Os resultados das últimas eleições gerais espanholas deixaram o país num
impasse, porquanto o partido vencedor – o Partido Popular (PP), de direita, liderado
por Alberto Núñez Feijóo – não tem condições parlamentares
para formar governo, mesmo que aos seus 137 deputados agregue os 33 deputados
do seu aliado natural, o Vox (de extrema-direita), o deputado da União do Povo Navarro e o da Coligação Canária. São 172
deputados (172 votos), faltando quatro para a maioria absoluta (176 deputados) que
legitimaria a investidura do governo à primeira volta.
Como Alberto Núñez Feijóo foi encarregado de formar
governo pelo rei Filipe VI, pelo facto de o PP ter sido o partido que obteve o
maior número de votos nas eleições de 23 de julho, e como não se vislumbra a
possibilidade da investidura à primeira volta, a 26 e 27 de setembro, pelo
Congresso dos Deputados, é natural que o líder do PP espere pelo êxito da
investidura à segunda volta, bastando que o governo obtenha mais votos a favor
de que contra, mesmo que o número de votos a favor não cheguem à maioria
absoluta.
Porém, o eleitorado espanhol optou por distribuir os
votos por uma panóplia alargada de partidos. E, embora a direita espanhola não
tenha conseguido a maioria confortável para formar governo, também o Partido
Socialista Operário Espanhol (PSOE), de centro esquerda – cujo líder é o ainda
primeiro-ministro Pedro Sánchez – com o seu aliado natural, a esquerda Somar,
ficou ainda mais aquém da almejada maioria absoluta. Agregando aos seus 121
deputados os 31 da frente de esquerda Somar, somarão apenas 152 votos, bem
longe dos 176.
Sendo assim, Pedro Sánchez, que tem os votos do PSOE
(121 deputados), quer os da Somar (31) – cuja líder, Yolanda Díaz,
vice-primeira-ministra e ministra do Trabalho, se reuniu com Charles Puigdemont
em Bruxelas, a 4 de setembro –, o do Bloco Nacionalista Galego (um), os do
Partido Nacionalista Basco (cinco) e os do Unir o País Basco (Euskal Herría
Bildu, sucessor do braço político do grupo terrorista ETA, 6 votos). E são
indispensáveis os do Juntos pela Catalunha (JxC, 7 votos) e os da Esquerda
Republicana da Catalunha (ERC, 7 votos). Tudo soma 178 votos.
Ora, se o PSOE quiser que o partido independentista JxC
apoie a investidura Pedro Sánchez para terceiro mandato como primeiro-ministro,
terá de garantir o “abandono completo e efetivo” da via judicial contra os
envolvidos na intentona separatista de 2017. Disse-o, a 5 de setembro, Carles
Puigdemont, chefe de facto do JxC e antigo presidente do governo regional
catalão (2016-17).
“Estaremos prontos para uma negociação histórica, caso
se criem as condições necessárias”, afirmou o eurodeputado foragido à justiça
espanhola. Sem elas “não faria sentido embarcarmos numa negociação posterior,
porque, na política espanhola, todas as precauções são poucas.”
Em conferência de imprensa, em Bruxelas, num hotel perto do Parlamento
Europeu (PE), indicou
quatro condições para negociar com o PSOE: a já referida amnistia; o “respeito
pela legitimidade democrática” da fação independentista catalã; o respeito
pelos direitos humanos; e a criação de um “mecanismo de garantia” dos acordos a
firmar entre o governo central e a Catalunha.
Puigdemont, em contraponto ao facto de Madrid ter
pedido à Europol que designasse os separatistas catalães como terroristas e o
de estes se sentirem espiados e objeto de montagens para detenções sem
fundamento, a fim de paralisar a independência da Catalunha, considera que
“deve haver um reconhecimento da legitimidade democrática do independentismo”.
Quanto ao fim da via judicial para perseguir os
separatistas, defende que o “um de outubro não foi um delito, nem a declaração
de independência, nem as manifestações posteriores”, aludindo à data do
referendo realizado à revelia da lei espanhola e fortemente reprimido pela
polícia. O então presidente proclamou a independência no parlamento regional,
dias depois, mas suspendeu-a passados minutos. Porém, logo o governo espanhol,
do PP (direita), chefiado por Mariano Rajoy, suspendeu a autonomia da
Catalunha, aplicando o artigo 155.º da Constituição, e dissolveu as
instituições políticas catalãs.
Nove políticos catalães já foram condenados e
cumpriram penas de prisão efetiva por esses factos, tendo beneficiado de
indultos promovidos pelo Executivo de Pedro Sánchez. Muitos outros têm
processos abertos, incluindo os que optaram pelo exílio, como Puigdemont, que
perdeu a imunidade de que gozava por ser membro do Parlamento Europeu (PE) e
que, provavelmente, seria preso, se entrasse em Espanha, sob acusações de
desvio de fundos e de desobediência.
Por isso, em seu entender, deixar cair a via jurídica
é uma “exigência ética”, ao passo que negociar com Madrid é “questão de vontade
política”. Consequentemente, porque o considera fulcral para “reparar uma
injustiça”, exige uma lei de amnistia “desde a consulta de novembro de 2014”,
promovida pelo seu antecessor no governo regional, Artur Mas. E pede um compromisso histórico
com a Catalunha, para encetar conversações que venham a culminar num acordo
“histórico”. Para tanto, defende a “criação de um mecanismo de mediação e de verificação
do seguimento dos acordos que os dois partidos principais não estão hoje em
condições de dar”. Justifica-o com a falta de confiança na palavra de Madrid.
Sustentando que não há “receita autonómica” para os
problemas da Catalunha, afirma que “o povo catalão tem o direito de tornar
realidade a decisão que já tomou em 2017, e só um referendo acordado com o
Estado pode alterar esse mandato”. Todavia, Espanha não reconhece validade à
votação de 2017, na qual os catalães contrários à independência escolheram em
massa não participar, para não legitimar a consulta, por a julgarem ilegal. Com
efeito, um referendo legal é impossível à luz da Constituição espanhola, mas
esta pode ser revista. Não obstante, é de vincar que Puigdemont não indicou a
realização do referendo como condição para apoiar Sánchez.
O governo de Sánchez, tendo já garantido a utilização
oficial das diversas línguas nacionais no Parlamento, referiu, por várias vezes,
que as concessões têm como limite a Constituição. Se a consulta popular que os
independentistas exigem é impossível, já a amnistia, até há poucos meses tabu,
começa a ser objeto de discussões políticas e de pareceres de juristas. Yolanda
Díaz criou um grupo de especialistas para desbravar o caminho legal para
cumprir as exigências dos partidos catalães para a investidura de Sánchez,
embora o governo se tenha demarcado da iniciativa.
A questão catalã é controversa entre socialistas.
Vários barões regionais e figuras da dimensão do ex-primeiro-ministro Felipe
González têm advertido, contra cedências, os que querem dividir Espanha. No
entanto, Pedro Sánchez acenou com alguns mimos aos independentistas. Enquanto a
legislatura passada foi a dos indultos aos condenados no processo catalão e da
reforma dos delitos de sedição e de desvio de fundos, assegurou, numa
intervenção em Madrid, que a nova legislatura tem de servir para “deixar
realmente para trás a fratura” do conflito político catalão. “É o tempo da audácia,
da política, de continuar a avançar na convivência.”
O governo já teve gestos de “boa vontade” para com a
ERC e o JxC. Fez eleger presidente do Congresso dos Deputados uma catalanista
convicta, Francina Armengol, antiga presidente do governo regional das ilhas
Balares; permitiu que os dois partidos catalães tivessem grupo parlamentar
próprio, com o que isso implica de subvenções e de poder de intervenção;
autorizou o uso das línguas cooficiais do Estado (Catalão, Galego e Basco) nas
sessões ordinárias do Parlamento; e abriu caminho para que se tornem oficiais
na União Europeia (UE).
***
Carles Puigdemont quer negociar. É o que se tira das opiniões de representantes
políticos próximos do PSOE, depois de ouvirem as condições que o antigo
presidente do governo autónomo da Catalunha estabelece para iniciar negociações,
com vista a viabilizar a manutenção de Sánchez no poder. As ditas fontes consideram que
o fugitivo à justiça espanhola e exilado em Waterloo, na Bélgica, optou por não
erguer uma parede intransponível no rol de requisitos para se sentar a dialogar
com o PSOE e com a Somar, que formam o governo de coligação ainda em funções.
O líder de facto do JxC (partido herdeiro da Convergência
Democrática, fundada por Jordi Pujol, que governou a região durante mais de
duas décadas) traçou, em quatro passos, a via para começar as negociações: uma
lei de amnistia de ampla abrangência, vinculada a um abandono “completo e
efetivo” da via judicial contra o independentismo; o respeito pela “legitimidade
democrática” do movimento separatista; a garantia de que os limites a possíveis
pactos serão fixados em acordos internacionais sobre direitos humanos; e a
fixação de proteções do cumprimento dos eventuais pactos alcançados, através de
novos mecanismos ou figuras ad hoc.
O ex-governante catalão, acompanhado pelo estado-maior do partido
e por representantes da força rival dentro do independentismo – a ERC, hoje a
liderar o governo regional –, não formulou qualquer exigência de referendo de
autodeterminação, ao invés de há seis anos, que protagonizou a organização de
tal consulta, à margem da lei, pelo que arrisca ser condenado a prisão.
Fonte próxima da direção do PSOE admite que “Puigdemont sabe que já
se fala de amnistia e do seu possível encaixe no quadro constitucional”, o que “permite
debate e considerações políticas e jurídicas”. E também sabe que
“autodeterminação é um conceito expressamente negado pela Lei Fundamental”, mas
não quer esticar a corda por agora.
Isabel Rodríguez, porta-voz do governo e titular da pasta da
Política Territorial, reafirmou a postura do Executivo: as posições estão nos
antípodas; a ferramenta é o diálogo; a moldura é a Constituição; e o objetivo é
a convivência.
Enquanto Puigdemont expunha as suas condições, em Bruxelas,
reuniam-se no Congresso dos Deputados, em Madrid, Alberto Núñez Feijóo e
Santiago Abascal, respetivamente, chefes do PP e do Vox. Feijóo, que tinha
previsto falar com o JxC, considera que “não vale a pena”, dadas as exigências
“inconstitucionais” de Puigdemont. E o antigo primeiro-ministro Felipe González
(1982-96), secretário-geral do PSOE durante 25 anos e figura respeitada da
política espanhola, repudiou as exigências independentistas catalãs. Em
entrevista à rádio Onda Cerro,
afirmou: “A Constituição não é uma pastilha elástica que se adapte ao desejo
particular de cada um. Diga-se, com clareza, que, no âmbito da Constituição,
não cabe a amnistia, nem a autodeterminação.”
Também o jornalista Antonio Caño, antigo diretor do diário “El
País”, que sublinha, na sua coluna para o jornal digital “The Objective”: “Com
Pedro Sánchez à frente, a nossa democracia debilitou-se em muitos aspetos, mas,
sobretudo, perdeu a bússola moral.” Começaram por negar os indultos e a
amnistia, para fazerem o inverso justificam; opunham-se ao referendo de
autodeterminação e vão procurar-lhe encaixe constitucional.
A maior dificuldade é articular legalmente a lei da amnistia
exigida pelo JxC. O governo está em gestão, pelo que a sua atuação está muito
limitada, fora das questões do quotidiano. O tempo é limitado: depois da
previsível investidura falhada de Feijóo, dias 26 e 27. E, se o rei, como se
espera, encarregar Sánchez de formar governo, sobram dois meses para evitar a
repetição das eleições. Não obstante, figuras da cúpula do PSOE confiam que
persuadirão Puigdemont a adotar a flexibilidade necessária para preparar um
pacote legal de tal transcendência. Provavelmente, a tarefa será entregue a Yolanda
Díaz, que já criou, através do seu colaborador direto Jaume Assens, canais de
comunicação estreitos com Puigdemont e com o seu estado-maior. Até foi a
Bruxelas dialogar com o antigo governante catalão.
Outro escopo de Puigdemont é chegar ao dia nacional da Catalunha
(a “Diada”, a 11 de setembro) com liderança reforçada, sobretudo face à ERC, de
Oriol Junqueras, outra personagem do independentismo, que, ao invés de
Puigdemont, assumiu as suas responsabilidades na intentona de 2017: ficou em
Espanha; e foi detido, julgado, condenado, preso e indultado.
Puigdemont disse e redisse, a 5 de setembro: “Não há condições
para uma negociação, é preciso criá-las.” E, apesar dos agravos, pode
viabilizar a governação apoiada por sete partidos.
Seja como Espanha merece um governo e precisa dele!
2023.09-05
– Louro de Carvalho
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