O profeta Jeremias, seduzido por Javé, pôs toda a sua vida ao
serviço de Deus e do seu desígnio. Por isso, enfrentou os poderosos e pôs em
causa a lógica do Mundo, o que lhe acarretou o sofrimento solitário e a
perseguição. É a a experiência de quem acolhe a Palavra de Deus em seu coração
e vive em coerência com os valores de Deus.
O 22.º domingo do Tempo Comum no Ano A leva-nos à
contemplação da vida profética de Jeremias, figura veterotestamentária de
Jesus, cuja opção foi a via da cruz, para que tenhamos a vida em abundância. Nestes
termos, a 1.ª leitura (Jr 20,7-9)
apresenta-nos um trecho da confissão de Jeremias sobre a forma como se ligou a
Deus.
O profeta nasceu em Anatot (a norte de Jerusalém), por volta
de 650 a.C. Ainda novo sentiu-se chamado por Deus ao ministério profético. A sua
atividade, que decorreu, sobretudo, no Reino de Judá, estendeu-se até depois da
destruição de Jerusalém pelos Babilónios (586 a.C.).
Viveu num período de grande instabilidade, de gritantes injustiças
sociais e de infidelidade religiosa. Quer Joaquim (609-597 a.C.) quer Sedecias
(597-586 a.C.) foram reis incapazes de responder às exigências da conjuntura
internacional e de manter uma política de neutralidade em relação às grandes
potências (sobretudo o Egipto e a Babilónia). E Jeremias, convicto de que Judá
estava a ser infiel a Deus, ao deixar de confiar em Javé e ao pôr a esperança nos
povos estrangeiros – criticou duramente os líderes do Povo e anunciou uma
invasão estrangeira, para a castigar os pecados de Judá. Porém, a sua pregação não
foi apreciada pelo Povo e pelos líderes, que, tomando-o como um “profeta da
desgraça”, o isolaram e, sob a acusação de traidor o encarceraram, a ponto de
correr perigo de vida.
Jeremias – homem sensível, cordial e pacífico – é o paradigma
dos profetas que sofreram por causa da missão. Não tendo sido feito para o
confronto, Javé chamou-o para “arrancar e destruir, para exterminar e demolir”
(Jr 1,10), para predizer desgraças e
anunciar destruição e morte, pelo que foi, continuamente, objeto de desprezo e
de irrisão.
Jeremias, verdadeiramente apaixonado pela Palavra de Javé,
sabia que não teria descanso, se não a proclamasse com fidelidade. Todavia, nos
momentos mais negros de solidão, deixou, algumas vezes, que a amargura do
coração lhe subisse à boca e se transbordasse em palavras: dirigia-se a Deus e
censurava-O por causa dos problemas que a missão lhe trazia.
Assim, o Livro de
Jeremias traz, pari passu,
queixas e lamentos do profeta. Alguns desses trechos são conhecidos como
“confissões de Jeremias”, desabafos em que o profeta expõe a Javé, com
sinceridade rebelde, a sua desilusão. O trecho desta dominga faz parte de uma
delas. É uma desconcertante oração num momento dramático de desilusão e de
desânimo, talvez quando, preso pelos ministros de Sedecias e atirado para uma
cisterna, se afundava no lodo.
Esta oração adota a forma de denúncia ou de acusação do
profeta ao seu Deus, formulada através da imagem da “sedução”, como se tratasse
de pré-namoro (o verbo “pth”, aqui utilizado, aparece em Ex 22,15 para falar da
sedução de uma jovem solteira). Assim, Deus insinuou-Se na vida do profeta e
dominou-o, ficando o profeta sem saber como resistir a Deus (o verbo “ykl” foi
utilizado para definir a forma como Deus atuou em relação ao profeta,
“exercendo o poder”). O profeta, embalado pelas promessas desse Deus sedutor, sem
capacidade de resistir aos seus jogos de sedução, entregou-se nas suas mãos e
dedicou toda a vida ao seu serviço. E Deus que o seduziu abandonou-o, deixando-o
entregue aos insultos e às zombarias dos adversários. Por isso, o profeta está dececionado
e, por consequência, diz tencionar não voltar a falar Nele, nem em seu nome.
Porém, o profeta não foi capaz levar até ao fim este
propósito. Com efeito, o amor por Deus e pela sua Palavra está tão vivo no
coração do profeta que é inútil resistir. A Palavra de Deus é um fogo devorador
a consumir o coração do profeta e a não o deixar desistir da missão, escondendo-se
numa vida cómoda e instalada. Portanto, ao profeta resta continuar ao serviço
da Palavra, enfrentando o seu destino, na esperança de, ao longo da caminhada,
reencontrar o amor de Deus que, um dia, o seduziu e a que o profeta não sabe
renunciar.
***
No Evangelho, (Mt
16,21-27) Jesus avisa os discípulos de que o caminho da vida verdadeira não
passa pelo triunfo e êxito humanos, mas pelo amor e pelo dom da vida (até à
morte, se for necessário). Jesus vai percorrer esse caminho; e quem quiser ser
seu discípulo tem de percorrer um caminho semelhante.
O trecho em apreço vem na sequência do proclamado no 21.º
domingo (cf Mt 16,13-20), quando a
comunidade dos discípulos expressava a sua fé em Jesus como o “Messias, Filho
de Deus”. Agora, Jesus explica aos discípulos o sentido autêntico do messianismo
e da filiação divina.
Continuamos, ainda, no âmbito da “instrução sobre o Reino”,
mas inicia-se uma secção onde se privilegia a catequese sobre o destino de cruz
que está no horizonte próximo de Jesus (cf Mt
16,21-17,27), num momento em que as multidões ficaram para trás e os líderes
decidiram rejeitar Jesus. Quem continua a acompanhar Jesus, de forma
indefetível, é o grupo dos discípulos, pois creem que Jesus é o “Messias, Filho
de Deus” e querem partilhar o seu destino de glória e de triunfo. Porém, Jesus
explica-lhes que o seu messianismo não passa por triunfos e êxitos humanos, mas
pela cruz; e avisa-os de que viver como discípulo é seguir a via do dom da
vida.
Mateus escreve para comunidades cristãs do final do século I
(anos 80/90), já esquecidas do fervor inicial e acomodadas num cristianismo
morno. Com a aproximação de tempos difíceis (no horizonte estão as grandes
perseguições do final do século I), é imperioso que os crentes recordem que o
caminho cristão não é um caminho fácil, percorrido entre êxitos e aplausos, mas
um caminho difícil, que exige a entrega diária da vida.
O trecho em referência pode dividir-se em duas partes. Na
primeira (vv. 21-23), Jesus anuncia a
sua paixão; na segunda (vv. 24-28),
apresenta uma instrução sobre o significado e as exigências do discipulado.
A primeira parte começa com o anúncio de Jesus de que o
caminho para a ressurreição passa pelo sofrimento e pela morte na cruz. Com
efeito, após o confronto de Jesus com os líderes judeus e tendo estes
rejeitado, em absoluto, a pregação do Reino, o judaísmo prepara a eliminação
física de Jesus. Jesus tem consciência disso, mas não se demite do desígnio do
Reino e anuncia que pretende continuar a apresentar, até ao fim, o plano do
Pai.
Pedro, em desacordo com este final, opõe-se, decididamente, a
que Jesus caminhe em direção ao destino de cruz, garantindo que não deixará que
tal aconteça. E Jesus aplica-lhe uma reprensão veemente. Chama-lhe Satanás por
zelar, não os interesses de Deus, mas os dos homens.
Nesse sentido, põe-no no seu lugar: manda-o para trás, ou seja,
esclarece que é o discípulo que seguir o Mestre e não é o Mestre a seguir o
discípulo.
Por outro lado, cabe ao discípulo zelar os interesses de
Deus, em que se inclui o “bem” de todos os homens e o bem do homem todo. Porém,
não cabe ao discípulo zelar os “interesses” dos homens (a lógica do Mundo), que
são: a riqueza, o poder, o protagonismo, o prestígio, a fama…
A oposição de Pedro – e dos discípulos, visto que Pedro é o
porta-voz da comunidade – revela que a sua compreensão do mistério de Jesus é
imperfeita e contrária à missão de Jesus. A missão do “Messias, Filho de Deus”
é gloriosa e vencedora, mas, na lógica de Pedro, ou seja, na lógica a lógica do
Mundo, a vitória não pode estar na cruz e no dom da vida.
Jesus dirige-Se a Pedro com dureza, pois é preciso que os
discípulos corrijam a sua perspetiva sobre Jesus e sobre o plano do Pai que Ele
vem concretizar. O plano de Deus não passa por triunfos humanos, nem por esquemas
de poder e de domínio, mas pelo dom da vida e pelo amor até às últimas
consequências (de que a cruz é a expressão mais radical). Ao pedir a Jesus que
não embarque no plano do Pai, Pedro repete as tentações que Jesus experimentou
no início do seu ministério. Por isso, põe na boca de Jesus a resposta de então
ao diabo: “Vade retro, Satana!” As palavras de Pedro – como as do diabo –
pretendem desviar Jesus do cumprimento do plano do Pai; e Jesus não transige
com qualquer sugestão que O impeça de concretizar, com amor e fidelidade, o
desígnio de Deus.
Na segunda parte, Jesus apresenta uma instrução sobre as
atitudes próprias do discípulo. Quem quiser ser discípulo de Jesus, tem de
“renunciar a si mesmo”, “tomar a cruz” e seguir Jesus no seu caminho de amor,
de entrega e de dom da vida.
Renunciar a si mesmo significa abandonar o egoísmo e a autossuficiência,
para fazer da vida um dom a Deus e aos outros. O cristão não pode viver fechado
em si próprio, preocupado só em concretizar os seus sonhos pessoais, os seus
projetos de riqueza, de segurança, de bem-estar, de domínio, de êxito, de
triunfo. Deve, antes, fazer da sua vida um dom generoso a Deus e aos irmãos. Só
assim poderá ser discípulo de Jesus e integrar a comunidade do Reino.
Tomar a cruz de Jesus e segui-Lo (a cruz é a expressão de um
amor total, radical, que se dá até à morte) significa entregar a própria vida
por amor. Tomar a cruz é ser capaz de gastar a vida, total e completamente, por
amor a Deus e para que os irmãos sejam mais felizes.
No final desta instrução, Jesus explica aos discípulos as
razões pelas quais devem abraçar a lógica da cruz. Convida-os a entender que
oferecer a vida por amor não é perdê-la, mas ganhá-la. Quem dá a vida a Deus e
aos irmãos não fracassa, mas ganha a vida verdadeira que Deus oferece a quem
vive de acordo com a sua vontade. Por outro lado, os discípulos são instados a
perceber que a vida deste Mundo não é a vida definitiva. Portanto, não devem
preocupar-se em preservá-la a qualquer custo, mas procurar encontrar, já nesta
terra, essa vida definitiva que passa pelo amor total e pelo dom a Deus e aos
outros. E, além disso, devem pensar no seu encontro final com Deus, em que Deus
lhes dará a recompensa pelas opções que fizeram (a alusão ao momento do juízo
não é rara em Mateus, que recorre a ela para fundamentar as exigências éticas
da vida cristã).
***
A 2.ª leitura (Rm
12,1-2) insta os cristãos a oferecerem toda a sua existência de cada dia a
Deus, o que implica não nos conformarmos com a lógica do Mundo, aprendermos a
discernir os planos de Deus e a viver em consequência. E Paulo garante que esse
é o sacrifício que Deus prefere.
Depois de apresentar a catequese sobre o plano de salvação,
desce a considerações de caráter prático, destinadas a mostrar como deve viver
quem é chamado à salvação.
No trecho em referência, vemos que a bondade e o amor de Deus
(de que Paulo tratou abundantemente nos capítulos anteriores) postulam uma
resposta do homem, que, segundo o apóstolo, consiste em os crentes se oferecerem
a si mesmos, literalmente “os vossos corpos”.
É de advertir que o termo “corpo” não designa, aqui, a
entidade distinta da alma, mas a pessoa na sua totalidade, enquanto ser em
relação. É o homem enquanto ser que se relaciona com Deus, com os outros homens
e com o mundo.
Os cristãos são aqueles que se entregam completamente nas
mãos de Deus e que, em todos os instantes da sua existência, vivem para Deus. Essa
oferta será um “sacrifício vivo, santo e agradável a Deus”. É esse “culto
espiritual” (“culto lógico” ou “culto razoável”) que Deus espera do homem. Com
o adjetivo “espiritual” aplicado ao culto, Paulo marca a diferença entre o
culto formal e exterior, que não compromete o homem e o culto verdadeiro, que
brota do coração e que compromete o homem todo. Portanto, na ótica paulina, os
crentes devem oferecer inteiramente as suas vidas a Deus; e é esse o culto que
Deus espera daqueles sobre os quais derrama a sua misericórdia e a quem oferece
a salvação.
Na ótica paulina, oferecer inteiramente a vida a Deus
significa, antes de mais, não se conformar com “este Mundo” – isto é, manter
uma distância crítica em relação aos seus esquemas e aos valores sobre os quais
se constrói o egoísmo e o pecado em termos pessoais ou estruturais. Significa, depois,
a mudança de coração, de mentalidade e de inteligência, que possibilite ao
homem discernir a vontade de Deus, a fim de percorrer, com fidelidade, os seus
caminhos.
O “culto espiritual” de que Paulo fala é, pois, a entrega a
Deus da totalidade da vida do homem. Na sua relação com Deus, com os outros
homens e com o Mundo, o cristão deve renunciar às vias do egoísmo, da autossuficiência,
da injustiça e do pecado; e deve procurar conhecer o desígnio de Deus,
acolhê-lo no coração e viver em coerência total com as suas exigências.
Paulo exorta: “Não vos conformeis com este Mundo.” Com
efeito, o cristão é alguém que não pactua com um Mundo que se constrói à margem
de Deus ou contra os seus valores. O cristão não pode pactuar com a violência
como meio para resolver os problemas, nem com a lógica materialista do sucesso
a qualquer custo, nem com as leis do neoliberalismo que deixam para trás a
multidão de vencidos e de sofredores, nem com as exigências de uma globalização
que favorece uns poucos privilegiados, mas aumenta as bolsas de miséria e de
exclusão, nem com a forma de organização de uma sociedade que condena à solidão
os velhos e os doentes.
Ao mesmo tempo, o apóstolo incita: “Transformai-vos pela
renovação espiritual da vossa mente.” Na verdade, a metanoia bíblica postula a
mudança das mentalidades, das atitudes e dos comportamentos, que decorre da
mudança do coração. Por isso, cada um deve desinstalar-se dos seus
preconceitos, das suas certezas e seguranças, dos seus princípios imutáveis,
para estar sempre em permanente escuta de Deus, dos seus caminhos, do seu
desígnio e das suas propostas.
Assim, zelaremos sempre o interesse de Deus e cuidamos do bem
(não dos interesses) de todos os homens e do homem todo.
2023.09.03
– Louro de Carvalho
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