domingo, 8 de junho de 2025

A Igreja é a comunidade viva recriada a partir do dom do Espírito

 

 

A liturgia da Solenidade de Pentecostes apela a olharmos para o Espírito Santo e a tomarmos consciência da sua ação na Igreja e no Mundo, pois o Espírito, inesgotável fonte de Vida, fomenta a unidade na comunidade, que transforma, renova, anima, fortalece e reconstrói, para que os discípulos tenham a força para serem arautos do Evangelho de Jesus.

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Evangelho (Jo 20,19-23) apresenta-nos a comunidade da Nova Aliança reunida à volta do Ressuscitado. João descreve a situação dos discípulos antes de Jesus lhes aparecer: o “anoitecer”, as “portas fechadas”, o “medo” – que traduzem a insegurança e o desamparo que sentem, ante a onda hostil que O condenou à morte. Porém, de súbito, Jesus coloca-Se “no meio deles”. O crucificado está vivo; a morte não o derrotou.

Ao colocar-se “no meio deles”, o ressuscitado assume-Se como ponto de referência, fator de unidade, fonte de Vida, videira à volta da qual se enxertam os ramos. A comunidade fica centrada apenas em Jesus, aonde todos vão beber a água que dá a Vida eterna.

A esta comunidade reunida à sua volta, Jesus transmite a paz. Doravante, a saudação hebraica “shalom” mostra que Jesus venceu tudo o que assustava os discípulos, que já não têm qualquer razão para viverem paralisados pelo medo. Estão em paz.

Depois, mostra as mãos com a marca dos pregos e o lado trespassado pela lança do soldado. Nesses sinais de amor e de doação, está a prova da vitória sobre a morte e sobre a maldade dos homens, bem como a marca da entrega até à morte por obediência ao Pai e por amor aos homens. Neles está impressa a identidade de Jesus e a raiz do reconhecimento, pela comunidade de que Ele está vivo e presente no seu meio. A permanência desses sinais indica a permanência do amor de Jesus: Ele é sempre o Messias que salva e do qual brotam a água e o sangue que constituem e alimentam a comunidade. A tudo isto os discípulos respondem com a alegria. Estão alegres, pois Ele está vivo e sabem que se iniciou o tempo novo, em que a morte não assusta, o do Homem livre que se encontrou com a Vida definitiva.

Depois, Jesus convoca os discípulos para a missão, a mesma que o Pai Lhe confiou a Ele: realizar no Mundo a obra de Deus, que eles concretizarão sempre em ligação com Ele.

Para os discípulos concretizarem a missão, Jesus faz um gesto significativo e criativo: “soprou” sobre eles, como o Senhor fizera sobre o barro do qual resultou o ser vivente, o homem. Com o sopro criador, Jesus dá aos discípulos a Vida nova, o Espírito Santo, que fará deles Homens Novos e que os capacitará para serem testemunhas do Ressuscitado. É uma nova Criação.

Poucas horas antes de morrer, na ceia de despedida, Jesus tinha-lhes prometido que não ficariam sós e que lhes daria o Espírito Santo. Chamara-lhe, então, o Espírito da Verdade, o Paráclito que ficaria sempre com eles, lhes ensinaria tudo e lhes recordaria tudo o que Jesus lhes tinha dito, os guiaria para a Verdade completa, lhes daria a conhecer tudo o que havia de vir. Agora, ressuscitado, logo que se encontrou com eles, cumpriu a promessa. Por isso, animada pelo Espírito recebido de Jesus, a comunidade da Nova Aliança percorre o seu caminho pela História. O sopro de Vida que Jesus transmitiu aos s discípulos recria-os, revitaliza-os e dá-lhes a força para serem testemunhas do Evangelho até aos confins da Terra.

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Na primeira leitura (At 2,1-11), Lucas apresenta o Espírito Santo como a Lei Nova que anima o Povo da Nova Aliança. O Espírito leva homens e mulheres de todas as raças e culturas a acolher a Boa Nova e a formar a comunidade unida e fraterna, que fala língua do amor.

João conta que Jesus, no dia em que ressuscitou, apareceu no meio dos discípulos reunidos e, soprando sobre eles, lhes disse: “Recebei o Espírito Santo.” Este enquadramento responde ao objetivo da catequese do Quarto Evangelho: dizer que o Espírito é um dom que Jesus ressuscitado oferece aos seus, antes de os deixar, a fim de que, animados pela força de Deus, vão ao encontro do Mundo e deem testemunho do Reino.

Contudo Lucas, nos Atos dos Apóstolos, coloca o dom do Espírito no dia do Pentecostes (“quando chegou o dia do Pentecostes”), 50 dias depois da Páscoa. Na verdade, ao situar o dom do Espírito no dia em que a comunidade judaica celebrava a aliança e o dom da Lei, no Sinai, Lucas sugere que a comunidade nascida de Jesus é a comunidade da Nova aliança e que o Espírito será a sua Lei. A rota que a comunidade percorre não é balizada por lei externa, escrita em tábuas de pedra, como a Lei do Sinai, mas é desenhada pelo Espírito Santo que reside no coração dos discípulos. A comunidade nascida de Jesus e dirigida pelo Espírito é o novo Povo de Deus. Cumpre-se a promessa de Deus, através do profeta Ezequiel: “Dar-vos-ei um coração novo e introduzirei em vós um Espírito novo, arrancarei do vosso peito o coração de pedra e dar-vos-ei um coração de carne. Dentro de vós porei o meu Espírito, fazendo com que sigais as minhas leis e obedeçais e pratiqueis os meus preceitos.”

Lucas, depois, narra a manifestação do Espírito. O cenário é marcado por dois símbolos: o “vento de tempestade” e o “fogo”. São os símbolos da revelação de Deus no Sinai, quando Deus propôs ao Povo a aliança, lhe deu a Lei e o constituiu como Povo de Deus. Estes símbolos evocam a força de Deusm que entra, de forma irresistível, na vida do seu Povo, transforma o coração do Povo, constitui a comunidade de Deus, una e plural.

O Espírito (força de Deus, presença ativa de Deus) surge na forma de “língua de fogo”, pois a língua evoca a capacidade de comunicar, de estabelecer laços, de construir comunidade. “Falar outras línguas” é criar relações, é superar o gueto, a divisão, o egoísmo, a marginalização. Na História da “torre de Babel”, o orgulho e a ambição desmedida levaram os homens à separação, ao desentendimento, à incapacidade de comunicar e de colaborar em projetos comuns. Agora, chegado o novo tempo, o Espírito de Deus inverte a história de Babel e faz nascer um Povo novo, capaz de comunicar, de dialogar, de viver em comunhão.

Assim, os discípulos proclamavam o seu anúncio e cada um dos presentes os ouvia falar “na sua própria língua”. O elenco dos povos que, no dia de Pentecostes, escutaram os apóstolos e fizeram a experiência de comunhão, inclui representantes de todo o Mundo antigo, desde a Mesopotâmia, passando por Canaã, pela Ásia Menor, pelo Norte de África, até Roma. Embora separados por barreiras de raça, de língua, de cultura, de geografia, todos os povos podem escutar a proclamação “das maravilhas de Deus”, ou seja, o anúncio do Evangelho, fonte de Vida, de amor, de comunhão, de fraternidade e de salvação. Os que se dispuserem a acolher o anúncio, integram a comunidade da salvação, onde se fala a mesma língua (a do amor). Sem deixarem a cultura, as diferenças e as realidades próprias, todos podem experimentar a comunhão que une por laços de família povos bem diferentes.

Esta comunidade é a Igreja, o Povo da Nova Aliança, a nova Humanidade: nascida do anúncio do Evangelho, juntará na mesma família homens e mulheres de todas as raças e culturas, vivificados pelo Espírito, que é, para a Igreja, fonte de união, de amor e de liberdade.

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Na segunda leitura (1Cor 12,3b-7.12-13), Paulo apresenta o Espírito como fonte de Vida para a comunidade cristã. É Ele que concede os dons que enriquecem a comunidade e que fomenta a unidade de todos os membros. Por isso, os dons do Espírito não podem ser usados para benefício pessoal, mas para serem postos ao serviço de todos.

O apóstolo procura ajudar os Coríntios a enquadrar os “carismas” pessoais de forma adequada, no contexto comunitário.

O primeiro problema que Paulo equaciona é o critério para aferir a validade dos dons carismáticos. Não se pode confundir carisma com atitude da busca de protagonismo ou da salvaguarda de interesses pessoais. Segundo Paulo, carisma, o que vem do Espírito, é o que leva a confessar que “Jesus é o Senhor”. Se alguém, por palavras ou por atitudes, nega Jesus ou a sua autoridade sobre o Mundo e sobre a História, não fala, nem age iluminado pelo Espírito Santo. Não há oposição entre Cristo e o Espírito; qualquer manifestação que ponha em causa o essencial da fé, não vem do Espírito, pelo que não é “carisma”.

Depois, Paulo enumera os diversos carismas concedidos aos membros da comunidade; mas lembra que, apesar da diversidade de dons espirituais, é o mesmo Espírito que age em todos; na diversidade de funções, é o mesmo Jesus que está presente em todos; na diversidade de ações, é o mesmo Deus que age em todos. Todos os carismas, por diversos que sejam, se unificam no Deus uno e trino. Não dividem nem podem ser usados para dividir. Unem os membros da comunidade à volta do mesmo Deus, do mesmo Senhor Jesus, do mesmo Espírito, da mesma fé. Um carisma que não é fator de unidade é falso.

O apóstolo garante que os dons do Espírito “a cada um” são “para o bem comum”, para benefício de todos. Não podem, portanto, ser usados para benefício próprio, para a promoção de si próprio, para melhorar a própria posição ou o próprio “ego”; são para o bem comum e só fazem sentido, postos ao serviço da comunidade.

Paulo conclui a sua reflexão aplicando a metáfora do “corpo” à comunidade. Como um corpo, a comunidade é formada por diversos membros, cada um com funções diversas; mas todos constituem um único corpo. A Igreja, “corpo” de Cristo é formada por membros muito diversos, cada um com a sua função e a sua riqueza; mas todos os membros desse corpo foram batizados no único Espírito e todos bebem da mesma vida que lhes vem do único Espírito. É o mesmo Espírito, fonte de Vida para todo o corpo que distribui os dons, faz a coesão, dinamiza a fraternidade e é o responsável pela unidade dos membros que formam a comunidade.

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Leão XIV, na homilia da missa do Jubileu dos Movimentos, Associações e Novas Comunidades, na Praça de São Pedro, citando Santo Agostinho, disse que “este é o dia solene em que, depois da sua Ressurreição e depois da glória da sua Ascensão, Jesus Cristo Nosso Senhor enviou o Espírito Santo” e que, hoje, se renova o que aconteceu no Cenáculo: “Como um vento impetuoso que nos agita, como um estrondo que nos desperta, como um fogo que nos ilumina, desce sobre nós o dom do Espírito Santo.”

O Espírito realiza algo extraordinário na vida dos Apóstolos. Com efeito, como lembra o Papa, “após a morte de Jesus, enclausuraram-se no medo e na tristeza”, mas, agora, recebem um olhar novo e uma inteligência do coração que os ajuda a interpretar o que aconteceu e a fazer a íntima experiência da presença do Ressuscitado, pois “o Espírito Santo vence o medo, quebra as correntes interiores, alivia as feridas, unge-os de força e dá-lhes a coragem de sair ao encontro de todos, para anunciar as obras de Deus”.

Como havia, em Jerusalém, naquele dia, uma multidão proveniente de vários lugares, mas que “cada um os ouvia falar na sua própria língua”, conclui o Pontífice que, no Pentecostes, “as portas do cenáculo se abrem, porque o Espírito abre as fronteiras”. E, citando Bento XVI, sustenta que “o Espírito Santo concede o dom da compreensão”, ultrapassa a rutura de Babel – “a confusão dos corações, que nos faz ser uns contra os outros” – para abrir as fronteiras. Por isso, a Igreja deve tornar-se, de novo, o que já é: “deve abrir as fronteiras entre os povos e romper as barreiras entre as classes e as raças”, não podendo haver nela “esquecidos, nem desprezados”. Na Igreja, há só “irmãos e irmãs livres em Jesus Cristo”.

Considera o Santo Padre que “o Espírito abre as fronteiras, principalmente, dentro de nós”. O dom que nos desvela a vida para o amor, nos desfaz a dureza, o fechamento, o egoísmo, os medos que nos bloqueiam e o narcisismo que nos faz rodar só em torno de nós mesmos. Num Mundo de socialização, somos mais solitários; conectados, mas incapazes de “fazer redes”; imersos na multidão, mas viajantes perdidos e solitários. Ao invés, o Espírito de Deus faz-nos descobrir um novo modo de ver e de viver a vida: abre-nos ao encontro connosco; leva-nos ao encontro com o Senhor; educa-nos a viver a alegria; convence-nos de que, só se permanecermos no amor, receberemos a força para observar a sua Palavra e para seremos transformados por ela. Abre as fronteiras em nós, para a nossa vida se tornar espaço de acolhimento.

O Espírito abre as fronteiras nas nossas relações. Com efeito, Jesus diz que este dom é o amor entre Ele e o Pai que vem habitar em nós. E, quando o amor de Deus habita em nós, somos capazes de nos abrir aos irmãos, de vencer a rigidez, de superar o medo, face ao diferente, de educar as paixões que se agitam em nós. E o Espírito transforma os perigos mais ocultos que envenenam as relações, como os mal-entendidos, os preconceitos, as instrumentalizações. É terrível a relação infestada pela vontade de dominar o outro, a atitude que, frequentemente, desemboca na violência, como demonstram os numerosos e recentes casos de feminicídio.

Ao invés, o Espírito Santo faz amadurecer em nós os frutos que nos ajudam a viver relações verdadeiras e boas: “amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio”. Alarga as fronteiras das relações com os outros e abre à alegria da fraternidade. E esse é o critério decisivo para a Igreja: só somos a Igreja do Ressuscitado e discípulos de Pentecostes, se não houver, entre nós, fronteiras, nem divisões, se, na Igreja, soubermos dialogar e acolher-nos mutuamente, integrando as diversidades, e se, como Igreja, formos espaço acolhedor e hospitaleiro para todos.

Por fim, o Espírito abre as fronteiras entre os povos. Os apóstolos falam as línguas dos que encontram e o caos de Babel é pacificado pela harmonia gerada pelo Espírito. As diferenças, quando o Sopro divino une os corações e faz ver no outro o rosto de irmão, não se tornam ocasião de divisão e conflito, mas tesouro comum, do qual todos tiramos proveito e que nos põe em caminho, “todos juntos, na fraternidade”. O Espírito rompe fronteiras e derruba os muros da indiferença e do ódio, porque “nos ensina tudo” e “nos recorda as palavras de Jesus”. Por isso, ensina, recorda e grava nos nossos corações o mandamento do amor, que o Senhor pôs no centro e no ápice de tudo. E, se há amor, não há preconceitos, distâncias de segurança que afastam do próximo, para a lógica da exclusão que emerge nos nacionalismos políticos.

Ao celebrar a Solenidade de Pentecostes, o Papa Francisco observara que, “no Mundo, há tanta discórdia, tanta divisão”. Conectados, “vivemos desligados uns dos outros, anestesiados pela indiferença e oprimidos pela solidão”. As guerras que agitam o planeta “são um sinal trágico de tudo isso”, pelo que urge invocar o Espírito do amor e da paz, para que abra as fronteiras, derrube os muros, dissolva o ódio e nos ajude a viver como filhos do Pai que está nos céus.

E o Papa Leão, porque “o Pentecostes renova a Igreja e o Mundo” roga “que o vento vigoroso do Espírito desça sobre nós e em nós abra as fronteiras do coração, nos dê a graça do encontro com Deus, amplie os horizontes do amor e sustente os nossos esforços pela construção de um Mundo onde reine a paz”; e que Maria, “Mulher do Pentecostes, Virgem visitada pelo Espírito, Mãe cheia de graça, nos acompanhe e interceda por nós”.

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O Papa, pregoeiro do Espírito Santo, devoto de Maria e de Agostinho de Hipona, denuncia o mal do Mundo, mas crê no futuro do homem em Deus.

2025.05.08 – Louro de Carvalho

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