sábado, 28 de junho de 2025

A ternura e a misericórdia de Deus por todas as pessoas, sem exceção

 
Na Solenidade do Sagrado Coração de Jesus, neste ano, celebrada a 27 de junho, a liturgia convidava-nos a contemplar e a celebrar a bondade, a ternura e a misericórdia de Deus por todos os homens, sem exceção. Para tanto, os textos recorrem a uma imagem importada do antigo nomadismo de Israel: Deus é o Pastor bom” que, no seu amor infinito e dedicação total, cuida do seu rebanho, o seu povo.
Na primeira leitura (Ez 34,11-16), Deus anuncia aos exilados na Babilónia que Ele próprio vai tomar conta do seu rebanho. Os habitantes de Judá foram, durante muito tempo, conduzidos por pastores maus, que se aproveitaram das ovelhas e as levaram por vias erradas. Mas, agora, o Pastor bom reunirá as ovelhas dispersas, guiá-las-á de volta à terra da liberdade, dar-lhes-á pastagens excelentes e cuidará amorosamente de todas. Enfim belo hino ao amor de Deus!
Ezequiel, convocado por Deus para animar os exilados de Judá, anuncia à comunidade desiludida, sem esperança e sem futuro, que, doravante, será o próprio Deus a pastoreá-la.
O primeiro gesto do Pastor bom será ir à procura das suas ovelhas perdidas (“Eu próprio irei em busca das minhas ovelhas e hei de encontrá-las”). É Ele que toma a iniciativa. O Bom Pastor não ficará comodamente instalado, à espera que as ovelhas decidam procurá-Lo para Lhe pedirem perdão pelas opções erradas; irá, Ele próprio, ao encontro delas. Quem ama a sério dispõe-se a dar o primeiro passo. E Deus ama o seu Povo.
Depois, o Bom Pastor reunirá as ovelhas tresmalhadas, que andam por aí, sem rumo e sem objetivo. Não as deixará sós, indefesas ante os perigos e as ameaças. Juntá-las-á à sua volta, reuni-las-á num rebanho, colocá-las-á sob a sua proteção. O povo que, abandonado pelos líderes, se dispersou e perdeu o norte, sob a direção de Deus recuperará a sua identidade, voltará a ter objetivos e saberá para onde caminhar.
A seguir, o Pastor levará as ovelhas de regresso a casa, à terra boa onde há pastagens abundantes. Será o novo Êxodo, que trará o rebanho da terra da escravidão para a terra da liberdade. Já aconteceu quando Deus guiou o Povo do Egito para a Terra Prometida; e acontecerá, de novo. Guiado pelo Pastor, o rebanho reencontrará a liberdade e a vida em abundância.
Porém, com a chegada dos exilados à terra da liberdade, não ficará concluída a ação de Deus em favor do seu Povo. Mesmo depois de as “ovelhas” terem reencontrado a sua terra e as suas raízes, o “Pastor” (Deus) continuará a dispensar-lhes os seus cuidados. As imagens utilizadas sublinham a abundância de vida (“Eu as apascentarei em boas pastagens”; “terão suas devesas nos altos montes”; “encontrarão pasto suculento”) e a tranquilidade e a paz (“descansarão em férteis devesas”; “eu os farei repousar”) que Deus proporcionará ao seu Povo. E a ação salvadora e amorosa de Deus concretizar-se-á, ainda, na solicitude com que Ele tratará as ovelhas perdidas, desgarradas, feridas, enfermas. Aí manifestar-se-á a justiça de Deus que é misericórdia, amor, solicitude, ternura, para com os mais pobres, marginalizados e débeis.
Estamos diante de um dos pontos mais altos da revelação de Deus aos homens.
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No Evangelho (Lc 15,3-7),  Jesus, acusado pelos fariseus e pelos doutores da Lei de se dar com gente pouco recomendável, conta a história do pastor que deixa tudo o que tem em mãos para ir à procura de uma ovelha tresmalhada. Segundo Jesus, esse pastor é Deus, que ama cada um dos seus filhos com amor absoluto e não deixa nenhum para trás. E o coração de Deus enche-se de alegria, quando encontra a sua ovelha perdida e a reintegra no seu rebanho. É a “parábola da ovelha tresmalhada”. Contudo, não é a ovelha o protagonista da história, mas o pastor. A atenção dos que escutam esta história deve dirigir-se para o pastor.
Na Palestina, os pastores não estavam muito bem vistos, porque levavam consigo, no corpo e nas vestes, o cheiro das ovelhas e porque eram considerados gente violenta, dura e má, que vivia afastada da comunidade, não frequentava a sinagoga, não cumpria a Lei, deixava que os rebanhos destruíssem as colheitas, entrava em conflito com qualquer quem quer que se lhe atravessasse no caminho. Contudo, aqui, o pastor é, simplesmente, um pastor que gosta de cada uma das suas ovelhas, pelo que não se conforma com a perda de nenhuma. Quando percebe que uma das ovelhas do rebanho se perdeu, deixa as outras noventa e nove e vai à procura da perdida. A decisão de deixar as outras ovelhas no deserto (não se diz que as deixou no curral, ou que confiou a outro o cuidado do rebanho), para ir procurar só uma, parece ilógica e irrefletida, mas expressa a importância que o pastor dá àquela ovelha. Depois de caminhar pelo deserto, sob o sol inclemente, enfrentando perigos e canseiras, o pastor encontrou-a. Não a censurou, não lhe bateu, não a trouxe arrastada pela corda para que não fugisse, outra vez. Cheio de alegria, pô-la aos ombros e trouxe-a, como se não lhe pesasse. Pôr a ovelha aos ombros é gesto de solicitude, de ternura. A pobre ovelha, depois do tempo que passou sozinha, em ambiente hostil, está cansada e assustada; precisa de carinho e de recuperar forças. E pô-la aos ombros é gesto de amor.
Por fim, o pastor chega a casa com a ovelha aos ombros. Está felicíssimo. “Chama os amigos e vizinhos e diz-lhes: ‘Alegrai-vos comigo, porque encontrei a minha ovelha perdida’.” O facto de perder e de reencontrar a ovelha é banal, mas, para o pastor, é “a sua” ovelha. Não a pode perder. O reencontro encheu-o de alegria; e, na sua ótica, a alegria, que é missionária, deve partilhar-se.
Aqui chegados, o cenário muda. Somos transportados da aldeia onde o pastor está a celebrar com os amigos e vizinhos, para o céu, o espaço de Deus. Segundo Jesus, “haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se converta, do que por noventa e nove justos, que não precisam de conversão”. O coração de Deus enche-se de alegria, quando reencontra e traz para casa um dos seus filhos “perdidos”. Era aqui que Jesus queria chegar. Era acusado de se dar com gente reprovável, apontada pela sociedade, como os cobradores de impostos e as mulheres de má vida. De facto, convivia com gente duvidosa, com pessoas que os “justos” preferiam evitar, com pessoas anatematizadas e marginalizadas, devido a comportamentos escandalosos. Não foram os discípulos a inventar para Jesus o injurioso apelativo de “comilão e bêbedo, amigo de publicanos e de pecadores”.
Jesus dava-se com estas pessoas, porque Ele conhecia o coração do Pai. O coração de Deus é um coração de Pai e de Mãe, cheio de amor pelos seus filhos. E Jesus veio, enviado pelo Pai, para o dizer aos homens. A solicitude de Jesus para com os pecadores mostra-lhes que Deus não os rejeita, que os convida a fazerem parte da sua família. O desígnio de salvação não é condomínio fechado, com seguranças armados ao portão, que têm por missão evitar a entrada de indesejáveis, mas a oferta universal, onde todos os homens e mulheres têm lugar, porque todos – maus e bons – são filhos queridos e amados do Pai/Deus.
A parábola pretende dar conta desta realidade. A atitude desproporcionada de “deixar as noventa e nove ovelhas no deserto, para ir ao encontro da que estava perdida” vinca a imensa preocupação de Deus por cada homem que se afasta da comunidade da salvação e o singular amor de Deus por todos os que precisam de libertação. Pôr a ovelha aos ombros significa o cuidado e a solicitude de Deus, que trata, com amor e com cuidados de Pai, os filhos feridos e magoados; a alegria desmesurada do pastor significa a felicidade imensa de Deus, sempre que o homem reentra no caminho da vida plena. Jesus anuncia, aqui, a salvação de Deus oferecida aos pecadores, não porque estes se tornaram dignos dela, mediante as suas obras, mas porque Deus Se solidariza com os excluídos e lhes oferece a salvação. Cumpre-se a profecia de Ezequiel: Deus vai assumir-Se, através de Jesus, como o “Bom Pastor”, que cuidará com amor de todas as ovelhas e, em especial, das desencaminhadas e perdidas.
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Na segunda leitura (Rm 5,5b-11), Paulo lembra aos crentes que são filhos queridos e amados de Deus. Foi por nos amar tanto que Deus noa enviou o seu Filho Unigénito. Enfrentando a injustiça, a mentira, a violência e, mesmo, a morte, Jesus mostrou-nos o caminho que conduz à vida verdadeira. Salvos por Jesus, passamos a integrar a família de Deus.
A salvação que Deus oferece a todos os seus filhos e filhas, sem distinção, tem consequências para a vida do crente. Em primeiro lugar, é fonte de paz. Garante que Deus não nos condena pelas nossas faltas, mas assegura-nos o acesso a Deus e aos bens que Deus nos oferece. Agraciados e renovados por esses dons, estamos em paz com Deus.
A salvação é fonte de esperança. Com o coração cheio de esperança, temos força para enfrentar e superar as adversidades que a vida nos colocar à frente, mas, sobretudo, tornamo-nos capazes de atravessar a vida presente de olhos nas realidades futuras. Isso não significa que nos alheemos do Mundo e dos problemas da vida, mas que enfrentamos a vida e todas as suas vicissitudes com a certeza de que as forças da morte nunca terão a última palavra.
Por último, a salvação é fonte de confiança ilimitada em Deus. Na base dessa confiança está a certeza de que Deus nos ama com amor inigualável. Para chegar a esta certeza, basta-nos olhar para o que Deus nos ofereceu por Jesus: sendo nós pecadores, Deus enviou o seu Filho ao Mundo, para nos dar vida. Paulo convida-nos a reparar neste facto admirável: Deus não passou a amar-nos, quando nos convertemos, mas amou-nos desde sempre e, por isso, enviou o Filho ao nosso encontro, “quando éramos ainda pecadores”. Deus não se preocupou em contabilizar os nossos pobres méritos ou em tomar nota da nossa fragilidade e do nosso pecado. Deus interessou-se em enviar-nos Jesus para nos conduzir à vida, mesmo que isso significasse, para o Filho de Deus, o suplício da cruz. Para o apóstolo, a conclusão é óbvia: se Deus nos amou assim, quando ainda éramos pecadores, quanto mais nos amará, agora, depois que fomos justificados pelo sangue do seu Filho e nos tornamos seus filhos!
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Na Solenidade do Sagrado Coração de Jesus, Dia Mundial de Oração pela Santificação Sacerdotal, o Papa Leão, dizendo celebrar, com alegria, a Eucaristia no Jubileu dos Sacerdotes, dirigiu-se, antes de mais, aos irmãos sacerdotes, que vieram ao túmulo de Pedro para atravessarem a Porta Santa e para mergulharem, de novo, as “vestes batismais e sacerdotais no Coração do Salvador” e sublinhou que, para alguns dos presentes, “este gesto realiza-se num dia único da sua vida: o da Ordenação”.
Mais referiu que falar do Coração de Cristo “é falar de todo o mistério da encarnação, morte e ressurreição do Senhor, confiado a nós, de modo especial, para que o tornemos presente no Mundo”, convindo refletir sobre como contribuir para a obra de salvação.
Frisando que Ezequiel fala de Deus como “pastor que passa pelo meio do seu rebanho, contando as suas ovelhas uma a uma: vai à procura das perdidas, cura as feridas, ampara as fracas e doentes”, o Santo Padre releva que, em tempo de “grandes e terríveis conflitos”, o amor do Senhor, “pelo qual somos chamados a deixar-nos abraçar e plasmar”, é universal, e que, a seus olhos – e também aos nossos –, “não há lugar para divisões e ódios de qualquer género”.
Depois, evocando o apóstolo Paulo, segundo o qual Deus nos reconciliou, “quando ainda éramos fracos” e “pecadores” – pelo que nos convida a “abandonar-nos à ação transformadora do Espírito que habita em nós, num caminho quotidiano de conversão” –, Leão XIV sustenta que a nossa esperança se baseia “na certeza de que o Senhor não nos abandona, mas acompanha-nos sempre”. Porém, adverte que somos chamados “a colaborar com Ele, primeiramente, colocando a Eucaristia no centro da nossa existência, ‘fonte e centro de toda a vida cristã’; depois, ‘pela frutuosa receção dos sacramentos, especialmente, pela frequente receção do sacramento da penitência’; e, finalmente, através da oração, da meditação da Palavra e do exercício da caridade, conformando cada vez mais o nosso coração com o do Pai das misericórdias”.
A seguir, enfatizou a alegria de Deus – de que fala o Evangelho – “e de todo o pastor que ama segundo o seu Coração”, pelo regresso ao redil de uma só das ovelhas. E vê, aqui, “um convite a viver a caridade pastoral com a mesma magnanimidade do Pai, cultivando, em nós, o seu desejo: que ninguém se perca, mas que todos, também através de nós, cheguem ao conhecimento de Cristo e n’Ele tenham a vida eterna”. Ou seja, “um convite a tornar-nos intimamente unidos a Jesus, semente de concórdia no meio dos irmãos, carregando sobre os nossos ombros quem se perdeu, perdoando quem errou, indo à procura de quem se afastou ou ficou excluído, cuidando de quem sofre no corpo e no espírito, numa grande troca de amor que, brotando do lado trespassado do Crucificado, envolve todos os homens e preenche o Mundo”. E, citando o Papa Francisco, proclamou: “Da ferida do lado de Cristo continua a correr aquele rio que nunca se esgota, que não passa, que se oferece sempre de novo a quem quer amar. Só o seu amor tornará possível uma nova Humanidade.”
Como não podia deixar de ser, em Jubileu dos Sacerdotes e em dia de ordenações de presbíteros, falou do ministério sacerdotal, enquanto “ministério de santificação e de reconciliação para a unidade do Corpo de Cristo”. Assim, recordou que o Concílio Vaticano II pede aos presbíteros que se esforcem por “levar todos à unidade [...] com caridade, harmonizando as diferenças para que ninguém se sinta estranho”, e que lhes recomenda “a união com o bispo e no presbitério”, pois, “quanto mais houver unidade entre nós, tanto mais saberemos também conduzir os outros ao redil do Bom Pastor, para vivermos como irmãos na única casa do Pai”.
Como filho de Santo Agostinho, o Sumo Pontífice relevou que, em sermão proferido por ocasião do aniversário da sua ordenação, o santo bispo falara do “feliz fruto de comunhão que une os fiéis, os presbíteros e os bispos”, com raiz na certeza de que fomos “redimidos e salvos pela mesma graça e misericórdia”, pelo que Agostinho vincou: “Para vós sou bispo, convosco sou cristão.”
Lembrou que, na Missa solene do início do seu pontificado, expressara, ante o Povo de Deus o desejo de “uma Igreja unida, sinal de unidade e comunhão, que se torne fermento para um Mundo reconciliado”. E voltou, desta feita, a partilhá-lo com todos, exortando: “Reconciliados, unidos e transformados pelo amor que jorra, copiosamente, do Coração de Cristo, caminhemos juntos nas suas pegadas, humildes e decididos, firmes na fé e abertos a todos na caridade, levemos ao Mundo a paz do Ressuscitado, com aquela liberdade que nasce da consciência de nos sabermos amados, escolhidos e enviados pelo Pai.”
Em especial aos ordinandos, que se iriam tornar sacerdotes “pela imposição das mãos do Bispo e com uma renovada efusão do Espírito Santo”, disse “algumas coisas simples”, mas “importantes” para o futuro deles e das almas que lhes serão confiadas, ou seja, que amem a Deus e aos irmãos, que sejam “generosos, fervorosos na celebração dos Sacramentos, na oração, especialmente, na Adoração, e no ministério”; que sejam próximos do rebanho, doando o tempo e as energias “por todos”, sem se pouparem, sem fazerem distinções, “como nos ensinam o lado trespassado do Crucificado e o exemplo dos santos”. E pediu-lhes que se lembrem de que “a Igreja, na sua História milenar, teve – e as tem, ainda hoje – figuras maravilhosas de santidade sacerdotal” e que, “a partir das comunidades das origens, ela gerou e conheceu, entre os seus sacerdotes, mártires, apóstolos incansáveis, missionários e campeões da caridade”. Por isso, há que fazer “desta riqueza um tesouro”, interessando-se “pelas suas histórias”, estudando “as suas vidas e as suas obras”, imitando “as suas virtudes”, deixando-se “inflamar pelo seu zelo”, e invocando “a sua intercessão muitas vezes, com insistência”.
E como o Mundo, “frequentemente, propõe modelos de sucesso e de prestígio duvidosos e inconsistentes”, é forçoso que os presbíteros não se deixem “fascinar por eles”, mas que olhem “para o exemplo sólido e [para] os frutos do apostolado, muitas vezes escondido e humilde, daqueles que, na sua vida, serviram ao Senhor e aos irmãos com fé e dedicação”, e continuando a sua memória na fidelidade.
Por fim, Leão exortou à confiança na “proteção materna da Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe dos sacerdotes e Mãe da esperança” e rogou que “Ela acompanhe e sustente os nossos passos, para que cada dia configuremos mais o nosso coração com o de Cristo, supremo e eterno Pastor”.
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“O Senhor é meu pastor: nada me faltará.
“O Senhor é meu pastor: nada me falta. / Leva-me a descansar em verdes prados, / conduz-me às águas refrescantes / e reconforta a minha alma.
“Ele me guia por sendas direitas / por amor do seu nome. / Ainda que tenha de andar por vales tenebrosos, / não temerei nenhum mal, / porque Vós estais comigo: + o vosso cajado e o vosso báculo me enchem de confiança.
“Para mim preparais a mesa / à vista dos meus adversários; / com óleo me perfumais a cabeça / e meu cálice transborda.
“A bondade e a graça hão de acompanhar-me / todos os dias da minha vida / e habitarei na casa do Senhor / para todo o sempre.”

2025.06.28 – Louro de Carvalho


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