Um novo relatório – preparado pela Bridge EU, com o
apoio da Validity Foundation e da European Network on Independent Living, e
lançado a 26 de maio –, revela como fundos da União Europeia (UE) estão a ser
utilizados de forma a violar os direitos fundamentais de comunidades
marginalizadas, incluindo a população cigana, pessoas com deficiência e pessoas
com antecedentes migratórios.
O documento, que se baseia em seis relatórios
nacionais da Bulgária, da Chéquia, da Grécia, da Polónia, da Hungria e da
Roménia, destaca sérias deficiências na forma como os fundos da UE são
geridos e monitorados e apoiam violações de direitos fundamentais, apesar das
salvaguardas legais existentes.
Nos termos do Comunicado
de Imprensa Bridge EU, 1,1 mil
milhões de euros, em 63 projetos, daqueles seis países, constituem um padrão: como
os fundos da UE violam os direitos fundamentais de comunidades marginalizadas,
atingindo milhares de pessoas.
Pela primeira vez, esta
investigação expõe áreas comuns e generalizadas de violações de direitos
financiadas pela UE, que afetam as comunidades ciganas, as pessoas com
deficiência e as pessoas com antecedentes migratórios ”, destaca
Lefteris Papagiannakis, diretor do Conselho Grego para Refugiados (GCR) e coordenador do projeto “Fundos da UE
para os Direitos Fundamentais” (FURI),
especificando: “Da educação
segregada à institucionalização, as conclusões revelam discriminação sistémica.
[Por isso,] as autoridades nacionais e da UE devem agir, urgentemente, para
prevenir novas violações de direitos e garantir que os fundos da UE apoiam a
igualdade e a inclusão.”
O projeto FURI é uma iniciativa transnacional financiada
pelo programa Cidadãos, Igualdade, Direitos e Valores (CERV) da UE (contrato de
subvenção número 101143162 - FURI - CERV-2023-CHAR-LITI), que visa garantir que
os fundos da UE sejam utilizados de forma a respeitar e a promover os direitos
consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da UE.
O projeto é coordenado pelo GCR e implementado nos
seis países da UE, referidos, com o apoio de um coordenador temático e
parceiros internacionais. Assim, a coordenação temática está a cargo da Ponte
UE. Os parceiros nacionais são: a Awen Amenca, na Chéquia; o Conselho
Grego para Refugiados, na Grécia; a Fundação de Parceiros Hungria, na
Hungria; o Centro de Políticas para Ciganos e Minorias, na Roménia; a Rede
de Peritos Independentes, na Bulgária; e o Instytut Niezaleznego Zycia, na Polónia.
E os parceiros internacionais são: a Fundação Validade; e a Rede Europeia
para a Vida independente.
Foi dada atenção especial a três grupos
desproporcionalmente afetados por violações de direitos: comunidades ciganas,
pessoas com histórico de migração e pessoas com deficiência.
***
Os exemplos identificados incluem a construção de
habitação segregada para comunidades ciganas em áreas periféricas,
longe de serviços públicos e sem condições mínimas de
habitabilidade, a construção residenciais para crianças com
deficiência, afastando-as das suas famílias, em vez de lhes
proporcionar apoio em casa e centros de acolhimento para pedidos
de asilo em locais remotos da Grécia, com condições de vida
degradantes.
A análise mostra que estes mais de mil milhões de euros com que se
financiaram estes projetos, estão longe de ter ajudado a promover a inclusão
social e acabam por agravar a exclusão de grupos já vulneráveis.
Ao jornal The Guardian, Ines
Bulic, da Rede Europeia para a Vida Independente, e uma das autoras do
relatório, considerou “inaceitável” que o dinheiro dos cidadãos
europeus seja utilizado para reforçar a discriminação e segregação. “O
que gostaríamos de ver é investimento em educação inclusiva, escolas
acessíveis, professores de apoio e serviços que permitam às crianças com
necessidades especiais frequentar escolas regulares”, afirmou.
Como foi referido, o relatório identifica 63 projetos financiados
por Bruxelas que violam direitos fundamentais de comunidades marginalizadas.
Entre eles, destacam-se escolas segregadas para crianças com
deficiência, na Grécia, que promovem a separação, em vez da inclusão; uma
instituição residencial, na Roménia, onde crianças com deficiência são
colocadas longe das famílias; habitação social para a comunidade cigana, na
Roménia, construída em contentores navais e sem condições adequadas; centros de
receção para requerentes de asilo, na Grécia, situados em áreas remotas e com
condições precárias; a segregação escolar de crianças ciganas, na Chéquia, que
mantém estas crianças em turmas ou escolas separadas e projetos de
institucionalização de pessoas com deficiência, em vários países do Leste
Europeu, que reforçam o isolamento, em vez da inclusão social.
Segundo a Bridge EU, um dos principais problemas é a fraca
compreensão, por parte de alguns governos e de responsáveis europeus, do
que são, efetivamente, os direitos fundamentais.
Este relatório junta-se a outras investigações recentes que
apontam no mesmo sentido. Por exemplo, o Conselho da Europa alertou que a
segregação escolar resulta numa educação de menor qualidade, para crianças
ciganas, muitas vezes, por consequência direta de práticas discriminatórias por
parte das autoridades escolares.
Além disso, uma agência da UE já tinha concluído, em 2024, que o
número de pessoas com deficiência a viver em contextos segregados e, por vezes,
nocivos aumentou em vários países.
Ao The Guardian
a Comissão Europeia disse conhecer as conclusões do relatório em causa e
que já está a investigar. “É importante sublinhar que a Comissão não
financia nenhuma organização que não respeite plenamente os direitos e valores
fundamentais”, declarou um porta-voz.
No entanto, o relatório diz que os fundos europeus têm enorme
potencial transformador, se forem bem aplicados. Com efeito, podem apoiar
sistemas de educação inclusivos, reformar o acesso à habitação social e
melhorar a vida das populações mais vulneráveis; ao invés, se forem mal
geridos, arriscam a aumentar desigualdades.
É caso para questionar os gestores dos fundos por que motivo os aplicam
mal. As verbas são insuficientes? A gestão é incompetente? Desviam verbas para
empreendimentos diferentes dos constantes dos respetivos projetos? Arrecadam,
para si mesmos, dinheiros europeus? Não há fiscalização adequada ao desenvolvimento
dos projetos?
Encarar, a sério, a problemática dos direitos humanos fundamentais
é uma chatice, para muita gente. Obriga a considerar todas as pessoas iguais em
dignidade humana, com direito à vida, à vida condigna, à saúde, à educação, ao
trabalho, à habitação, à segurança física, ao trabalho, à proteção (na doença,
no desemprego e na ancianidade), a alguma fatia da propriedade, à cultura, ao exercício
físico e ao lazer. Implica também o combate ao mercantilismo nos bens
essenciais, tal como a produção e a distribuição de riqueza ou o respeito pelos
ecossistemas, não exaurindo a Terra (solo, subsolo e mares) dos seus recursos naturais.
Falar de direitos humanos torna-se fastidioso, para muitas pessoas,
ou se torna politicamente correto e hipócrita, para muitas outras.
A este respeito, lembro-me de um chiste do Público, de 1 de junho, sobre o Dia Mundial da Criança: “Hoje é o
Dia da Criança. E então? Então, é dia para se falar dos direitos das crianças, mas
não de forma exaustiva, que o dia é curto e isso cansa.”
***
Nem só com fundos europeus se faz discriminação. Segundo o
relatório anual de 2024 da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância
(ECRI), aumentou o discurso de ódio transfóbico, na Europa, tendo sido identificadas
quatro áreas críticas, entre os países da UE: discriminação nas forças de
segurança, segregação escolar de crianças ciganas, transfobia e fragilidade dos
organismos de igualdade.
No atinente à discriminação contra pessoas trans, é nas campanhas
eleitorais que ela se torna mais notória, sendo os políticos apontados como
alguns dos principais autores deste tipo de discurso, vindo, a seguir, os meios
de comunicação tradicionais, bem como plataformas digitais que dão espaço à
disseminação de mensagens de ódio contra pessoas trans. E o discurso transfóbico torna-se prevalente,
“quando estão a ser preparadas legislações progressistas sobre os direitos
humanos das pessoas transexuais”, como o reconhecimento legal da identidade de
género.
Um padrão recorrente nas mensagens de ódio identificadas é o apelo
à “proteção das crianças” contra a “ideologia de género”. Segundo a ECRI,
grupos e indivíduos que se afirmam defensores da infância opõem-se a que o tema
da “identidade” seja abordado nas escolas. Além disso, alunos transexuais
enfrentam maior risco de bullying nas
escolas.
Paralelamente, “um elevado nível de segregação escolar das
crianças ciganas continua a ser observado, em vários estados-membros”, lê-se no
documento publicado a 28 de maio. Entre as causas apontadas, estão a segregação
habitacional, as decisões institucionais das escolas e a discriminação por
parte de outros pais.
Ora, segundo o documento, “aprender em contextos segregados
resulta numa educação de menor qualidade para as crianças ciganas, em parte,
devido a currículos reduzidos ou a infraestruturas escolares inadequadas”.
Todavia, a ECRI reconhece que alguns governos adotaram medidas positivas, entre
as quais leis que proíbem a segregação escolar ou que obrigam a uma
distribuição aleatória de alunos pelas turmas.
Outra das preocupações destacadas no relatório é a continuidade de
práticas discriminatórias, por parte das forças policiais, com base em caraterísticas
raciais ou étnicas, que afetam, sobretudo pessoas negras e afrodescendentes,
migrantes, indivíduos com histórico de migração, comunidades ciganas e
itinerantes e muçulmanos. E a ECRI frisa que este tipo de discriminação ocorre,
com frequência, em controlos fronteiriços, tanto em aeroportos como em
fronteiras terrestres. “Estas práticas têm efeitos profundamente negativos na
sociedade, gerando sentimentos de humilhação e de injustiça entre as pessoas
afetadas”, alerta o relatório.
Este já foi assunto abordado em relatórios anteriores. Por
exemplo, em 2021, a ECRI destacava sinais de racismo e de comportamento racista
entre as forças de segurança, sublinhando que “as vítimas de tais práticas
sentem-se muitas vezes insuficientemente protegidas pelas autoridades” e que os
efeitos do racismo policial “não são limitados a pessoas específicas, mas têm
um efeito negativo amplo nas comunidades como um todo, reduzindo a confiança
nas instituições”.
Também é referida, nas principais conclusões do estudo, a situação
dos organismos de igualdade na Europa identificando falhas persistentes na sua
autonomia e capacidade de atuação. “Muitos organismos de igualdade carecem de
recursos humanos e financeiros adequados para cumprirem, eficazmente, as suas
funções”, alerta a ECRI. Em alguns casos, a situação piorou, devido a cortes
orçamentais ou ao acréscimo de funções, sem aumento proporcional de recursos.
Além disso, em vários países, não há garantias suficientes para as
proteger de pressões políticas, “o que pode comprometer seriamente o seu
trabalho”. Contudo, a ECRI salienta, como positiva, a adoção, em maio de
2024, de nova diretiva da UE que estabelece normas obrigatórias para o
funcionamento dos organismos de igualdade, considerando que esta legislação
“cria um novo impulso para reforçar estas instituições a nível nacional e [para]
garantir que cumpram plenamente o seu mandato”.
***
Parente do
racismo é a xenofobia. Ora, este fenómeno, na Europa, vem-se intensificando, ao longo do tempo. O
continente, como os Estados Unidos da América (EUA), é um dos locais do Mundo
que mais imigrantes recebem, e conta com elevada migração interna, graças à
livre circulação de pessoas que atinge a maior parte dos países-membros da UE.
Com isso, a xenofobia, que é a aversão, o preconceito ou a intolerância para
com grupos estrangeiros, aumenta a cada dia.
O aumento das
migrações internacionais está, geralmente, ligado a fatores de repulsão e de atração.
Os primeiros contribuem para a saída rápida do migrante, por motivos económicos,
por falta de recursos naturais, por crises humanitárias ou por ocorrência de
guerras ou de guerrilhas; já os fatores de atração relacionam-se com as
condições oferecidas pelos lugares de destino, como uma economia estável ou
grande oferta de emprego, melhor qualidade de vida, entre outros elementos.
No caso da
Europa, há a combinação de ambos os fatores. De um lado, a população de países
subdesenvolvidos busca, no “velho continente”, além de emprego, melhores
condições de vida, fugindo da realidade económica dos seus locais de origem.
Com isso, há grande quantidade de estrangeiros a viver na Europa, entre
migrantes legais e ilegais.
Assim,
aumenta-se a intolerância para com os grupos estrangeiros, motivada pelas
diferenças culturais e sociais, com inúmeros casos de intolerância social, racial
e religiosa. Ao mesmo tempo, a população europeia considera-se ameaçada pelos
estrangeiros, com o receio de que diminuam a oferta de emprego e atrapalhem os
rumos da economia, enviando dinheiro para o exterior (geralmente, para os seus
lugares de origem) e diminuindo a circulação económica interna. Tais medos
intensificaram-se durante a recente crise económica e financeira.
Outra
questão – e grave – que se relaciona com o aumento da xenofobia, na Europa, é o
crescimento de grupos partidários e políticos de extrema-direita, que alimentam
uma linha ideológica baseada no antissemitismo, no ultraconservadorismo e em outros
ideais fascistas, como a “pureza” dos povos europeus. A emergência de posições
desse tipo intensificou, inclusive, medidas de Estado envolvendo atitudes
xenófobas na Europa, como a construção do Muro de Ceuta pelos espanhóis, na
África, para separar a cidade de Ceuta do território marroquino, dificultando
assim a entrada de migrantes.
Outro
exemplo de xenofobia praticada pelos políticos espanhóis refere-se às várias
perseguições e tentativas de expulsão de povos ciganos, principalmente, oriundos
da Roménia, por parte dos governos da França e da Itália, totalizando milhares
de extraditados de maneira voluntária (através do oferecimento de dinheiro para
que deixem o país) ou involuntária (à força).
Apesar de a
UE ter criado, já em 1997, o Observatório Europeu do Racismo e da Xenofobia, há
muito por fazer, no atinente à intolerância social e política para com
estrangeiros – desafio enfrentado por outros territórios, como os EUA e,
recentemente, por países emergentes, que se tornam novos vetores para a chegada
de migrantes em demanda de melhores condições vida.
***
A pluriconvivência
é desafio problemático, mas imperativo, para todos, em nome da dignidade humana
e da paz mundial.
2025.06.01 – Louro de Carvalho
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