Em vésperas do arranque da semana de alto nível da 78.ª
Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), o secretário-geral, António
Guterres, descarta avanços na solução da guerra da Rússia com a Ucrânia,
conflito que voltou a assumir centralidade no debate. “Para ser honesto, não
vejo, nesta Assembleia-Geral, as condições para um diálogo sério sobre a paz.
Acho que as partes estão longe dessa possibilidade, neste momento”, afirmou Guterres
em entrevista ao canal oficial da ONU, a 17 de setembro, mas garantindo que as
Nações Unidas “nunca, nunca” abrandarão os seus esforços para alcançar a paz na
Ucrânia, uma paz que deve ser “justa” e “em linha com o direito internacional”.
O secretário-geral frisou que a invasão russa da Ucrânia
desencadeou “tensões geopolíticas”, tornando difícil para os países concordarem
em enfrentar desafios comuns, como a crise climática ou o avanço da
inteligência artificial. “Infelizmente, o Mundo não está unido para enfrentar
esses desafios. É por isso que é tão importante que a guerra na Ucrânia
termine, porque é uma das razões pelas quais o mundo não está a unir-se”,
considerou.
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A Assembleia-Geral – o momento alto do calendário
anual da ONU – composta por 193 membros, debate questões como os direitos
humanos ou a cooperação económica, social, cultural e nas áreas da educação e
saúde; trata, segundo a Carta das Nações Unidas, de questões de paz e segurança
internacionais que não estejam a ser abordadas pelo Conselho de Segurança; aprova o orçamento anual da ONU; e aprova resoluções
e declarações condizentes com os princípios orientadores da ONU. Já o
financiamento das missões de manutenção de paz é da competência de uma das seis
comissões principais da Assembleia-Geral.
À semelhança do sucedido em 2022, a recuperação da
pandemia de covid-19, a guerra na Ucrânia e as alterações climáticas são temas
fortes da 78.ª Assembleia-Geral. Com efeito, a invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia, em
fevereiro de 2022, voltou a evidenciar a necessidade de alterar o funcionamento
do Conselho de Segurança: a Rússia, a potência invasora, é um dos cinco membros
permanentes deste órgão e tem poder de veto. Quanto às alterações
climáticas, uma das bandeiras do secretário-geral, é de referir que a
Assembleia-Geral acontece pouco mais de dois meses antes da Conferência das
Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP28,), que decorrerá no Dubai.
Além disso, são temas de discussão a crescente influência da
China, a segurança marítima no Pacífico, as perturbações nas cadeias de
abastecimento, os recentes golpes de Estado em África – em pouco mais de um
mês, houve um no Níger e outro no Gabão – e as crises humanitária e migratória
em vários pontos do globo. E uma tradição recente tem sido
tomar o pulso aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) com que, em
2015, os líderes mundiais se comprometeram até 2030, como a erradicação da
pobreza e da fome, a saúde e a educação de qualidade, a igualdade de género e o
acesso a água potável e a saneamento.
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Após duas semanas de encontros, o debate geral
arrancou a 19 de setembro na sede da ONU, em Nova Iorque, com o tema-chapéu: reconstruir
a confiança e relançar a solidariedade global; acelerar a ação na Agenda 2030 e
os seus ODS para a paz, a prosperidade, o progresso e a sustentabilidade para
todos. À margem da reunião principal, há encontros bilaterais.
Lula da Silva, empossado como presidente em janeiro (é
usual o Brasil ser o primeiro intervir), foi o primeiro líder nacional a usar da
palavra, focando-se em questões como a desigualdade e a insegurança alimentar, nas
alterações climáticas, na proteção da floresta amazónica e na promessa de
voltar a fazer do seu país um líder mundial em matérias ambientais, bem como a consecução
da paz, na sequência da guerra na Ucrânia.
“Para vencer a desigualdade falta vontade política
daqueles que governam o Mundo”, defendeu.
Sobre o papel que pretende para o país, disse: “O
Brasil está a reencontrar-se consigo mesmo, com a nossa região, com o Mundo e [com]
o multilateralismo. O Brasil está de volta para dar a sua devida contribuição
ao enfrentamento dos principais desafios globais.”
Quanto às desigualdades do passado e ao seu legado,
vincou: “Agir contra a mudança do clima implica pensar no amanhã e enfrentar
desigualdades históricas. Os países ricos cresceram baseados num modelo com
alta taxa de emissão de gases danosos ao clima. A urgência climática torna
urgente uma correção de rumos e a implementação do que já foi acordado.” Segundo
o presidente do Brasil, os países em desenvolvimento não querem repetir tal
modelo.
Depois, associou a sustentabilidade à paz,
considerando: “Os conflitos armados são uma afronta à racionalidade humana.
Conhecemos os horrores e sofrimento produzidos por todas as guerras. A promoção
de uma cultura de paz é um dever para todos nós.” Lamentou a persistência de
disputas não resolvidas e o surgir de novas ameaças. Sobre a guerra na Ucrânia, frisou: “Escancara
a nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer o propósito e princípios da
ONU.” E acrescentou: “Não subestimamos as dificuldades em garantir a paz, mas
nenhuma solução será duradoura se não for baseada no diálogo.”
É um enunciado que em sintonia com Guterres e que
marca a posição reiterada de Lula.
Seguiu-se Joe Biden, presidente dos Estados Unidos da América
(EUA), o país-anfitrião da Assembleia-Geral. Depois, discursam o presidente da
Colômbia, o Rei da Jordânia e os presidentes da Polónia, de Cuba, da Turquia e de
Portugal. Este foi o oitavo chefe de Estado e/ou de governo a discursar. Depois do Brasil e dos EUA, a ordem dos
oradores obedece a um algoritmo que reflete o nível de representação, o
equilíbrio geográfico, a ordem pela qual o pedido de intervenção foi registado
e outras considerações.
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Ao invés de Lula da Silva, Joe Biden referiu compreender
o dever do seu país “em liderar neste momento crítico”, ambicionando um Mundo
“mais seguro” e “próspero”. E frisou: “Sabemos que o nosso futuro está ligado
ao vosso e que nenhuma nação consegue responder aos desafios atuais sozinha.” Aludiu
à criação de instituições internacionais pelas gerações anteriores para combater
os desafios do seu tempo, mas reconheceu a necessidade de reformas, a fim de
responder aos novos desafios e de manter a paz no Mundo, pelo que é preciso “trazer
mais liderança que existe em todo o lado, especialmente de regiões que nem
sempre foram totalmente incluídas”. Assim, recordou que os EUA apoiam o
alargamento do Conselho de Segurança, com o aumento do número de membros
permanentes e não permanentes, mostrando que está a fazer esforços nesse
sentido. Sem ignorar as tensões com a China, reforçou o que é um dos objetivos
dos EUA “gerir de forma responsável a competição entre os nossos países, para
não se tornar num conflito”. E destacou que não pretende cortar laços, mas
reduzir riscos.
Sobre a Rússia, referiu que a Assembleia-Geral da ONU
conta pelo segundo ano consecutivo com “a sombra da guerra”, sendo a Rússia “o
único entrave à paz”, já que o seu preço pela paz “é a capitulação da Ucrânia,
o território ucraniano e as crianças ucranianas”. Por isso, sustentou que é
preciso enfrentar o agressor e dissuadir os possíveis agressores do futuro,
garantindo o compromisso dos EUA em apoiar a Ucrânia na defesa da sua soberania
e liberdade, que não é só investimento no futuro daquele país, mas “no de todos
os países que procuram um Mundo governado por regras que se aplicam de igual forma
a todas as nações”.
Andrzej Duda, presidente da Polónia, focou o perigo
que se sente na atualidade e o impacto da invasão da Ucrânia. “Escravatura,
imperialismo e neocolonialismo são uma negação de liberdade tanto quanto sonhos
loucos de dominar os outros. […] Vladimir Putin queria restaurar o império
russo para dividir o Mundo e tornar a Europa sistematicamente dependente dos
seus materiais. Não teve sucesso”, comentou. E, defendendo a necessidade de
responsabilizar a Rússia pelas suas ações, reiterou o apoio da Polónia à
investigação de violações de direitos humanos, no contexto da guerra e da
preservação de provas; e apelou a que a integridade territorial da Ucrânia seja
restaurada, sem que a guerra se transforme em conflito congelado.
Miguel Díaz-Canel Bermúdez, presidente de Cuba, apelou a mudanças nos instrumentos de dívidas e
criticou as sanções impostas pelos EUA ao país. “Enquanto as nações mais ricas
falham o compromisso de atribuírem pelo menos 0,7% do PIB nacional a apoio ao
desenvolvimento, os países do sul têm de gastar até 14% das suas receitas a
pagar juros associados a dívida externa”, lamentou. A par do financiamento dos
países do sul global, classificou as sanções como “medidas unilaterais
coercivas” que se tornaram “prática de Estados poderosos que pretendem atuar
como juízes universais” ao “enfraquecer” economias e “subjugar estados
soberanos”.
Acusando o bloqueio económico asfixiante a Cuba, há 60
anos, desenhado para depreciar o seu nível de vida, perpetuar a escassez de
alimentos e medicamentos e outros bens essenciais e prejudicar o seu desenvolvimento,
ironizou serem esses os objetivos da coerção económica e pressão dos EUA contra
Cuba, “em violação da lei internacional e da Carta da ONU”.
A intervenção de Recep
Tayyip Erdoğan, presidente da Turquia, abrangeu várias questões: conflitos,
terrorismo, alterações climáticas. O país foi abalado por sismos que provocaram
a morte de dezenas de milhares de pessoas e o incidente não foi esquecido, com
Erdogan a agradecer à comunidade internacional o apoio prestado na tragédia. A nível político, o líder turco concordou com
a necessidade de reformas na ONU e apontou que o Conselho de Segurança se
tornou “um campo de batalha para as estratégias políticas de apenas cinco
países”.
Também se focou na Ucrânia: “Desde o início da guerra
temos procurado manter os nossos amigos ucranianos e russos à mesa, com a tese
de que a guerra não terá vencedores e a paz não tem perdedores. Vamos aumentar
os nossos esforços para acabar a guerra através da diplomacia e diálogo, com
base na independência e integridade territorial da Ucrânia.”
Recebido sob aplausos e trajando o habitual verde-tropa,
o presidente da Ucrânia disse, referindo-se à Rússia: “Os terroristas não têm o
direito de possuir armas nucleares.”
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Volodymyr Zelensky, depois de uma intervenção à
distância, em 2022, falou de viva voz, desta vez. Foi o décimo a discursar. Além
de uma reunião bilateral com Biden, assegurou a participação na reunião do Conselho
de Segurança do dia 20, sentando-se à mesa com o ministro russo dos Negócios
Estrangeiros, Sergei Lavrov, que está em representação da Rússia.
Segundo a embaixadora dos EUA na ONU, cerca de 150
líderes participam nas conversações de alto nível, não estando presentes quatro
dezenas de países. Outros marcam presença, mas não ao mais alto nível. Em concreto,
dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança só os EUA se fazem representar
através do presidente. A Rússia enviou o chefe da
diplomacia, Sergei Lavrov, pois o presidente tem um mandado internacional de
captura na sequência da invasão da Ucrânia, pelo que limita as deslocações ao
estrangeiro. A China anunciou que seria representada pelo ministro
dos Negócios Estrangeiros, ocupando o lugar do presidente Xi Jinping, mas a
decisão final recaiu sobre o vice-presidente Han Zheng. E o presidente francês, Emmanuel Macron, e o primeiro-ministro
britânico, Rishi Sunak, invocaram conflitos de agenda a justificar a ausência, sendo
a primeira vez, em mais de 10 anos, que o Reino Unido não se faz representar
pelo chefe de governo na Assembleia-Geral da ONU.
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O regresso do presidente ucraniano aos EUA, na semana da 78.ª Assembleia Geral
da ONU, surge quando o Congresso local quer atenuar a generosidade da Casa
Branca. Ajudar os esforços de guerra de Kiev é “investimento na democracia e
não caridade”. A expressão em causa foi usada, pela primeira vez, por Volodymyr
Zelensky, na passagem pelo congresso dos EUA, em dezembro de 2022. Agora, voltou
para assegurar a fluidez do financiamento, tendo agendado um encontro com o
homólogo americano, na Casa Branca, em Washington, dois dias após participar na
Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque. Paralelamente, a sua agenda tem
encontros com vários chefes de Estado e de governo, caso do primeiro-ministro
israelita.
O líder do governo de Kiev tem em agenda também uma deslocação ao
Capitólio, para se reunir com a liderança republicana e a democrata, quando a
Câmara dos Representantes (Câmara Baixa do Congresso) discute o reforço do investimento:
um novo pacote de ajuda humanitária e militar de 24 mil milhões de dólares
(mais de 22 mil milhões de euros). Elementos da maioria na Câmara Baixa
sustentam que os EUA devem reduzir o montante do auxílio. O Speaker do Congresso, Kevin McCarthy,
repete que não quer “continuar a passar cheques em branco à Ucrânia”. Os
candidatos à nomeação republicana para a presidência concordam. Ao invés, Biden
sobressai como defensor da luta ucraniana, enquadrando-a numa das causas importantes
da sua política externa, a luta global das democracias contra as autocracias.
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Acaba por ter razão Lula da Silva, pois não é reforçando o teatro de guerra
que se consegue a paz; não é com armas sofisticadas que se exporta democracia; a
democracia norte-americana, assente na absoluta preponderância dos direitos
individuais e no pregão do desígnio norte-americano na supremacia e no
policiamento dos povos do Mundo, deixando para trás quem não tem recursos e
impondo ditaduras onde dá jeito, não é verdadeira democracia; e as guerras são
poderosas e nefastas inimigas do ambiente, da ecologia e da ecoeconomia.
2023.09.19 – Louro de Carvalho
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