domingo, 1 de junho de 2025

Utilização de fundos da UE viola direitos de comunidades marginalizadas

 

Um novo relatório – preparado pela Bridge EU, com o apoio da Validity Foundation e da European Network on Independent Living, e lançado a 26 de maio –, revela como fundos da União Europeia (UE) estão a ser utilizados de forma a violar os direitos fundamentais de comunidades marginalizadas, incluindo a população cigana, pessoas com deficiência e pessoas com antecedentes migratórios.

O documento, que se baseia em seis relatórios nacionais da Bulgária, da Chéquia, da Grécia, da Polónia, da Hungria e da Roménia, destaca sérias deficiências na forma como os fundos da UE são geridos e monitorados e apoiam violações de direitos fundamentais, apesar das salvaguardas legais existentes. 

Nos termos do Comunicado de Imprensa Bridge EU, 1,1 mil milhões de euros, em 63 projetos, daqueles seis países, constituem um padrão: como os fundos da UE violam os direitos fundamentais de comunidades marginalizadas, atingindo milhares de pessoas.

Pela primeira vez, esta investigação expõe áreas comuns e generalizadas de violações de direitos financiadas pela UE, que afetam as comunidades ciganas, as pessoas com deficiência e as pessoas com antecedentes migratórios ”, destaca Lefteris Papagiannakis, diretor do Conselho Grego para Refugiados (GCR) e coordenador do projeto “Fundos da UE para os Direitos Fundamentais” (FURI), especificando: Da educação segregada à institucionalização, as conclusões revelam discriminação sistémica. [Por isso,] as autoridades nacionais e da UE devem agir, urgentemente, para prevenir novas violações de direitos e garantir que os fundos da UE apoiam a igualdade e a inclusão.” 

O projeto FURI é uma iniciativa transnacional financiada pelo programa Cidadãos, Igualdade, Direitos e Valores (CERV) da UE (contrato de subvenção número 101143162 - FURI - CERV-2023-CHAR-LITI), que visa garantir que os fundos da UE sejam utilizados de forma a respeitar e a promover os direitos consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da UE. 

O projeto é coordenado pelo GCR e implementado nos seis países da UE, referidos, com o apoio de um coordenador temático e parceiros internacionais. Assim, a coordenação temática está a cargo da Ponte UE. Os parceiros nacionais são: a Awen Amenca, na Chéquia; o Conselho Grego para Refugiados, na Grécia; a Fundação de Parceiros Hungria, na Hungria;  o Centro de Políticas para Ciganos e Minorias, na Roménia; a Rede de Peritos Independentes, na Bulgária; e o Instytut Niezaleznego Zycia, na Polónia. E os parceiros internacionais são: a Fundação Validade; e a Rede Europeia para a Vida independente.

Foi dada atenção especial a três grupos desproporcionalmente afetados por violações de direitos: comunidades ciganas, pessoas com histórico de migração e pessoas com deficiência.

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Os exemplos identificados incluem a construção de habitação segregada para comunidades ciganas em áreas periféricas, longe de serviços públicos e sem condições mínimas de habitabilidade, a construção residenciais para crianças com deficiência, afastando-as das suas famílias, em vez de lhes proporcionar apoio em casa e centros de acolhimento para pedidos de asilo em locais remotos da Grécia, com condições de vida degradantes.

A análise mostra que estes mais de mil milhões de euros com que se financiaram estes projetos, estão longe de ter ajudado a promover a inclusão social e acabam por agravar a exclusão de grupos já vulneráveis.

Ao jornal The Guardian, Ines Bulic, da Rede Europeia para a Vida Independente, e uma das autoras do relatório, considerou “inaceitável” que o dinheiro dos cidadãos europeus seja utilizado para reforçar a discriminação e segregação. “O que gostaríamos de ver é investimento em educação inclusiva, escolas acessíveis, professores de apoio e serviços que permitam às crianças com necessidades especiais frequentar escolas regulares”, afirmou.

Como foi referido, o relatório identifica 63 projetos financiados por Bruxelas que violam direitos fundamentais de comunidades marginalizadas.

Entre eles, destacam-se escolas segregadas para crianças com deficiência, na Grécia, que promovem a separação, em vez da inclusão; uma instituição residencial, na Roménia, onde crianças com deficiência são colocadas longe das famílias; habitação social para a comunidade cigana, na Roménia, construída em contentores navais e sem condições adequadas; centros de receção para requerentes de asilo, na Grécia, situados em áreas remotas e com condições precárias; a segregação escolar de crianças ciganas, na Chéquia, que mantém estas crianças em turmas ou escolas separadas e projetos de institucionalização de pessoas com deficiência, em vários países do Leste Europeu, que reforçam o isolamento, em vez da inclusão social.

Segundo a Bridge EU, um dos principais problemas é a fraca compreensão, por parte de alguns governos e de responsáveis europeus, do que são, efetivamente, os direitos fundamentais.

Este relatório junta-se a outras investigações recentes que apontam no mesmo sentido. Por exemplo, o Conselho da Europa alertou que a segregação escolar resulta numa educação de menor qualidade, para crianças ciganas, muitas vezes, por consequência direta de práticas discriminatórias por parte das autoridades escolares.

Além disso, uma agência da UE já tinha concluído, em 2024, que o número de pessoas com deficiência a viver em contextos segregados e, por vezes, nocivos aumentou em vários países.

Ao The Guardian a Comissão Europeia disse conhecer as conclusões do relatório em causa e que já está a investigar. “É importante sublinhar que a Comissão não financia nenhuma organização que não respeite plenamente os direitos e valores fundamentais”, declarou um porta-voz.

No entanto, o relatório diz que os fundos europeus têm enorme potencial transformador, se forem bem aplicados. Com efeito, podem apoiar sistemas de educação inclusivos, reformar o acesso à habitação social e melhorar a vida das populações mais vulneráveis; ao invés, se forem mal geridos, arriscam a aumentar desigualdades.

É caso para questionar os gestores dos fundos por que motivo os aplicam mal. As verbas são insuficientes? A gestão é incompetente? Desviam verbas para empreendimentos diferentes dos constantes dos respetivos projetos? Arrecadam, para si mesmos, dinheiros europeus? Não há fiscalização adequada ao desenvolvimento dos projetos?

Encarar, a sério, a problemática dos direitos humanos fundamentais é uma chatice, para muita gente. Obriga a considerar todas as pessoas iguais em dignidade humana, com direito à vida, à vida condigna, à saúde, à educação, ao trabalho, à habitação, à segurança física, ao trabalho, à proteção (na doença, no desemprego e na ancianidade), a alguma fatia da propriedade, à cultura, ao exercício físico e ao lazer. Implica também o combate ao mercantilismo nos bens essenciais, tal como a produção e a distribuição de riqueza ou o respeito pelos ecossistemas, não exaurindo a Terra (solo, subsolo e mares) dos seus recursos naturais.

Falar de direitos humanos torna-se fastidioso, para muitas pessoas, ou se torna politicamente correto e hipócrita, para muitas outras.

A este respeito, lembro-me de um chiste do Público, de 1 de junho, sobre o Dia Mundial da Criança: “Hoje é o Dia da Criança. E então? Então, é dia para se falar dos direitos das crianças, mas não de forma exaustiva, que o dia é curto e isso cansa.”     

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Nem só com fundos europeus se faz discriminação. Segundo o relatório anual de 2024 da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI), aumentou o discurso de ódio transfóbico, na Europa, tendo sido identificadas quatro áreas críticas, entre os países da UE: discriminação nas forças de segurança, segregação escolar de crianças ciganas, transfobia e fragilidade dos organismos de igualdade.

No atinente à discriminação contra pessoas trans, é nas campanhas eleitorais que ela se torna mais notória, sendo os políticos apontados como alguns dos principais autores deste tipo de discurso, vindo, a seguir, os meios de comunicação tradicionais, bem como plataformas digitais que dão espaço à disseminação de mensagens de ódio contra pessoas trans. E o discurso transfóbico torna-se prevalente, “quando estão a ser preparadas legislações progressistas sobre os direitos humanos das pessoas transexuais”, como o reconhecimento legal da identidade de género.

Um padrão recorrente nas mensagens de ódio identificadas é o apelo à “proteção das crianças” contra a “ideologia de género”. Segundo a ECRI, grupos e indivíduos que se afirmam defensores da infância opõem-se a que o tema da “identidade” seja abordado nas escolas. Além disso, alunos transexuais enfrentam maior risco de bullying nas escolas.

Paralelamente, “um elevado nível de segregação escolar das crianças ciganas continua a ser observado, em vários estados-membros”, lê-se no documento publicado a 28 de maio. Entre as causas apontadas, estão a segregação habitacional, as decisões institucionais das escolas e a discriminação por parte de outros pais.

Ora, segundo o documento, “aprender em contextos segregados resulta numa educação de menor qualidade para as crianças ciganas, em parte, devido a currículos reduzidos ou a infraestruturas escolares inadequadas”. Todavia, a ECRI reconhece que alguns governos adotaram medidas positivas, entre as quais leis que proíbem a segregação escolar ou que obrigam a uma distribuição aleatória de alunos pelas turmas.

Outra das preocupações destacadas no relatório é a continuidade de práticas discriminatórias, por parte das forças policiais, com base em caraterísticas raciais ou étnicas, que afetam, sobretudo pessoas negras e afrodescendentes, migrantes, indivíduos com histórico de migração, comunidades ciganas e itinerantes e muçulmanos. E a ECRI frisa que este tipo de discriminação ocorre, com frequência, em controlos fronteiriços, tanto em aeroportos como em fronteiras terrestres. “Estas práticas têm efeitos profundamente negativos na sociedade, gerando sentimentos de humilhação e de injustiça entre as pessoas afetadas”, alerta o relatório.

Este já foi assunto abordado em relatórios anteriores. Por exemplo, em 2021, a ECRI destacava sinais de racismo e de comportamento racista entre as forças de segurança, sublinhando que “as vítimas de tais práticas sentem-se muitas vezes insuficientemente protegidas pelas autoridades” e que os efeitos do racismo policial “não são limitados a pessoas específicas, mas têm um efeito negativo amplo nas comunidades como um todo, reduzindo a confiança nas instituições”.

Também é referida, nas principais conclusões do estudo, a situação dos organismos de igualdade na Europa identificando falhas persistentes na sua autonomia e capacidade de atuação. “Muitos organismos de igualdade carecem de recursos humanos e financeiros adequados para cumprirem, eficazmente, as suas funções”, alerta a ECRI. Em alguns casos, a situação piorou, devido a cortes orçamentais ou ao acréscimo de funções, sem aumento proporcional de recursos.

Além disso, em vários países, não há garantias suficientes para as proteger de pressões políticas, “o que pode comprometer seriamente o seu trabalho”. Contudo, a ECRI salienta, como positiva, a adoção, em maio de 2024, de nova diretiva da UE que estabelece normas obrigatórias para o funcionamento dos organismos de igualdade, considerando que esta legislação “cria um novo impulso para reforçar estas instituições a nível nacional e [para] garantir que cumpram plenamente o seu mandato”.

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Parente do racismo é a xenofobia. Ora, este fenómeno, na Europa, vem-se intensificando, ao longo do tempo. O continente, como os Estados Unidos da América (EUA), é um dos locais do Mundo que mais imigrantes recebem, e conta com elevada migração interna, graças à livre circulação de pessoas que atinge a maior parte dos países-membros da UE. Com isso, a xenofobia, que é a aversão, o preconceito ou a intolerância para com grupos estrangeiros, aumenta a cada dia.

O aumento das migrações internacionais está, geralmente, ligado a fatores de repulsão e de atração. Os primeiros contribuem para a saída rápida do migrante, por motivos económicos, por falta de recursos naturais, por crises humanitárias ou por ocorrência de guerras ou de guerrilhas; já os fatores de atração relacionam-se com as condições oferecidas pelos lugares de destino, como uma economia estável ou grande oferta de emprego, melhor qualidade de vida, entre outros elementos.

No caso da Europa, há a combinação de ambos os fatores. De um lado, a população de países subdesenvolvidos busca, no “velho continente”, além de emprego, melhores condições de vida, fugindo da realidade económica dos seus locais de origem. Com isso, há grande quantidade de estrangeiros a viver na Europa, entre migrantes legais e ilegais.

Assim, aumenta-se a intolerância para com os grupos estrangeiros, motivada pelas diferenças culturais e sociais, com inúmeros casos de intolerância social, racial e religiosa. Ao mesmo tempo, a população europeia considera-se ameaçada pelos estrangeiros, com o receio de que diminuam a oferta de emprego e atrapalhem os rumos da economia, enviando dinheiro para o exterior (geralmente, para os seus lugares de origem) e diminuindo a circulação económica interna. Tais medos intensificaram-se durante a recente crise económica e financeira.

Outra questão – e grave – que se relaciona com o aumento da xenofobia, na Europa, é o crescimento de grupos partidários e políticos de extrema-direita, que alimentam uma linha ideológica baseada no antissemitismo, no ultraconservadorismo e em outros ideais fascistas, como a “pureza” dos povos europeus. A emergência de posições desse tipo intensificou, inclusive, medidas de Estado envolvendo atitudes xenófobas na Europa, como a construção do Muro de Ceuta pelos espanhóis, na África, para separar a cidade de Ceuta do território marroquino, dificultando assim a entrada de migrantes.

Outro exemplo de xenofobia praticada pelos políticos espanhóis refere-se às várias perseguições e tentativas de expulsão de povos ciganos, principalmente, oriundos da Roménia, por parte dos governos da França e da Itália, totalizando milhares de extraditados de maneira voluntária (através do oferecimento de dinheiro para que deixem o país) ou involuntária (à força).

Apesar de a UE ter criado, já em 1997, o Observatório Europeu do Racismo e da Xenofobia, há muito por fazer, no atinente à intolerância social e política para com estrangeiros – desafio enfrentado por outros territórios, como os EUA e, recentemente, por países emergentes, que se tornam novos vetores para a chegada de migrantes em demanda de melhores condições vida.

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A pluriconvivência é desafio problemático, mas imperativo, para todos, em nome da dignidade humana e da paz mundial.

2025.06.01 – Louro de Carvalho

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