Dois
meses depois de postar uma nota no seu site
a alertar para a indisponibilidade do livro Sexual Misconduct in
Academia (Conduta Sexual Inapropriada na Academia), publicado em
março de 2023, por estar “em revisão”, a editora britânica Routledge assumiu a
decisão de retirar da obra o seu capítulo 12, sob o título “As paredes
falaram quando ninguém se atrevia”, sobre o Centro de Estudos Sociais
(CES) da Universidade de Coimbra (UC).
A retirada
do capítulo que aponta Boaventura de Sousa Santos (BSS) por assédio sexual é
qualificada pelas coordenadoras como a atitude de “ficar do lado de quem quer
silenciá-lo” e apoiar “o abuso sistemático de poder na academia”, pois a
editora não fez qualquer tentativa de
apoiar o livro contra as ameaças legais e, portanto, não defendeu a liberdade
académica, nem o direito dos sobreviventes de assédio sexual de falarem das
suas experiências. A decisão de retirada permanente do capítulo é “uma forma de
apoiar o abuso de poder sistemático na academia”.
Em
declarações ao Diário de Notícias (DN), as coordenadoras da obra, Erin
Pritchard e Delyth Edwards, investigadoras nas universidades de Liverpool e de Leeds, falaram publicamente, a 31 de agosto, pela
primeira vez desde que, em junho, a Routledge a retirou de venda o livro.
Confirmando a
ablação do capítulo que narra acontecimentos alegadamente ocorridos no CES da
UC, referem que tal decisão foi tomada a
31 de agosto, revertendo os direitos autorais do livro para as autoras, por
comunicação através de e-mail, que não menciona o facto, de que, aliás
discordam taxativamente.
Como refere
Fernanda Câncio no DN, em artigo
sobre o tema, contam que receberam, a 5 de junho, um e-mail da Routledge a
informar da receção de carta de um
advogado português, em nome de uma pessoa, não sendo claro, para a
editora, se tal pessoa era cliente do advogado. A 7 de junho, receberam também
um e-mail da Routledge a informar
de uma carta de cease-and-desist de uma pessoa que afirmava
ser um dos assediadores descritos no capítulo. A carta requeria a paragem da publicação, a promoção do capítulo em causa e
a proposta de formas de mitigação do dano causado à reputação, à saúde e ao trabalho
académico do indivíduo, assim como à reputação do centro académico em causa.
Foi então que a editora decidiu suspender temporariamente o livro.
Uma carta
de cease-and-desist é um procedimento legal recorrente no
sistema jurídico anglo-saxónico, pelo qual alguém que se considera lesado avisa
o responsável dessa lesão, pedindo-lhe que cesse a ação em causa, o que
pressupõe que, se o responsável da lesão não agir de forma a remediá-la, se
seguirá processo formal nos tribunais.
As coordenadoras
mencionam uma reunião com a editora, a 16 de agosto, em que foram informadas
da existência de “múltiplos
queixosos”, mas sem mais informação. Foi sugerida a “possível opção de
reverter os direitos do capítulo em questão e de todos os outros capítulos às
autoras”, mas nada foi acordado na reunião.
Quinze dias
depois, Pritchard e Edwards foram confrontadas com a decisão final da
Routledge, em relação à qual requerem uma explicação pública. Todavia, mesmo
instados, nem a Routledge, nem o grupo
editorial que a detém, a Taylor & Francis, assumiram a decisão de retirar o
capítulo ou de “despublicar” o livro, o que foi uma opção em cima da
mesa, apesar de terem apagado dos seus sites
as páginas referentes a ele.
Também nada
disseram desta decisão os principais acusados no capítulo, Boaventura de Sousa
Santos e o antropólogo Bruno Sena Martins. Um e outro tinham garantido ao DN, em julho e em agosto, não terem
tomado qualquer iniciativa legal junto da editora. BSS admitiu ter constituído um advogado, em Portugal, para sua defesa,
mas que este ainda não tinha tomado qualquer ação, por aguardar que a
Comissão Independente nomeada pelo CES da UC para investigar o caso iniciasse
os seus trabalhos, o que sucedeu a 1 de agosto, decorrendo até 30 de setembro o
prazo de receção de queixas/denúncias.
***
É
de recordar que, no capítulo 12 do livro Sexual Misconduct in Academia,
editado no final de março pela Routledge, as autoras – a belga Lieselotte
Viaene, a portuguesa Catarina Laranjeiro e americana Myie Nadia Tom –
descrevem, sem nomear a instituição nem os intervenientes, os casos
alegadamente ocorridos no CES da UC, com
BSS, o “Professor Estrela”, como protagonista, título que, além da descrição,
se tornou num presságio: a editora decidiu, após em junho
suspender o livro para “revisão”, retirar o capítulo 12.
A
notícia, antecedida pelo “apagão”, em junho, da obra no site da Routledge e, desde o início da última semana do mês de
agosto, também no da Taylor & Francis, considerada a mais importante
editora internacional na área das Ciências Sociais, foi conhecida, na manhã do
dia 31, pelas mais de 20 autoras e pelas duas coordenadoras da publicação, Erin
Pritchard e Delyth Edwards.
Pelos
vistos, foi Marta Lança, uma das autoras do manifesto “Todas Sabemos”, de apoio
às autoras do capítulo 12, a identificar o tipo de ação legal em causa, num
post no Facebook, a 21 de agosto no
qual cita como fonte da informação as coordenadoras do livro.
Não
foi, até agora, revelado quem o dito advogado português representa, embora seja
óbvio que os principais interessados na retirada do capítulo são o sociólogo,
fundador do CES e seu diretor emérito BSS, que é nele acusado de assédio sexual
e de “extrativismo intelectual”, e o antropólogo Bruno de Sena Martins (BSM),
acusado de agressão ou abuso sexual, assim como, em menor grau, a
académica designada como “a Sentinela”, Maria Paula Menezes. Porém, apesar de,
em abril, ao serem confrontados com o conteúdo do capítulo, os dois académicos,
suspensos, preventivamente de quaisquer atividades no CES, terem anunciado
processos/recurso aos tribunais contra as autoras do capítulo – BSS
anunciou que iria avançar com “uma queixa-crime por difamação” contra Viaene,
Laranjeiro e Tom, e BSM garantiu ir “procurar justiça nas instâncias
competentes” – ambos asseguraram não serem fonte de qualquer
iniciativa ou ação legal junto da editora.
Se,
na sua primeira entrevista de viva voz, sobre o assunto, BSS foi taxativo na
certificação de que a decisão da Routledge – editora na qual tem várias obras
publicadas, uma das quais, From the Pandemic to Utopia, the Future
Begins Now, já após o rebentar do escândalo da supressão do capítulo ou da
“revisão” do livro, disse ao DN não
conhecer “os detalhes da decisão”, mas reforçava a ideia de que esta está
relacionada com as acusações que lhe são feitas.
O
sociólogo chegou a revelar a opinião da Routledge sobre o capítulo 12: “Eles
próprios estão um pouco perplexos com a qualidade deste capítulo.” Isto,
obviamente, pressupõe a existência de conversa com a editora sobre o capítulo.
Também
Ana Bull, a copresidente do Grupo 1752 (organização de investigação,
consultoria e ativismo, fundada, em 2016, para “acabar com o conduta sexual
inapropriada de funcionários e de professores na educação superior”), autora do
posfácio do livro, disse esperar que a editora fizesse “a coisa certa,
recolocando o livro em circulação muito em breve”, mas não fez, até agora,
qualquer comentário à decisão da editora. Seja como for, já tinha caraterizado a
ação da Routledge/Taylor & Francis como “silenciamento”, silenciamento que
foi, até ao momento, assumido pela maioria das 23 autoras do livro. “Todas
sabemos”, lia-se nas paredes do CES, em 2018, nos graffiti referidos
no título do capítulo 12, os quais, de acordo com as autoras funcionaram como
repto de empoderamento e de consciencialização, face ao que tinham vivido
naquele centro académico – um repto para romper o silêncio.
***
Resta
saber se um livro alegadamente gizado segundo os parâmetros da qualidade e do
interesse público vai ser definitivamente truncado e se os leitores continuarão
a adquiri-lo e a lê-lo. Segundo a boa lógica do consumidor-leitor, livro
truncado deveria ser livro perdido.
Por
outro lado, importa saber se efetivamente a Justiça confirma ou não os factos
de que os dois académicos são indiciados – significando laxismo ou abuso de
poder – ou se as autoras entraram numa de difamação ou de exagero, podendo ter
sido aliciadas, forçadas, ou oportunisticamente coniventes. E é de questionar se
à liberdade de expressão será outorgada a ausência de qualquer limitação ou se
poderá ser amordaçada pela censura de poder ou de interesses particulares.
O
que não vale é a tática do silenciamento editorial ou o dos ofendidos, nem a
inépcia da administração ou da Justiça, pois, não valendo tudo na liberdade de expressão,
esta é uma liberdade pessoal garantida constitucionalmente e cujo exercício é
fundamental em democracia.
Por
fim, importa clarificar, pela verdade, e proceder à sanação do clima das academias.
Não se pode, à partida, condenar ninguém sem provas, nem ignorar que, provavelmente,
“onde há fumo, há fogo”, nem cair em generalizações, que podem ser injustas e
perigosas. É bom que a verdade venha à tona, pois só ela é fonte de libertação,
e que a eficácia e o prestígio das academias não fiquem abalados. A procura
insana, a produção dialética, a receção apetecida e a ampla divulgação do
conhecimento merecem toda a atenção e todo o esforço dos sábios. E que tal a
ideia de criar uma Comissão Independente que faça o apuramento de “vita et
moribus” das nossas academias?!
2023.09.02 – Louro de Carvalho
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