Giovanni Coco encontrou uma carta
datada de 14 de dezembro de 1942, escrita pelo padre jesuíta Lother König, da
resistência antinazi, na Alemanha, e dirigida ao padre Robert Leiber, secretário
pessoal do Papa Pio XII, com informações detalhadas de que até seis mil cidadãos
Judeus e Polacos eram assassinados, diariamente, nas câmaras de gás da Polónia
ocupada pela Alemanha nazi. A carta contém um anexo com estatísticas dos padres
detidos nos campos de concentração mandados construir por Adolf Hitler,
em concreto, os de Auschwitz e de Dacau. E relata informações de fontes
confiáveis, segundo as quais, todos os dias, cerca de seis mil Judeus e Polacos
eram mortos “nos altos-fornos” do Lager Bełzec, perto da fronteira com
a Ucrânia.
Giovanni Coco, um dos “oficiais” – no léxico da hierarquia interna – mais respeitados
dos, até 2019, Arquivos Secretos do Vaticano, depois nomeados Apostólicos,
mostrou a folha amarelada datilografada que despontou do labirinto de arquivos
armazenados no bunker subterrâneo
onde era guardada e protegida a memória da Igreja e do Ocidente: mesmo a inconfessável.
Tirou a carta de uma pasta de papelão azul-claro com o cabeçalho “Arquivos Secretos do
Vaticano”.
Tudo isto ficou exposto em entrevista
de Massimo Franco a Giovanni Coco, publicada por “La Lettura”,
caderno dominical do Corriere della Sera,
a 17 de setembro.
Ao lado dele, em frente à grande
janela que dá para os jardins pontifícios, sob a pintura a óleo da escola
de Caravaggio,
intitulada “Os dois jogadores”, estava sentado D. Sergio Pagano,
o bispo que, desde 1997, é o prefeito do Arquivo, por cujas mãos passam os
documentos reservados. Pagano interveio, o mínimo possível, na conversa, mas
foi ele que encarregou Coco de descobrir o conteúdo daqueles sobrescritos
desgastados, às vezes até adulterados, e entregue após muita insistência. Nos
últimos meses, após cansativa reorganização e pesquisas meticulosas, apareceu
uma verdade capaz de reanimar a discussão sobre os “silêncios de Pio XII” a
respeito do extermínio dos Judeus. E engrossa a história de ameaças
nazis contra a Igreja Católica, de preconceitos do Vaticano a raiar o antissemitismo
e de terror papal pelas possíveis represálias de Hitler. Até
aparece uma adaga com insígnias nazis, que um soldado da SS arrependido teria
dado a Pio
XII, depois de lhe confessar que iria ser usada para o matar.
Giovanni Coco nasceu, em 1972, em Catânia, em cuja universidade se formou em
Letras, trabalha no Arquivo Apostólico do Vaticano desde 2002, como arquivista
e pesquisador. Em 2006, publicou o livro Santa Sede e
Manchukuò (1932-1945), Libreria Editrice
Vaticana, e, em 2019, Il Labirinto romano. Il filo delle relazioni
Chiesa-Stato tra Pio XI, Pacelli e Mussolini (1929-1939), com prefácio de Emilio Gentile, publicado pelos
Arquivos do Vaticano. É também autor de vários artigos científicos e está
prestes a publicar o ensaio A parábola da “última”
encíclica de Pio na revista “Quaderni di storia”
dirigida por Luciano Canfora.
Da referida entrevista retiro os
dados e as asserções que tenho por mais pertinentes. Desde logo, afirma que é enorme o
valor desta carta inédita, pois é caso único e “representa o
único testemunho de uma correspondência que devia ser rica e prolongada no
tempo”, o que se percebe pela familiaridade com que Lothar König se
dirige, em Alemão, ao padre Leiber, secretário de Pio XII: “Lieber
Freund!” (caro amigo).
König era
o homem de ligação entre o cardeal Michael von Faulhaber, arcebispo de Munique,
inimigo jurado do nazismo, e o Vaticano. Integrava o Círculo Kreisau,
uma rede da Resistência alemã composta por católicos e protestantes, cujo
serviço de inteligência teve condições de fazer chegar a Roma as
informações mais confidenciais sobre os crimes de Hitler.
Sobre a hipótese de haver outros testemunhos, outras cartas, considera
que não se pode descartar nada. Foi recuperada esta, mas há suspeitas fundadas de que outras cartas poderiam ter
sido destruídas durante a guerra, por medo, ou perdidas após morte do Papa. Com
efeito, os documentos sobre Pio XII custaram 20 anos de
pesquisa e três de reorganização. E a carta chegou dos arquivos da Secretaria
de Estado em lamentável estado, mas só em 2019.
Não se tinham dado conta antes, pois a carta não estava nos Arquivos Secretos,
mas na Secretaria
de Estado, que tem dificuldade em recolher e repassar tantos documentos
produzidos nos seus diversos escritórios e preservados em mil recantos. Os
discursos e os textos datilografados de Pio XII tinham sido
colocados em caixas de plástico numa ala do arquivo, os “sótãos”, onde estavam
a estragar-se, devido ao calor e à humidade. As cartas estavam guardadas e todas
misturadas.
Isto sucedia, principalmente, por descuido. Provavelmente, quem manejou tais documentos,
antes, não entendeu a importância do conteúdo. No passado, os arquivos nem
sempre eram vistos como prioridade em alguns escritórios do Vaticano. E nem
sempre, como noutros lugares, os arquivistas eram selecionados com base no
profissionalismo.
O ano de 1942 não constitui a primeira vez em que chegam informações do
extermínio nos campos de concentração. O nome de Dachau já era conhecido, há
tempo, e, desde janeiro de 1941, tornara-se o campo de detenção para o clero. E,
na realidade, o nome de Auschwitz era conhecido, no Vaticano, desde
1941. Era conhecido como campo de concentração, tendo falado dele vários padres
que viviam na Europa Oriental ou que viajavam nos países ocupados pelos nazis. A
novidade e a importância da carta derivam de um facto específico: sobre o Holocausto,
desta vez, temos certeza de que da Igreja Católica alemã chegavam
a Pio
XII informações exatas e detalhadas sobre os crimes que
estavam a ser perpetrados contra os Judeus. Era o campo de concentração
de Bełzec,
não longe da cidade ucraniana de Rava-Rus’ka, onde foram, entre
cinco e 11 de dezembro de 1942, fuzilados mais de cinco mil Judeus. “As últimas
informações sobre Rawa-Russka com o seu alto-forno da SS, onde todos
os dias morrem até 6.000 homens, especialmente Polacos e Judeus, foram-me confirmadas
por outras fontes...”, escreve König. Mas a carta menciona outro
relatório que não conhecemos ainda, referindo-se a Auschwitz.
É mais uma confirmação de que o Papa sabia e não só desde aquele momento. Porém a
carta indica algo novo. Informa, em primeira mão, sobre os campos de
extermínio. No Vaticano, os campos de concentração eram,
inicialmente, conhecidos como locais de detenção em massa, especialmente para
Polacos e para Judeus, onde as pessoas morriam devido aos maus-tratos que
recebiam. Só, depois, se teve consciência sobre a ‘solução final”. Após o
atentado do coronel Stauffenberg a Hitler, em julho de
1944, König tornou-se
um procurado. E, para escapar à captura, refugiou-se na carvoaria dum convento
em Pullach,
perto Munique,
e lá permaneceu escondido até ao fim do conflito. Mas adoeceu e morreu, logo
após a queda do nazismo.
Sabia que estava a arriscar a vida e
di-lo claramente na carta. Di-lo, recomendando ao Vaticano que
utilize as informações com a máxima cautela, sem dizer palavra que pudesse
trair as fontes. König temia um vazamento do Vaticano ou que a carta
fosse descoberta em caso de ocupação nazi. Neste sentido, escreve: “... Aqui
está a continuação da minha lista da última vez. Os números são oficiais [...]
Há também um relato de várias testemunhas oculares sobre o ‘tratamento’
dispensado aos Judeus em Dachau. [...] Ambos os anexos foram obtidos com o
máximo risco. Não só a minha cabeça está em risco, mas também a cabeça dos
outros, se não forem utilizados com a maior prudência e cuidado [...]” Era um
convite ao silêncio, para não queimar a rede da resistência alemã ao nazismo.
Circulavam rumores da possibilidade de o
Vaticano ser ocupado pelos nazis, mas é difícil dizer até que
ponto eram verdadeiros e levados a sério. Há pistas que levam à convicção sobre
a vontade de Hitler ocupar o Vaticano, mas não se sabe
quão concreta foi durante a guerra. Se tivesse vencido a guerra, não se excluía
que pensasse em acertar contas com o Vaticano. E, em 1942, não
estava descartada a possibilidade de Hitler ter sucesso. Os
rumores eram tão insistentes que Pio XII pediu confirmação ao
embaixador alemão, Ernst von Weizsäcker, que naturalmente o excluiu. Mas o
Papa sentia essa pressão ameaçadora.
Segundo Coco, a figura de Pio XII surge como a de Pontífice ameaçado e ciente da possibilidade de represálias, mas não temeroso. A Weiszäcker Pacelli disse:
“Vou ficar aqui.” Mas certamente pressionado pela sensação de estar na mira, de
ser um possível alvo. Até mesmo um soldado da SS podia encontrá-lo e
esfaqueá-lo, como sugere o punhal. De facto, naqueles anos, circulavam muitos
loucos. Mas parece que se trata de uma história verídica. A primeira vez que se
falou disso foi no restrito círculo papal, em 1963, quando São João XXIII encontrou,
num canto do apartamento pontifício de Pio XII, uma adaga alemã
com friso nazista. Perguntou ao substituto da Secretaria de Estado, Angelo Dell’Acqua, do
que se tratava. Mas este não sabia. Então procurou a Irmã Pascalina Lenhert,
o “oráculo” de Pio XII, a sua governanta. E ela revelou que a adaga
fora trazida numa audiência por um membro da SS que deveria usá-la contra Pio XII.
Mas o soldado arrependeu-se a deixou para o Papa.
O controlo, naquele período, era
frouxo. Estava-se em guerra. E os pedidos de audiência eram rotineiros. Havia,
à época, a fila dos Alemães; e, após o fim do conflito, dos Estadunidenses, dos
Canadenses, dos Ingleses, dos Australianos. Naquelas semanas, o Papa foi solicitado por
Myron Taylor, representante pessoal do presidente dos Estados Unidos, Franklin
D. Roosevelt, para dizer palavras fortes sobre a perseguição aos Judeus. Mas não
o fez, porque tinha os elementos. Outros receios também tiveram
influência: antes de mais, a possibilidade concreta de represálias nazis contra
os católicos polacos, o seu rebanho de fiéis. Teria significado cortar relações
com os bispos daquela comunidade, já sob o domínio nazi. E, numa grande parte
do Vaticano, pairava o preconceito contra os Judeus no plano religioso e no
plano antissemita.
Coco refere-se, em particular, a monsenhor Angelo Dell’Acqua, que viu ser-lhe
confiado o dossiê dos Judeus. Ele ingressou na Secretaria de Estado, em 1938,
justamente às vésperas das leis raciais na Itália. Tornou-se o contacto
de referência, primeiro, para as práticas relativas aos Judeus italianos e,
depois, para todas as questões do judaísmo. E, infelizmente, influenciou a posição de
Pio XII. As suas opiniões eram ouvidas: era o ‘especialista’; fornecia
uma orientação na interpretação das notícias que chegavam. Também na resposta
dada a Myron
Taylor está a sua mão. Minimizou as revelações sobre os
campos de extermínio. Disse que não se podia confiar demasiado nos Europeus
orientais e nos Judeus, pois tendiam a exagerar. O que Taylor escreveu
continha ‘notícias gravíssimas’. E vincou: “Precisamos de ter a certeza de que
correspondem à verdade, porque o exagero é fácil também entre os Judeus. E
também os Orientais não são um exemplo de sinceridade.”
O Papa endossou essa análise redutiva, apesar de ter outras informações,
pois era funcional
a uma linha cautelosa, temendo que os nazis atacassem todos os católicos
polacos, embora uma nota de Giovanni Battista Montini, o futuro São Paulo VI,
também inédita, registasse uma conversa, a 27 de setembro, com o padre Enrico Pucci,
bem posicionado nos círculos fascistas e nos serviços secretos: D. Pucci
conversara com o ministro Guido Rocco, ex-embaixador e diretor
de imprensa estrangeira do Ministério da Cultura Popular, e que Rocco tinha
“manifestado sentimentos de deploração pelas terríveis deportações e
eliminações que estão a ser feitas de judeus inocentes”.
Rocco era um ministro fascista que deplorava
o massacre dos Judeus, pois tinha uma esposa de origem judaica.
Por isso, a sua confidência foi considerada tão credível que induziu Montini a
escrever uma nota para enviar ao Papa.
Coco não sabe dizer se estes documentos podem ser mais uma pedra no
processo de beatificação de Pio XII, mas diz que ajudam a explicar o seu
comportamento. Duvida de que a Postulação tenha tido conhecimento desses
documentos antes, também devido à sua história aventurosa. Pio XII foi
declarado ‘venerável’, em 2009, por decreto de Bento XVI que
‘atesta o caráter heroico das suas virtudes’, mas, desde então o processo não
avançou muito.
Coco organizou o livro Le “Carte” di Pio XII oltre il mito. Eugenio
Pacelli nelle sue carte personali. Cenni storici e inventario (arquivo apostólico vaticano cidade de
vaticano), nas livrarias desde 18 de setembro. E, em outubro,
participará numa conferência organizada pela Universidade Gregoriana em
conjunto, entre outros, com o Museu do Holocausto de Washington e o Yad Vashem
de Jerusalém. Questionado sobre se estes documentos não alimentarão novas
polémicas, espera que, “em vez disso, alimentem uma nova
consciência e ajudem a esclarecer”. Depois de se ter debatido, por mais de meio
século, sobre fontes indiretas, agora as diretas (provavelmente, outras surgirão),
acessíveis a todos, podem ajudar a entender “a terrível época em que Pio XII liderou
a Igreja”, sem medo, nem preconceito. “É isso que estamos a fazer, nos últimos
anos, aqui no Arquivo”, concluiu. E o prefeito Pagano sorriu e acenou com a
cabeça, pois foi o primeiro a querer e a recomendar a máxima transparência nos
documentos de Pio XII.
***
Com a leitura da entrevista, fico
mais consolidado na convicção de que Pio XII não poderia ter feito mais e
melhor do que aquilo que fez, no âmbito da Segunda Guerra Mundial. As advertências
de cautela da parte do autor da carta falam por si. É pena que monsenhor Dell’Acqua tenha
intoxicado o ambiente vaticano, quanto ao antissemitismo e ao antiorientalismo.
Se há crítica a fazer ao Pontífice, essa refere-se à sua eventual
responsabilidade no desaparecimento do projeto de encíclica de Pio XI a reforçar
a condenação do nazismo e do fascismo.
2023.09.24 – Louro de Carvalho
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