Celebrou-se, a 29 de junho, a Solenidade dos apóstolos
São Pedro e São Paulo, que chegaram a Jesus por vias diferentes. O pescador
ouviu o chamamento de Jesus, nas margens do Mar da Galileia; o rabi judeu, foi
desafiado por Jesus no caminho de Damasco. Ambos apostaram tudo em Jesus e
seguiram-No até ao martírio (foram mortos em Roma, na perseguição do imperador
Nero). Pedro e Paulo, cada um a seu modo, são duas grandes referências para os
cristãos e desafiam-nos a seguir o seu exemplo de fidelidade a Jesus e ao
Evangelho.
No livro dos
Atos dos Apóstolos (At 10,9-48), é
narrada a ida de Pedro à casa de Cornélio, um centurião romano que tivera uma
visão onde um anjo o instruía a enviar mensageiros para procurar por Pedro, em
Jope. Ao mesmo tempo, Pedro teve uma visão que o preparou para receber os
mensageiros e, posteriormente, visitar Cornélio, em Cesareia.
No dia
seguinte, Pedro e alguns irmãos de Jope foram com os mensageiros para Cesareia,
onde Cornélio os esperava com os parentes e amigos. Quando Pedro chegou,
Cornélio recebeu-o com respeito, ajoelhando-se-lhe aos pés, mas Pedro levantou-o,
dizendo que era só um homem. Pedro então entrou na casa de Cornélio e,
durante a conversa, explicou que Deus lhe havia mostrado que não deveria considerar
ninguém impuro ou imundo e que estava ali para ouvir o que Cornélio tinha a
dizer. Cornélio, professando a fé em Cristo pediu o batismo, para si e para a
sua família, no que foi seguido por muitos dos não judeus (pagãos).
Este é um
momento importante, pois marca a abertura do Evangelho aos gentios, ou seja, às
pessoas não pertencentes ao povo judeu, aliás, na linha do que desejou Cristo,
na obediência à vontade do Pai, cujo desígnio é a salvação de todos. E Pedro
é o instrumento pioneiro da universalidade da salvação.
Paulo de
Tarso, convertido na estrada de Damasco, iniciou o seu apostolado fora do meio estritamente
judaico, preferencialmente, junto dos pagãos, mas, a seu tempo, colocou-se em ligação
com Pedro; e, quando foi declarado apóstolo dos gentios, foi-lhe pedido que não
esquecesse os pobres de Jerusalém, parâmetro que sempre observou.
***
A primeira
leitura da missa da Solenidade (At 12,1-11) mostra como Deus corrobora o testemunho dos discípulos e os
trata bem, enquanto o Mundo os condena. Após a morte, ressurreição e exaltação
de Jesus, os discípulos são os arautos do plano de salvação que Deus oferece
aos homens pelo seu Filho. E o Mundo, que rejeitou Jesus e o crucificou numa
colina fora das muralhas de Jerusalém há de receber o testemunho dos
discípulos, na dialética da aceitação-rejeição.
Já em At
3,1-10 (primeira leitura da
missa da Vigília), vemos que Pedro, acompanhando de João, quando subiam ao Templo,
a um coxo de nascença que lhe pediu esmola respondeu: “Não tenho prata nem ouro,
mas tudo o que tenho to dou: em nome de Jesus de Nazaré, levanta-te e anda!” O
coxo ficou são e todos os circunstante ficaram maravilhados. Jesus prometera
fazer prodígios para robustecer a pregação da Palavra.
Aqui, depois de contar, de passagem, a morte de Tiago,
o autor dos Atos dos Apóstolos refere
que Pedro foi preso por ordem de Herodes Agripa I, cujo plano seria condenar
Pedro à morte, assegurando, assim, o aplauso e a admiração dos líderes judaicos.
Todavia, como decorriam as festas pascais, o julgamento foi adiado para data
posterior.
Ora, enquanto Pedro estava na prisão, “a Igreja orava
instantemente a Deus por ele”, pois a comunidade primitiva era uma comunidade
unida e solidária, uma família que se preocupava com a sorte de cada um dos
membros.
Na véspera do julgamento, Pedro escapou da prisão,
durante a noite. Não se sabe o que aconteceu, mas a libertação de Pedro foi
vista pela comunidade como resultado da intervenção de Deus. Lucas fala da
intervenção de um “anjo do Senhor”, que teria tirado Pedro da prisão, sem que
Pedro tivesse papel ativo no processo. Assim, devemos ver, nos maravilhosos pormenores
da narrativa (aparição do anjo, luz que iluminou a cela da cadeia, passagem
pelos guardas sem que nenhum se tivesse apercebido da fuga do prisioneiro, abertura
milagrosa da porta da prisão), uma catequese sobre a solicitude de Deus pelos
apóstolos que enviou ao Mundo a testemunhar a salvação. Esta catequese lucana dirige-se
aos cristãos de todas as épocas, frequentemente incompreendidos e perseguidos,
por causa da sua fidelidade a Jesus. Garante-lhes que não estão sós, ante a
hostilidade do Mundo. Deus acompanha-os em cada passo, dá-lhes a força para
serem testemunhas, cuida deles, livra-os dos perigos, fá-los vencer as ciladas.
Os enviados de Jesus sabem, que “viajam” e enfrentam o
Mundo sob o olhar paterno de Deus.
***
O Evangelho
(Mt
16,13-19) convida os
discípulos a aderirem a Jesus e a verem-No como “o Messias, o Filho de Deus
vivo”. Desta adesão, nasce a Igreja, comunidade dos discípulos de Jesus,
convocada e organizada à volta de Pedro, que tem por missão dar testemunho da salvação
que Jesus nos trouxe. À Igreja e, em especial, a Pedro (como seu representante
e chefe terrestre) é confiado o poder das chaves – isto é, de interpretar as
palavras de Jesus, de adaptar os ensinamentos de Jesus aos desafios do Mundo e
de acolher, na comunidade, todos os que adiram à salvação que Jesus oferece. De
facto, a chave deve ser usada para abrir o que está fechado, não para fechar
algo ao acesso dos crentes.
Há, na perícopa em referência um dado de caráter
cristológico, ou seja, a centração em Jesus e na definição da sua identidade; e
um outro de caráter eclesiológico, centrado na Igreja, que Jesus convoca à
volta de Pedro. Porém, a referência é Jesus, não a Igreja em si.
Jesus interroga duplamente os discípulos: acerca do
que as pessoas dizem d’Ele e acerca do que os discípulos pensam.
A opinião dos homens reflete visões diversas. Os contemporâneos
de Jesus vendo-o na continuidade (“João Baptista”, “Elias”, “Jeremias” ou
“algum dos profetas”), não captam a sua condição única, a sua novidade, a sua
originalidade. Reconhecem, apenas, que Ele é um homem convocado por Deus e
enviado com uma missão – como os antigos profetas, não mais. É muito, mas não
basta: revela que os “homens” não entenderam a novidade do Messias, nem a
profundidade do mistério. Já a opinião dos discípulos vai muito além da opinião
comum. Como O acompanharam, escutaram as suas palavras e viram os seus gestos,
veem em Jesus uma dimensão que as outras pessoas não captaram. Pedro, porta-voz
do grupo, resume o sentir da comunidade do Reino na expressão: “Tu és o Cristo,
o Filho de Deus vivo”. Nestes dois títulos resume-se a fé da Igreja de Mateus e
a sua catequese sobre Jesus. Dizer que Jesus é “o Cristo” (Messias) é dizer que
Ele é o libertador que Israel esperava, enviado por Deus para libertar o seu
Povo e para lhe oferecer a salvação definitiva. Contudo, para os membros da
comunidade do Reino, Jesus não é só o Messias: é também o “Filho de Deus”. No
Antigo Testamento, a expressão “Filho de Deus” é aplicada aos anjos, ao Povo
eleito, aos vários membros do Povo de Deus ao rei e ao Messias-rei da linhagem
de David. Enfim, designa a condição de alguém que tem relação particular com
Deus, a quem Deus elegeu e a quem Deus confiou uma missão. Porém, dizer que
Jesus é o “Filho de Deus” é dizer que Ele recebe vida de Deus, que vive em
total comunhão com Deus, que desenvolve com Deus relação de profunda intimidade
e que Deus Lhe confiou missão única para a salvação dos homens; é reconhecer a
profunda unidade e intimidade entre Jesus e o Pai e que Jesus conhece e realiza
o desígnio do Pai no meio dos homens. Os discípulos são convidados a entender,
deste modo, o mistério de Jesus.
No atinente ao dado eclesiológico, temos a resposta de
Jesus à confissão de fé de Pedro, um segmento discursivo unicamente de Mateus.
Jesus começa por felicitar Pedro pela fé que o anima e que ele testemunha. No
entanto, a fé não é mérito de Pedro, mas dom de Deus (“não foram a carne e o
sangue que to revelaram, mas o meu Pai que está nos céus”). Pedro pertence à
categoria dos “pobres”, dos “simples”, abertos à novidade de Deus, com o coração
disponível para acolher o dom e os planos de Deus. Os “pobres” e “simples”
estão contrapostos aos líderes – os fariseus, os doutores da Lei, os escribas –
instalados nas certezas, nas seguranças e nos preconceitos, incapazes de abrirem
o coração aos reptos de Deus.
A fé proclamada por Pedro (que vê Jesus como “o
Messias”, “o Filho de Deus”) é a base em que assentara comunidade do Reino. É,
efetivamente, confiada a Pedro (o nome é a tradução grega do aramaico “Kephâ”,
que significa “rocha”), a missão de ser a “rocha” sobre a qual assentará a
Igreja nascida de Jesus – rocha firme, mas acolhedora e protetora.
Para que seja possível a Pedro testemunhar que Jesus é
o Messias Filho de Deus e edificar a comunidade do Reino, Jesus promete-lhe “as
chaves do Reino dos céus” e o poder de “ligar e desligar”. No mundo bíblico, o que
detém as chaves é o “administrador do palácio”. Era ele que administrava os
bens do soberano, fixava o horário da abertura e do fechamento das portas do
palácio e definia quais os visitantes a introduzir junto do soberano. A
expressão “atar e desatar” designava, entre os judeus da época, o poder para
interpretar a Lei com autoridade, para declarar o que era ou não permitido,
para excluir ou reintroduzir alguém na comunidade do Povo de Deus. Assim, Jesus
nomeia Pedro para “administrador” e supervisor da Igreja, com autoridade para
interpretar as palavras de Jesus, para adaptar os ensinamentos de Jesus a novas
necessidades e situações, e para acolher ou não novos membros na comunidade dos
discípulos do Reino. Contudo, a missão primordial da Igreja deve ser admitir,
acolher e incluir. A exclusão deve ser excecional e transitória. E nem sempre
assim tem sido.
Isto não quer dizer que a Igreja seja um condomínio
fechado ao qual só alguns têm acesso, mas que todos são chamados por Deus a integrar
a comunidade do Reino e entrando nela os/as que aceitam Jesus como o Messias, o
Filho de Deus, e se dispõem a acolher a sua proposta.
Não se trata de confiar a um homem (Pedro) um primado
com um papel de liderança absoluta da comunidade dos discípulos. Pedro é, aqui,
um discípulo que dá voz a todos aqueles que acreditam em Jesus e que representa
a comunidade dos discípulos. Com efeito, o poder de “ligar e desligar” aparece
noutro contexto, confiado à totalidade da comunidade e não a Pedro, em exclusivo
(cf Mt 18,18). Por isso, deve
entender-se em Pedro o protótipo do discípulo, no qual está representada a
comunidade que se reúne em volta de Jesus e que proclama a sua fé em Jesus como
o “Messias” e o “Filho de Deus”. É a essa comunidade, representada e encimada por
Pedro, que Jesus confia as chaves do Reino e o poder de acolher ou excluir.
Isso não impede que Pedro seja uma figura de referência para os primeiros
cristãos e que desempenhe papel de primeiríssimo plano na animação da Igreja
nascente, sobretudo nas comunidades cristãs da Síria (as comunidades a que o
Evangelho de Mateus se dirige.
O primado de Pedro é mais um primado de amor e de
serviço do que de poder. Na verdade, o Evangelho da missa da Vigília (Jo 21, 15-19) relata o episódio
subsequente à pesca milagrosa, numa das aparições Jesus após a ressurreição. O
ressuscitado insta, por três vezes, Simão Pedro a responder se ama Jesus mais
do que todos os outros, ao que Pedro responde que sim, que O ama. Em resposta,
Jesus confia-lhe o encargo de apascentar os cordeiros e as ovelhadas da grei do
Senhor. Não é crível que o pastor bata nas ovelhas, as castigue ou as ponha
fora do rebanho.
***
A segunda
leitura (2Tm 4,6-8.17-18)
é uma espécie de “testamento” de Paulo. Numa espécie de “balanço final” da sua vida,
o apóstolo, recorda a sua resposta generosa ao chamamento de Jesus e o seu
compromisso total com o Evangelho. É um texto desafiante, a convidar os
discípulos de todas as épocas a percorrerem o caminho cristão com entusiasmo,
com entrega, com ânimo.
Paulo, prisioneiro em Roma sentindo que a sua vida
está a chegar ao fim, avalia a forma como viveu, com o objetivo de levar os
crentes a fazerem, como ele, o dom total da vida a Deus.
A vida de Paulo sofreu transformação radical quando se
encontrou com Cristo na estrada de Damasco. A partir daí, deixou para trás
todas as certezas e seguranças em que, até então, tinha apostado e começou a viver
para Cristo, enfrentando todas as oposições, contornando todos os obstáculos,
suportando todos os cansaços, dando tudo para levar a Boa nova da salvação a
todas as nações, desde Jerusalém a Roma.
Para definir a sua vida de compromisso total com o
desígnio de Deus, recorre a três imagens (do mundo veterotestamentário, do
universo militar e do ambiente desportivo): a sua vida de foi uma oferta
sacrificial a Deus; a sua vida foi um combate, no qual se empenhou totalmente,
até ao dom de si próprio; e, qual atleta de eleição, o apóstolo correu sempre,
com empenho total, com dedicação absoluta, pondo todas as suas forças ao
serviço do projeto de Deus.
Assim, a sua vida foi derramada sobre o altar de Deus,
à imagem dos ritos de libação no santuário e que consistiam no derramamento de
um pouco de vinho sobre o altar onde, depois, se queimava a oferenda destinada
à divindade; Paulo combateu, bravamente, e deu tudo pela vitória de Deus; e o apóstolo
correu em direção à meta, para alcançar a vitória.
Agora, depois de uma vida gasta ao serviço de Deus, pressentindo
que chegou ao fim do seu caminho, está satisfeito com a sua prestação, pois
manteve-se focado, foi fiel, fez tudo o que estava ao seu alcance para
corresponder ao chamamento de Jesus. Resta-lhe receber a “coroa da justiça”
reservada aos vencedores. E, neste contexto, adverte que o mesmo prémio está
reservado a todos aqueles que lutam com o mesmo denodo e como mesmo entusiasmo
pela causa do Reino.
No final da carta, o autor põe na boca de Paulo o
lamento desiludido de um homem cansado que, apesar de tudo o que fez pelo
Evangelho, se sente abandonado por alguns irmãos na fé. Apesar disso, não se
sente sozinho, pois tem experimentado, nos dias de cativeiro, o apoio e o
conforto de Deus. Está convicto de que Deus o livrará de todo o mal e lhe dará,
no final da caminhada, a vida definitiva. Por isso, termina a sua partilha com
um grito de louvor: “Glória a Ele pelos séculos dos séculos. Amén.”
Ao apresentar aos crentes do final do século I o “testemunho”
de Paulo, o autor da carta pede que tenham atitude semelhante à do apóstolo:
que não se deixem vencer pelo desânimo, pelo sofrimento, pelo medo, pela
tribulação; que se mantenham fiéis ao Evangelho; que confiem no prémio que espera
todos aqueles que combaterem o bom combate e mantiverem a fé.
Esta perícopa não deixa de ser um eco do trecho da
Carta aos Gálatas (Gl 1,11-20) –
proclamado na missa da Vigília –, em que o apóstolo, fala do Evangelho que
prega, não inventado por si, mas recebido por uma revelação de Jesus Cristo;
relata, em síntese, o episódio da sua conversão e da designação para apóstolo
dos gentios; e diz como se comportou nesse ministério e na relação com Pedro.
***
Enquanto o coro
dos apóstolos louva o Senhor, os demais crentes podem cantar:
“O Senhor
libertou-me de toda a ansiedade.”
“A toda a hora bendirei o Senhor, / o Seu louvor
estará sempre na minha boca. A minha alma gloria-se no Senhor; escutem e
alegrem-se os humildes.
“Enaltecei
comigo ao Senhor, / e exaltemos, juntos, o Seu nome. / Procurei o Senhor e Ele
atendeu-me, / libertou-me de toda a ansiedade.
“Voltai-vos para Ele e ficareis radiantes: / o vosso
rosto não se cobrirá de vergonha. / Este pobre clamou e o Senhor o ouviu, / salvou-o
de todas as angústias.”
“O anjo do
Senhor protege os que O temem / e defende-os dos perigos. / Saboreai e vede
como o Senhor é bom: / feliz o homem que n’Ele se refugia.
2025.06.29 – Louro de Carvalho
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