Portanto, parece óbvio que
ninguém pode dizer – direta ou indiretamente – que Francisco não tem esta
assistência e que outros bispos ou padres, supostamente mais ortodoxos, a
têm. Ninguém pode atribuir a si mesmo esta função e este carisma que só
são próprios do sucessor de Pedro. Isto é bastante óbvio, para um
católico, mas certamente não, para um protestante.”
O arcebispo deu
uma explicação um pouco mais completa sobre o significado da expressão
“magistério recente”, em nova entrevista publicada, a 14 de setembro, pela La
Civiltà Cattolica, na qual enfatizou, novamente, o segundo carisma que
mencionou na entrevista de 8 de setembro. Referindo-se ao comentário do Papa
sobre o “magistério recente”, feito na carta que lhe dirigiu a marcar a sua
nomeação como prefeito, no início de julho, D. Fernández disse que é
“significativo” que o Papa “também mencione o magistério recente, além de se
referir ao ensinamento perene”. “Este é um esclarecimento importante”, afirmou,
“porque é, precisamente, o magistério recente que dialoga com as circunstâncias
atuais do Mundo e da Igreja, com a sua cultura e [com] os seus desafios”. O
magistério não é mero “depósito”; é também dom vivo que atua através de
Francisco. “Se o magistério também é capaz de nos iluminar na nossa
peregrinação, neste momento da história”, acrescentou, “devemos deixar-nos
guiar pelas suas intervenções recentes e atuais, e não há dúvida de que isso
equivale a continuar a beber daquele poço sem fundo que é a Revelação, sempre
presente e sempre relevante.”
Em comentário ao InfoVaticana,
a 12 de setembro, o cardeal Gerhard Müller enfatizou que a autoridade papal não
se baseia no diálogo e no envolvimento com o Mundo, mas num vínculo estreito
com o ensinamento estabelecido pela Igreja, transmitido pelos apóstolos. “A
autoridade formal do Papa não pode ser separada da ligação fundamental com a
Sagrada Escritura, a tradição apostólica e as decisões dogmáticas do magistério
que o precedeu”, disse o antigo prefeito do Dicastério para a Doutrina da
Fé. “Caso contrário, como Lutero não entendeu o papado, colocar-se-ia no
lugar de Deus, o único autor da verdade revelada, em vez de simplesmente
testemunhar fielmente, pela autoridade de Cristo, a fé revelada, de uma maneira
integral e não adulterada, e [de a] apresentar autenticamente à Igreja”.
***
Edward Pentin começou a fazer reportagens sobre o Papa e sobre
o Vaticano, na Rádio Vaticano, antes
de se tornar correspondente, em Roma, do National Catholic Register da EWTN. Também fez reportagens sobre a Santa Sé e sobre
a Igreja Católica para muitas outras publicações, incluindo Newsweek, Newsmax, Zenit, The Catholic Herald e The Holy Land Review, uma publicação franciscana especializada na
Igreja e no Oriente Médio. E é o autor de The Next Pope: The Leading Cardinal Candidates (O próximo papa: os principais candidatos a cardeal: Sophia
Institute Press, 2020) e de The Rigging
of a Vatican Synod? (Uma investigação
sobre a suposta manipulação do Sínodo Extraordinário sobre a Família: Inácio
Press, 2015). É possível segui-lo no Twitter em @edwardpentin.
***
Enfim, não há dúvida de que o novo prefeito do Dicastério
para a Doutrina da Fé, acusado pelos seus detratores de contemporizar demasiado
com a mundanidade, é um homem de piedade forte, que entende bem o binómio
tradição-inovação e que pode dar um novo rosto ao dicastério a que preside. O
Evangelho é o mesmo e o núcleo essencial da doutrina é o mesmo. Porém, é
necessária uma nova releitura para um diálogo com uma envolvente nova e que
apresenta novas realidades, novos problemas, novas potencialidades, novos
sinais de Deus.
O Papa não está a inventar doutrina, mas a lembrar pontos supinamente
esquecidos da doutrina, do Evangelho. A sua autoridade também decorre da capacidade
de apresentar a doutrina em diálogo com o Mundo e com as culturas. Caso contrário,
apresentaria a doutrina como valiosa peça de museu, mas de discutível utilidade
para a fé.
E, se é legítimo e útil investigar, escutar criticamente,
discernir e expor com frontalidade o que se vai descobrindo, não é lícito que
pretenda cada um sobrepor-se ao magistério recente do Papa e dos bispos em união
com ele. A autossuficiência pode resvalar para a heresia e para o cisma. Não há
verdadeira Teologia sem investigação aprofundante e alargada, estudo, escuta do
Espírito, conhecimento e comunicação, mas também não há verdadeira Teologia sem
comunhão eclesial, sem pessoas, sem povo, sem pastores.
A Igreja tem de, na sua tarefa constante de reforma, tentar
compreender, cada vez mais e melhor, o Evangelho e apresentá-lo com mais clareza
e entusiasmo, pela palavra e pelo testemunho.
2023.09.14 –
Louro de Carvalho
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