É um tema recorrente na visão cristã do Papa
Francisco, tal como o do caminho.
Também a liturgia do 23.º domingo do Tempo Comum no
Ano A insta à reflexão sobre a nossa responsabilidade face aos irmãos que nos
rodeiam. Na verdade, ninguém pode ficar indiferente ante o que ameaça a vida e
a felicidade do irmão, pois todos somos responsáveis uns pelos outros, não nos
sendo lícito barafustar como Caim: “Acaso sou o guarda do meu irmão?” (Gn 4,9)
***
Na primeira leitura (Ez 33,7-9) temos o profeta como sentinela colocada por Deus a
vigiar a cidade dos homens. Atento ao desígnio de Deus e à realidade do Mundo,
o profeta percebe o que está a subverter o plano de Deus, impedindo a
felicidade dos homens, pelo que alerta a comunidade para os perigos que a
ameaçam.
Ezequiel é o profeta da esperança. Desterrado na
Babilónia desde 597 a.C. (no reinado de Joaquin, quando Nabucodonosor conquista
Jerusalém, pela primeira vez, e deporta para a Babilónia a classe dirigente do
país), profetiza entre os exilados.
A primeira fase do seu ministério decorre de 593 a.C.
(data do chamamento) a 586 a.C. (data em que Jerusalém é arrasada pelas tropas de
Nabucodonosor e é deportada a segunda leva de exilados. O profeta procura
destruir falsas esperanças e anuncia que, ao invés do que se pensa, o cativeiro
está para durar. Os exilados regressarão a Jerusalém e os que lá ficaram (que
continuam a multiplicar os pecados) farão companhia aos já desterrados na
Babilónia.
Na segunda fase do seu ministério, desde 586 a.C. até
cerca de 570 a.C., Ezequiel procura alimentar a esperança dos exilados (privados
de templo, de sacerdócio e de culto) e transmitir ao Povo a certeza de que o
Deus salvador e libertador – que Israel descobriu na sua História – não os
abandonou nem os esqueceu. Pelo conteúdo, não é possível dizer se o trecho que nos
é proposto pertence à primeira ou à segunda fase da atividade do profeta. Não
obstante, define – com recurso à imagem da sentinela – a missão profética: o
profeta é como a sentinela atenta, que escuta os apelos de Deus e que avisa o
Povo dos perigos que lhe aparecem no horizonte.
Esta imagem aplicada ao profeta não é nova. Já Habacuc
(cf Hab 2,1), Isaías (cf Is 21,6), Jeremias (cf Jr 6,17) e Oseias (cf Os 5,8) recorrem a esta figura para
definir a missão profética. Com efeito, a sentinela é o vigilante atento que,
enquanto os outros descansam, perscruta o horizonte e procura detetar o perigo
que ameaça a cidade, os concidadãos e os camaradas de armas. E, ao pressentir o
perigo, tem de dar o alarme. Assim, a comunidade prepara-se para enfrentar o
desafio. Ora, se a sentinela não vigiar ou se não der o alarme, será
responsável pela catástrofe que atingiu o Povo.
Assim, o profeta é o guarda que Javé pôs na comunidade,
para perscrutar o horizonte da História e da vida do Povo e para dar o alarme, quando
a comunidade corre riscos. E, para o profeta ser a sentinela eficiente, tem de
ser homem de Deus e atento ao Mundo que o rodeia.
O profeta é, acima de tudo, o homem que o Senhor
chamou ao seu serviço, pelo que vive em íntima comunhão com Deus; e, nessa
comunhão, descobre a vontade de Deus e aprende a discernir o desígnio de Deus para
os homens e para o Mundo. Simultaneamente, é um homem do seu tempo, imerso na
realidade e nos desafios da sociedade em que se integra; conhece o mundo; e é
capaz de ler, em perspetiva crítica, os problemas, os dramas e as infidelidades
dos contemporâneos.
Ao contemplar o plano de Deus e a vida do Mundo,
percebe o desfasamento entre duas realidades: a realidade da vida dos homens é
muito diferente da realidade que Deus projeta.
Perante isto, o profeta não sacode a água da capa a
dizer que não é nada com ele. Não se fecha na comodidade e na ignorância das
infidelidades dos homens ao projeto de Deus. Não se demite das suas
responsabilidades, antes aponta o dedo às escolhas erradas dos irmãos. Na
verdade, o profeta recebeu o mandato de Deus para alertar a comunidade para os
perigos que a ameaçam. Portanto, custe o que custar, tem de dizer a todos –
ainda que os concidadãos não o compreendam ou recusem escutá-lo – que trilhar
os errados caminhos desemboca no sofrimento e na morte.
O profeta-sentinela é sinal vivo do amor de Deus pelo
seu Povo. É Deus que o chama e o envia em missão, que lhe dá a coragem de testemunhar
e que o apoia em tempo de crise, de desilusão e de solidão. O profeta-sentinela
é a prova de que Deus continua a oferecer ao Povo rotas de salvação e de vida.
E demonstra, indubitavelmente, que Deus não quer a morte do pecador, mas que
ele se converta e viva.
E o mínimo da responsabilidade que nos cabe é avisar o
ímpio sobre o mau caminho que percorre, para que se converta. Se ele persistir
no erro, morrerá nos seus pecados, mas quem o adverte salvar-se-á. Porém, se
não advertirmos o ímpio e ele se perder, ser-nos-ão pedidas contas pela sua
perda e perder-nos-emos como ele.
***
O Evangelho (Mt
18,15-20) deixa clara a nossa responsabilidade em ajudar o irmão a tomar consciência
dos seus erros e traça-nos o caminho direito para essa promoção fraterna.
É dever que resulta do mandamento do amor. E Jesus
ensina que o caminho correto para atingir esse objetivo não passa pela
humilhação ou pela condenação de quem falhou, mas pelo diálogo fraterno, leal e
amigo, que revela ao irmão que a nossa intervenção resulta do amor.
O capítulo 18 do Evangelho de Mateus é conhecido como
o “discurso eclesial”. Apresenta uma catequese de Jesus sobre a experiência de
caminhada em comunidade. Mateus ampliou algumas instruções apresentadas por Marcos
sobre a vida comunitária e compôs, com esses materiais, um dos cinco grandes
discursos do seu Evangelho. Os destinatários desta instrução são os discípulos
e, através deles, a comunidade a que Mateus dirige o seu Evangelho.
Esta é uma comunidade normal, isto é, é uma comunidade
parecida com qualquer uma das nossas. Há tensões entre os diversos grupos e
problemas de convivência; há quem, julgando-se superior aos outros, queira
ocupar os primeiros lugares; há quem tome atitudes prepotentes, que servem de escândalo
aos pobres e aos débeis; há quem magoe e ofenda outros membros da comunidade;
há quem tenha dificuldade em perdoar as falhas e os erros dos outros. Para
responder a estes problemas, Mateus redigiu uma exortação que insta à
simplicidade e à humildade, ao acolhimento dos pequenos, dos pobres e dos excluídos,
ao perdão e ao amor. Desenha o modelo de comunidade para todos os tempos: a
comunidade de Jesus tem de ser a família de irmãos, a viver em harmonia, dando
atenção aos pequenos e aos débeis, escutando os apelos do Pai e vivendo no
amor.
O fragmento do “discurso eclesial” em apreço refere-se,
em especial, ao procedimento para com o irmão que errou ou que provocou
conflito na comunidade.
Em situações destas, os irmãos não devem condenar, sem
mais, e marginalizar o infrator. Neste quadro, uma decisão radical é quase
sempre não cristã. Deve-se tratar o problema com bom senso, com maturidade, com
equilíbrio e, sobretudo, com amor. Por isso, o evangelista traça um itinerário
com várias etapas, avançando-se para a seguinte, apenas se a anterior falhar.
Antes de mais, surge o encontro com o irmão, em
privado, para se falar com ele, cara a cara, sobre o problema. O caminho correto
não passa por mexericar (isso é uma peste, diz o Papa) ou dizer mal “por trás”,
por publicitar a falta, por criticar publicamente (ainda que não se invente) e,
muito menos, por espalhar boatos, por caluniar ou difamar, mas pelo confronto
pessoal, leal, honesto, sereno, compreensivo e tolerante com o irmão em causa.
Se tal encontro não resultar, recorre-se a nova
tentativa, que implica o recurso a outros irmãos (“toma contigo uma ou duas pessoas”)
que, com serenidade, sensibilidade e bom senso, sejam capazes de fazer o infrator
perceber o sem sentido do seu comportamento.
Se também esta tentativa falhar, resta o recurso à
comunidade – a Igreja –, que será chamada a confrontar o infrator, a
recordar-lhe as exigências do caminho cristão e a pedir-lhe a emenda. E, se o infrator
se obstinar no seu comportamento errado, a comunidade terá de reconhecer, com
dor, a situação em que o irmão se colocou a si próprio. Mateus preconiza que,
nesse caso, o faltoso será considerado como “um pagão ou um cobrador de
impostos”.
Porém, isto não significa que os pagãos e os
cobradores de impostos não têm lugar na comunidade de Mateus. Pelo contrário, a
Igreja continua a ser para “todos, todos, todos”, como diz o Papa.
E não me satisfaz a explicação nostálgica de que, ao
usar este exemplo, não se quer atingir a pessoa, mas a situação. É verdade que
se trata de imagens judaicas para falar de pessoas instaladas em situações de
erro, que se obstinam no seu mau proceder e que recusam todas as oportunidades
de integrar a comunidade da salvação. Todavia, é preciso ter em conta que o
Mestre antecipou que os publicanos, os pagãos e as meretrizes arrebatarão o
Reino dos Céus.
Sendo assim, embora a Igreja tenha o direito de punir e
até de excluir (Maldita abundância de excomunhões e de interditos!), cujo
exercício deve ser residual, quando não houver outra forma de agir, a recomendação
de ter o infrator como pagão ou como publicano merece outra atenção.
Perante a obstinação do infrator, que não deixa de ser
nosso irmão, ele deve ser considerado um pagão ou publicano, ou seja, devemos
redobrar de atenção e de esforço ou de mudança de tática para o recuperarmos.
Não é lícita a sua marginalização, nem a nossa desistência que não constituem remédio.
Em todo o caso, Mateus não sugere que a Igreja possa excluir da comunhão qualquer
irmão que errou, pois a Igreja é uma realidade divina e humana, onde coexistem
a santidade e o pecado. O que se sugere é que a Igreja tem de tomar posição
quando algum dos membros recusa, obstinadamente, o Reino e age, frontalmente,
contra os ditames de Cristo. Porém, não é ela que exclui o prevaricador: é ele que,
pelas suas opções, se põe à margem, onde é bom que não permaneça.
Depois desta instrução sobre a promoção fraterna,
Mateus acrescenta três “ditos” de Jesus.
O primeiro refere o poder, conferido à comunidade, de ligar
e de desligar. Entre os judeus, a expressão designava o poder para interpretar
a Lei com autoridade, para declarar o que era ou não permitido e para excluir
ou reintroduzir alguém no Povo de Deus; aqui, significa que a comunidade (antes
– cf Mt 16,19 – Jesus dissera estas palavras
a Pedro, que representava a totalidade da comunidade dos discípulos) tem o
poder para interpretar as palavras de Jesus, para acolher os que aceitam as
suas propostas e para excluir os que não estão dispostos a seguir o caminho de
Jesus. O segundo sugere que as decisões graves para comunidade devem ser
tomadas em clima de oração. Assegura aos discípulos, reunidos em oração, que o
Pai os escutará. E o terceiro garante aos discípulos a presença de Jesus na
comunidade. Assim, garante que as tentativas de correção e de reconciliação, na
comunidade, terão o apoio e a assistência de Jesus. Jesus está, realmente, presente
na assembleia eclesial reunida.
***
Na segunda leitura (Rm 13,8-10), Paulo convida os cristãos de Roma (e de todos os
lugares e tempos) a pôr o mandamento do amor no centro da existência cristã. É
uma dívida que temos para com todos os irmãos e que nunca estará completamente
saldada.
O apóstolo exorta os crentes a construir toda a sua
vida sobre o amor. Cristianismo sem amor é uma mentira. O cristão não pode deixar
de amar os irmãos. Porém, esta exigência nunca estará completamente realizada.
Qualquer dívida pode ser liquidada de uma vez; o amor não. Em cada instante, é
preciso amar e amar sempre mais. O cristão não pode cruzar os braços e dizer
que já ama o suficiente ou que já amou tudo: tem uma eterna dívida de amor (a
única) para com os irmãos. Tem de amar como Ele (Cristo) nos amou e ama:
afetivamente e efetivamente.
O amor está no centro de toda a experiência religiosa.
No mandamento do amor, resume-se toda a Lei e todos os preceitos. Os diversos
mandamentos não passam de especificações da exigência do amor-serviço. A ideia de
que a Lei se resume no amor não é invenção paulina, mas é uma constante na
tradição bíblica (cf Mt 22,34-40),
mas a que o apóstolo dá poderoso vigor.
2023.09.10 – Louro de Carvalho
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