sábado, 28 de junho de 2025

Foi celebrada missa hispano-moçárabe na basílica de São Pedro


A 26 de junho, foi celebrada, pelo arcebispo de Toledo e primaz da Espanha, Francisco Cerro Chaves, no Altar da Cátedra da basílica de São Pedro, no Vaticano, a missa segundo o antigo rito hispano-moçárabe, caraterística dos cristãos que viviam sob o domínio islâmico, na Península Ibérica, e das poucas liturgias ocidentais não-romanas que sobreviveram ao passar do tempo.

A missa mozárabe, inserida peregrinação de 200 pessoas da arquidiocese de Toledo a Roma, para o Jubileu da Esperança 2025, teve a presença de vários membros da Cúria Romana: entre eles, o bispo Alejandro Arellano Cedillo, decano da Rota Romana; o bispo Aurelio García Macías, subsecretário do Dicastério para o Culto Divino; o bispo auxiliar de Toledo, Francisco César García Magán, secretário-geral da Conferência Episcopal Espanhola; e o leigo espanhol Massimino Caballero Ledo, prefeito da Secretaria de Economia da Santa Sé.

Na homilia, o arcebispo defendeu a comunhão com Cristo, com a Igreja e com o sucessor de Pedro, enfatizando que essas três realidades “não são negociáveis”. “Não se pode brincar com a comunhão com Cristo, não se pode brincar com a comunhão com a Igreja e não se pode brincar com a comunhão com Pedro”, disse Cerro Chaves.

Inspirado pelo Evangelho, o arcebispo de Toledo centrou o discurso homilético na pergunta de Jesus: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (Lc 9,20) – “dirigida a cada um de nós, hoje”, sendo que a nossa resposta muda tudo: “a História muda, a vossa paisagem muda, o vosso coração muda”. “É a pergunta mais importante que o Evangelho faz”, disse também o arcebispo de Toledo. “E Pedro responde: Tu és o Filho do Deus vivo’.”

Citando Bento XVI, disse que o cristianismo nasce de um encontro pessoal com Cristo e que ser cristão implica viver em comunhão com a Igreja e com o Papa. “Santo Inácio de Antioquia di-lo, claramente: nada sem o bispo, nada sem Pedro”, vincou o arcebispo toledano, enfatizando a missão do Papa como guardião da fé e mensageiro do Evangelho ao Mundo.

“A tarefa do Papa é dizer a toda a Humanidade: Tu és o Filho do Deus vivo. […] Por isso, ele vai às periferias, às dioceses, às aldeias, para proclamar o amor de Cristo”, frisou o celebrante.

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Declarações de um especialista sobre o rito hispano-moçárabe

Com os ritos romano, galicano, ambrosiano e bracarense, o rito hispano-moçárabe faz parte do conjunto de ritos desenvolvidos em torno de sés metropolitanas do Ocidente. “Esse rito faz parte das liturgias ocidentais que se formaram em torno de uma Sé: a liturgia romana (Roma), a liturgia galicana (Lyon, na França), a liturgia ambrosiana (Milão, na Itália) e a liturgia bracarense (Braga, em Portugal)”, diz o padre Salvador Aguilera, consultor do Dicastério para as Igrejas Orientais, a quem Chaves Cerró agradeceu pelo seu envolvimento em possibilitar a celebração, na basílica de São Pedro, do rito nascido no coração da Igreja visigótica e ainda vivo em Toledo.

Segundo Aguilera, doutor em Liturgia, esse modo de celebrar a missa atingiu o auge no período visigótico, especialmente, depois da conversão oficial do reino ao catolicismo, no III Concílio de Toledo, em 589. No entanto, a sua História não foi isenta de momentos de perseguição, correndo o risco de desaparecer. Depois da invasão muçulmana à Península Ibérica, em 711, muitos livros litúrgicos e relíquias tiveram de ser transferidos para o Norte da Espanha para serem guardados em segurança. Em 1080, a mando do papa São Gregório VII, foi convocado o Concílio de Burgos, que aboliu o rito. Porém, alguns anos depois, em 1085, com a reconquista de Toledo, pelo rei Afonso VI, os moçárabes obtiveram o privilégio de preservar esta liturgia.

Desde então, a sua preservação tem sido obra de grandes figuras eclesiásticas. “Três nomes marcaram a História do rito, desde a sua abolição até aos dias atuais: os cardeais Cisneros, Lorenzana e González”, diz o padre Aguilera. O cardeal Francisco Jiménez de Cisneros, arcebispo de Toledo, de 1495 a 1517, “empreendeu uma reforma que, não só afetou questões materiais, como paróquias e livros litúrgicos, mas também promoveu a formação do clero, garantindo a continuidade de uma liturgia tão antiga”, diz o especialista.

O cardeal Cisneros instituiu a capela moçárabe de Corpus Christi, na catedral de Toledo e encomendou a publicação do Missale mixtum secundum regulam Beati Isidori, em 1500, e do Breviarium secundum regulam Beati Isidori, em 1502. Séculos depois, o cardeal Lorenzana publicou outras edições do breviário, em 1775, e do missal, em 1804, obras fundamentais para a preservação do rito.

No século XX, o cardeal Marcelo González Martín reacendeu o movimento reformista, após o Concílio Vaticano II. Seguindo as instruções da Constituição Sacrosanctum Concilium, sobre a reforma dos Ritos, nomeou uma comissão para produzir a edição latina do Missale Hispano-Mozarabicum em dois volumes e do Liber commicus (Lecionário). E, 30 anos depois da reforma conciliar, em 1992, foi apresentado o primeiro volume do Novo Missal Hispano-Moçárabe ao Papa São João Paulo II, que celebrou a missa, em seguida. O dia 28 de maio de 1992, solenidade da Ascensão do Senhor, marcou a primeira vez que um Papa celebrou a missa conforme este rito. Segundo o padre Aguilera, na ocasião, o Papa polaco expressou a sua “profunda satisfação pelo meritório trabalho realizado na revisão do rito hispano-moçárabe, cumprindo, assim, os requisitos da constituição Sacrosanctum Concilium”, o que deu à Igreja da Espanha um fruto precioso, que representa eminente serviço à cultura, na medida em que representa a recuperação das fórmulas com as quais os seus antepassados ​​expressaram sua fé.

Outras ocasiões em que este rito foi celebrado na basílica de São Pedro foram em 2000, por ocasião do Grande Jubileu, na missa celebrada pelo então arcebispo de Toledo, cardeal Francisco Álvarez Martínez; e em 2015, no Jubileu da Misericórdia, noutra missa celebrada pelo então arcebispo de Toledo e atual arcebispo emérito, Braulio Rodríguez Plaza.

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Síntese da génese e do percurso histórico do rito hispano-moçárabe

O antigo rito hispânico fazia parte do conjunto de liturgias latinas que se estabeleceram no Ocidente, entre os séculos V e VII. Nem todas as liturgias ocidentais lograram pleno desenvolvimento. Nada sobreviveu das liturgias de Cartago e de Aquileia, que não passaram da fase inicial. Muito pouco sobreviveu da liturgia beneventana. Alguns livros do rito celta foram compilados na Irlanda, mas o seu conteúdo demonstra a produção limitada do que terá sido o seu período de criatividade. O rito milanês, com a sua produção musical, exerceu influência decisiva na composição dos cantos do rito romano e tornou-se o modelo supremo no Ocidente; a sua escola eucológica desfrutou de um período de esplendor, mas circunstâncias históricas impediram o seu livre desenvolvimento contínuo, até à compilação definitiva dos seus livros litúrgicos. Algo similar aconteceu com a liturgia galicana, que teve as suas origens na região da Provença e foi descartada, quando o Reino Franco-Germânico adotou o rito romano.

As únicas duas liturgias ocidentais que se desenvolveram amplamente, com recursos abundantes, sem limites de tempo e sem obstáculos externos foram os ritos romano e hispânico.

Três grandes sedes metropolitanas estiveram envolvidas na formação do rito hispânico: Tarragona, Sevilha e Toledo. A maioria dos autores de textos e de cantos permaneceu anónima. Mas a tradição preservou alguns nomes: Justo de Urgell (na 1.ª metade do século VI), São Leandro de Sevilha (c. 540-600), Santo Isidoro de Sevilha (c. 560-636), Pedro de Lérida (em meados do século VII), Conâncio de Palência (em meados do século VII), Santo Eugénio II de Toledo (+ 657), Santo Ildefonso de Toledo (c. 610-667), São Julião de Toledo (c. 642-690).

Vários fatores contribuíram para o seu desenvolvimento. Em primeiro lugar, uma sólida base cultural, que já havia, na época da dominação romana, dado nomes ilustres à literatura latina e que se manteve nas áreas mais latinizadas da Península, apesar das sucessivas invasões e das guerras entre invasores.

Graças à relativa paz religiosa obtida com a conversão oficial do Reino Visigodo ao catolicismo (III Concílio de Toledo, em 589), floresceu, na Espanha, um verdadeiro humanismo latino, fomentado pela corte visigótica, representada pelos santos Isidoro, Bráulio, Eugénio e Ildefonso. Os textos eucológios constituem o património literário mais importante dos séculos VI e VII. E os autores hispânicos que dedicaram a sua arte literária ou musical à composição de peças litúrgicas sabiam, por experiência, o que a liturgia, como instrumento catequético, significa para a vida da Igreja. Seguiram o exemplo dos seus ​​predecessores, que agiram, a princípio, guiados por intuição profética. O fenómeno da criatividade, na Espanha, ocorreu mais tarde e durou muito mais tempo do que nas outras igrejas da região mediterrânea.

Os Padres Hispânicos, observando o que acontecia noutras igrejas, aprenderam que, para incutir a doutrina e a espiritualidade cristãs na mente dos fiéis, os textos litúrgicos eram mais eficazes do que tratados, sermões ou homilias. Na oração, a Teologia não era assunto para discussão posterior, mas iluminação da fé, que o cristão, imerso na presença de Deus, assimilava pacificamente. Por isso, a eucologia, a hinologia e as centonizações bíblicas de cânticos sacros eram os géneros literários preferidos na Espanha, naquela época. E a preocupação das igrejas, na Espanha, em realizar sabiamente, da melhor forma possível, a celebração da Eucaristia e do Ofício Divino, a organização do ano litúrgico e a administração dos sacramentos e sacramentais também se manifesta na atenção que os concílios dedicaram às questões litúrgicas. Com efeito, as disposições relativas à liturgia emanam dos concílios da província de Tarragona, na 1.ª metade do século VI, dos Concílios de Braga e, a partir do IV Concílio de Toledo (em 633), que dedicou 17 dos seus cânones à liturgia, vários dos Concílios de Toledo do século VII voltariam a abordar a liturgia. Portanto, na formação do rito, convergem a obra literária e doutrinária dos Padres das Igrejas Hispânicas e a legislação dos concílios. Porém, o valor documental das disposições conciliares nem sempre é de natureza estritamente disciplinar.

Santo Isidoro de Sevilha, ainda jovem, escreveu o tratado De Ecclesiasticis Officiis, considerado o primeiro manual de liturgia da História. Nele, já mostrava o seu conhecimento dos usos litúrgicos de outras Igrejas ocidentais. Ele próprio, em plena maturidade da sua erudição e experiência pastoral, presidiu ao IV Concílio de Toledo e redigiu, pessoalmente, a sua ata. Os cânones relativos à liturgia não eram simples normas de observância, mas cada um continha uma ilustração adequada para a compreensão das razões históricas ou doutrinárias do que o concílio ordenou. E o X Concílio de Toledo (em 656) instituiu a festa de Santa Maria a 18 de dezembro.

Desta vez, o cânone 1 foi redigido por Santo Ildefonso, que desempenhou papel decisivo naquele concílio. As razões nele expostas são de extremo interesse para a História e para a Teologia do ano litúrgico. Nas igrejas hispânicas, que haviam adotado formulários de outras igrejas antes de proceder à constituição de uma liturgia indígena, continuaram a ser observados sinais de evolução noutras igrejas locais. Mesmo no auge da intensidade criativa, o contacto com as distantes liturgias do Oriente – do tipo alexandrino, antioqueno ou siro-caldeu – e com as liturgias mais recentes do Sul da Gália, de Milão e de Roma, a liturgia hispânica foi, gradualmente, ganhando terreno, permanecendo sempre ligada à tradição universal.

De uma província para outra, estabeleceu-se intercâmbio das respetivas produções eucológicas e musicais. A uniformidade em matéria litúrgica, invocada, mais de uma vez, pelos concílios, se verdadeiramente alcançada, limitou-se ao âmbito da província eclesiástica. Disseminaram-se listas de perícopas bíblicas, de cantos e de textos eucológicos para a Missa e para o Ofício; e tudo isso se tornou património comum, mas cada igreja metropolitana organizou-o à sua maneira. Isso explica por que, nas fontes que chegaram até nós, se reconhece a existência de duas tradições distintas e por que, em manuscritos da mesma tradição, se verificam divergências composicionais de certa importância. Ora, da necessidade de preparar textos para a celebração, surgiram compilações parciais e provisórias, na forma de libelos; e, a partir delas, foram desenvolvidos os primeiros rascunhos dos livros litúrgicos. Na realidade, a codificação definitiva dos livros não pôde ser considerada, até que fossem registados os primeiros sinais da extinção do período de criatividade, o que aconteceu com a morte de Santo Ildefonso. Porém, a compilação dos livros litúrgicos, ou de grande parte deles, é atribuída a São Julião pelo seu biógrafo. Este foi passo decisivo para uma uniformidade litúrgica efetiva, pelo menos, em duas províncias eclesiásticas: Tarragona e Cartago. A capital da Espanha cartaginesa havia sido estabelecida em Toledo.

Seguiu-se o período moçárabe, com a invasão dos árabes, que, de 711 a 719, ocuparam quase toda a Península Ibérica, o que interrompeu o processo evolutivo do rito hispânico. Alguns clérigos emigraram, levando consigo os livros litúrgicos. Um livro de orações do Ofício, de Tarragona, conserva-se, atualmente, em Verona. Outros enriqueceram as bibliotecas das escolas monásticas, onde florescia o renascimento cultural de Carlos Magno e dos sucessores. Assim, textos de origem hispânica foram incluídos na composição do pontifício romano-germânico. Porém, estabeleceu-se, nas Astúrias, um bastião de resistência à ocupação islâmica. Mal se consolidara essa base para a reconquista, em 790, Afonso, o Casto, decretou que a liturgia palatina, como era celebrada em Toledo, fosse restaurada em Oviedo. Os emigrantes que se refugiaram na Septimania, armados e liderados pelos chefes do Reino dos Francos, libertaram ambos os lados dos Pireneus orientais, em 782. De lá, reconquistaram os condados da Marca Espanhola, que formariam a Catalunha. E foram criados, na área libertada, mosteiros beneditinos, que introduziram o rito romano.

Nos códices litúrgicos do rito romano copiados na Catalunha, no atinente ao ritual, sobreviveram elementos do rito hispânico. Por outro lado, o antigo rito continuou a ser celebrado na Espanha ocupada pelos árabes e nos novos reinos de Leão, de Castela e de Navarra. Grande número de códices e de fragmentos do rito hispânico, copiados nos séculos X e XI, foi preservado nas salas de escrita de Leão, de San Millán de la Cogolla, de San Juan de la Peña, de Santo Domingo de la Calzada e de Santo Domingo de Silos. São manuscritos que testemunham um renascimento musical que teria ocorrido no século X. Teriam sido os principais centros Leão e San Millán. Esse movimento de renovação implicou relativa criatividade, pois não se limitara a transcrever os cantos antigos, mas enriquecera-os com novos versos.

O fenómeno da criatividade estendeu-se ao campo da eucologia. Uma série de missas votivas são atribuídas a Salvo de Albelda (+ 962), que podem ser identificadas com as que compõem a terceira parte do Liber Ordinum. Alguns dos manuscritos do século XI transcritos em Silos preservaram outros textos eucológicos que correspondem, aproximadamente, ao mesmo período.

Legados do Papa Alexandre II impuseram a substituição do antigo rito pelo rito romano, no mosteiro de San Juan de la Peña (1071). Após a implementação do rito romano em Leyre (1076), o Papa São Gregório VII levou o Rei Afonso VI a convocar o Concílio de Burgos (1080), que decretou a abolição do rito “gótico” nos reinos de Castela e Leão. E os que, enquanto estavam na Espanha ocupada pelos árabes, queriam permanecer fiéis à religião dos seus pais e celebrar o culto cristão ou participar nele, tinham de pagar tributo especial às autoridades locais. Eram chamados os moçárabes. E, ao libertar a cidade de Toledo (1085), o Rei Afonso VI concedeu-lhes, em reconhecimento dos seus méritos, o privilégio de continuarem a celebrar o antigo rito hispânico nas seis paróquias que então existiam em Toledo.

O arcebispo Bernardo de Sahagún (1085-1124) tentou suprimir o privilégio, mas as comunidades moçárabes, a que se juntou grande número de emigrantes do Sul da Espanha e do Norte da África, no início do século XIII, defenderam tenazmente o seu direito sagrado.

As escrituras das paróquias de Santas Justa e Rufina e de Santa Eulália continuaram a renovar os livros litúrgicos do antigo rito, nos séculos XII e XIII, até o início do século XIV. E os manuscritos copiados na paróquia de Santas Justa e Rufina distinguem-se dos outros códices do Norte da Península e da escritura de Santa Eulália de Toledo.

A Tradição A, representada pela maioria dos manuscritos, revela uma compilação mais perfeita e elaborada dos livros litúrgicos para a celebração da Missa e do Ofício Divino. Porém, a Tradição B, representada pelos da escritura da paróquia de Santas Justa e Rufina, apresenta inegáveis ​​sinais de arcaísmo e não pode ser considerada versão deformada da outra tradição. As divergências entre as duas tradições não atingem apenas a disposição ou a correspondência dos textos, mas também em detalhes, alguns de importância, da estrutura da Missa e do Ofício. E a maior independência entre elas verifica-se na distribuição das leituras para a Missa.

Dada a sua extensão, a Tradição A não pode ser outra senão a resultante do trabalho de codificação de São Julião de Toledo. Vários indícios nos levam a identificar, na tradição B, a liturgia tal como era celebrada na igreja metropolitana da província da Bética, sede dos Santos Leandro e Isidoro, que os emigrantes do Sul teriam trazido consigo para Toledo e que teriam observado zelosamente na paróquia dedicada aos mártires sevilhanos.

O cardeal Francisco Jiménez de Cisneros, ao tomar posse da sede arquiepiscopal de Toledo, em 1495, reconhecendo o valor religioso e cultural da liturgia moçárabe, alertou para os perigos de extinção que a ameaçavam. E, dadas as dificuldades práticas envolvidas na renovação contínua dos livros litúrgicos e na iniciação de novos padres num rito tão peculiar, quase todas as paróquias moçárabes adotaram o rito romano, mas a paróquia de Santas Justa e Rufina perseverou, de forma mais consistente, na preservação do rito. E, para garantir a continuidade do rito, o cardeal instituiu a Capela Moçárabe, atribuindo-lhe o altar-capela de Corpus Christi, localizado na Catedral, para que o Ofício e a Missa pudessem ser celebrados ali, diariamente, segundo o rito antigo, e confiou a preparação de uma edição impressa do missal e do breviário ao cónego Alfonso Ortiz, que formou uma comissão de capelães moçárabes, sob a direção do pároco de Santas Justa e Rufina. Todos notaram que esta era a mais bem preparada comissão para a leitura e para a interpretação dos códices. Assim, sem ninguém dar conta, tais livros prolongaram a existência da tradição B, e grande parte dos manuscritos utilizados pelos editores do missal e do breviário desapareceu.

Em 1500, apareceu, em Toledo, o Missale mixtum secundum regulam beati Isidori, dictum mozárabes; e, em 1502, o Breviarium secundum regulam beati Isidori. O missal foi reeditado, em Roma, em 1755, com apresentação e notas explicativas do jesuíta Alejandro Lesley. A reedição de Lesley foi reproduzida em Patrologia Latina de Migne, volume LXXXV. Posteriormente, o cardeal Francisco Antonio de Lorenzana, arcebispo de Toledo, publicou, em Roma, em 1804, nova edição corrigida do missal, sob a designação de Missale Gothicum secundum regulam beati Isidori Hispalensis episcopi. O próprio cardeal Lorenzana já havia reeditado o breviário, em Madrid, em 1775, sob o título Breviarium Gothicum, secundum regulam beatissimi Isidori. A Patrologia Latina de Migne, no volume LXXXVI, reproduziu essa edição revista do breviário.

Os primeiros estudos do período moderno, que consideraram o antigo rito hispânico, conheciam apenas as edições do missal e do breviário. O epíteto dictum mozarabes, no título do missal de 1500, levou os pesquisadores a adotarem o nome “moçárabe”, mas o primeiro editor de um manuscrito litúrgico hispânico, J. Bianchini, que publicou o livro de orações festivo preservado em Verona, chamou-o de Gothico-Hispanus. E, considerando o termo “moçárabe” inadequado, outros pesquisadores preferiram designá-lo como “visigótico”, cronologicamente restritivo e completamente inapropriado.

É verdade que o antigo rito hispânico se desenvolveu, em grande parte, no Reino Visigótico, mas nem os meios expressivos utilizados pelos seus autores, nem o conteúdo doutrinário acumulado são de origem visigótica. Porém, o rito hispânico teve a sua raiz na antiga cultura hispano-romana e adaptou uma tradição litúrgica cristã greco-latina ao seu ambiente.

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Em suma

Em contexto social e eclesial hispano-romano, misturado com povos nórdicos, suevos e visigodos, formou-se e desenvolveu-se, no Ocidente, nos séculos VI e VII, a liturgia hispânica – o rito hispânico-moçárabe, (moçárabe, visigótico, isidoriano, toledano, gótico) – com influência de outras liturgias, orientais e ocidentais, mas com personalidade própria. É reflexo da vitalidade da Igreja hispânica. Contou com a colaboração criadora de grandes bispos. E os vários concílios e sínodos (sobretudo os de Toledo e os tarraconenses) recolheram e regularam esta sensibilidade litúrgica, de modo particular, o IV de Toledo, de 633, presidido por Santo Isidoro. A época áurea da liturgia hispânica vai de 589 (III Concílio de Toledo, com a conversão de Recaredo e do reino visigótico) até 711 (invasão dos árabes), abarcando toda a Península e parte da Gália do Sul. Nos séculos de ocupação árabe, este rito, refugiado sobretudo em Toledo e no Norte da Península, continuou florescente também entre os moçárabes (ou muzárabes), cristãos que viviam em território ocupado pelos árabes, mas defendendo a sua fé e o seu culto próprio. No século XI, houve um rápido processo de absorção por parte do rito romano, sob o papa Gregório VII, favorecido, em parte, pela acusação de contágio da heresia adocianista. Em 1085, foi oficialmente suprimida a liturgia hispânica, à exceção de algumas paróquias de Toledo, que a conservaram.

O cardeal Cisneros, para evitar a total extinção do rito, encarregou o cónego Ortiz da preparação de uma edição dos seus livros: no ano de 1500, apareceu impresso o Missale Mixtum; e, dois anos mais tarde, o Breviarium Gothicum. O Missal, reeditado em 1755, preparado por Lesley, encontra-se na Patrologia Latina de Migne, vol. 85; e o Breviário, no vol. 86. Mais tarde, o cardeal Lorenzana, em 1804, cuidou de novas edições, que estiveram em vigor até há pouco.

Entretanto, o cardeal de Toledo, Marcelo Gonzales, por encargo da Conferência Episcopal Espanhola e da Congregação para o Culto Divino, constituiu, em 1982, uma comissão para a revisão da liturgia hispano-moçárabe, dirigida pelo professor J. Pinnel, beneditino de Montserrat. O primeiro fruto do longo trabalho foi a edição, em 1991, do Missale Hispano-Mozarabicum, e, depois, do Liber Commicus. Proprium de tempore, o lecionário do mesmo Missal.

No rito hispano-moçárabe, há duas séries de fontes e, portanto, dupla organização da liturgia. A tradição A abarca quase todos os manuscritos e parece originária de Toledo e de outras regiões do Norte da Península, enquanto a tradição B foi a correspondente a Sevilha, que, ao fugir da invasão árabe, se refugiou em Toledo. E, ao editarem-se, em 1500, os códices, imprimiram-se os da tradição B.

As peculiaridades principais da missa hispano-moçárabe são: entre a celebração da Palavra e da Eucaristia, situa-se um bloco caraterístico, com o ofertório, a intercessão dos dípticos (em forma litânica, que é uma solene confissão de unidade eclesial) e o sinal da Paz; a Oração Eucarística compõe-se de peças próprias do dia (illatio ou prefácio, a post sanctus e a post pridie) entrelaçadas com as fixas (diálogo, Santo, narração, doxologia); s epiclese encontra-se depois da narração; e a preparação para a Comunhão inicia-se com a confissão de fé e conclui-se, imediatamente antes da comunhão, com a bênção ao povo.

O Ofício Divino hispânico é particularmente rico. Havia a organização catedralícia e a monástica. A primeira, para o clero e povo, com as suas duas horas principais, matutina e vespertina, e com mais ênfase nas antífonas e na eucologia do que nos Salmos. A segunda, para os monges, com mais horas, além das duas principais, e com mais importância para a salmodia. Os livros principais eram o Saltério, o Oracional, o Antifonário e o Salmógrafo que formaram, quando se reuniram, o Breviarium Gothicum ou o Liber Horarum. Para os vários sacramentos, o livro oficial é o Liber Ordinum, com certas caraterísticas, como a união entre o Batismo e a Confirmação, uma única imersão batismal, em vez da tripla romana, as etapas do processo penitencial público, que desembocam no rito penitencial comunitário de Sexta-Feira Santa, com o rito da “indulgência”, a riqueza dos gestos simbólicos e textos do matrimónio, etc. E, no ano Litúrgico, é caraterística a Festa de Santa Maria, a 18 de dezembro, a Apparitio Domini ou Epifania, e o I Domingo da Quaresma, em que se celebra a despedida do Aleluia.

Enfim, riqueza cultural e espiritual que só enriquece a diversidade na unidade eclesial.

2025.06.27 – Louro de Carvalho


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