A liturgia da Solenidade de Pentecostes apela a olharmos
para o Espírito Santo e a tomarmos consciência da sua ação na Igreja e no Mundo,
pois o Espírito, inesgotável fonte de Vida, fomenta a unidade na comunidade, que
transforma, renova, anima, fortalece e reconstrói, para que os discípulos tenham
a força para serem arautos do Evangelho de Jesus.
***
O Evangelho
(Jo 20,19-23) apresenta-nos a comunidade
da Nova Aliança reunida à volta do Ressuscitado. João descreve a situação dos
discípulos antes de Jesus lhes aparecer: o “anoitecer”, as “portas fechadas”, o
“medo” – que traduzem a insegurança e o desamparo que sentem, ante a onda
hostil que O condenou à morte. Porém, de súbito, Jesus coloca-Se “no meio
deles”. O crucificado está vivo; a morte não o derrotou.
Ao colocar-se “no meio deles”, o ressuscitado
assume-Se como ponto de referência, fator de unidade, fonte de Vida, videira à
volta da qual se enxertam os ramos. A comunidade fica centrada apenas em Jesus,
aonde todos vão beber a água que dá a Vida eterna.
A esta comunidade reunida à sua volta, Jesus transmite
a paz. Doravante, a saudação hebraica “shalom” mostra que Jesus venceu tudo o
que assustava os discípulos, que já não têm qualquer razão para viverem
paralisados pelo medo. Estão em paz.
Depois, mostra as mãos com a marca dos pregos e o lado
trespassado pela lança do soldado. Nesses sinais de amor e de doação, está a
prova da vitória sobre a morte e sobre a maldade dos homens, bem como a marca
da entrega até à morte por obediência ao Pai e por amor aos homens. Neles está
impressa a identidade de Jesus e a raiz do reconhecimento, pela comunidade de
que Ele está vivo e presente no seu meio. A permanência desses sinais indica a
permanência do amor de Jesus: Ele é sempre o Messias que salva e do qual brotam
a água e o sangue que constituem e alimentam a comunidade. A tudo isto os
discípulos respondem com a alegria. Estão alegres, pois Ele está vivo e sabem
que se iniciou o tempo novo, em que a morte não assusta, o do Homem livre que
se encontrou com a Vida definitiva.
Depois, Jesus convoca os discípulos para a missão, a
mesma que o Pai Lhe confiou a Ele: realizar no Mundo a obra de Deus, que eles
concretizarão sempre em ligação com Ele.
Para os discípulos concretizarem a missão, Jesus faz
um gesto significativo e criativo: “soprou” sobre eles, como o Senhor fizera sobre
o barro do qual resultou o ser vivente, o homem. Com o sopro criador, Jesus dá
aos discípulos a Vida nova, o Espírito Santo, que fará deles Homens Novos e que
os capacitará para serem testemunhas do Ressuscitado. É uma nova Criação.
Poucas horas antes de morrer, na ceia de despedida,
Jesus tinha-lhes prometido que não ficariam sós e que lhes daria o Espírito
Santo. Chamara-lhe, então, o Espírito da Verdade, o Paráclito que ficaria
sempre com eles, lhes ensinaria tudo e lhes recordaria tudo o que Jesus lhes
tinha dito, os guiaria para a Verdade completa, lhes daria a conhecer tudo o
que havia de vir. Agora, ressuscitado, logo que se encontrou com eles, cumpriu
a promessa. Por isso, animada pelo Espírito recebido de Jesus, a comunidade da
Nova Aliança percorre o seu caminho pela História. O sopro de Vida que Jesus
transmitiu aos s discípulos recria-os, revitaliza-os e dá-lhes a força para
serem testemunhas do Evangelho até aos confins da Terra.
***
Na primeira
leitura (At 2,1-11), Lucas
apresenta o Espírito Santo como a Lei Nova que anima o Povo da Nova Aliança. O
Espírito leva homens e mulheres de todas as raças e culturas a acolher a Boa
Nova e a formar a comunidade unida e fraterna, que fala língua do amor.
João conta que Jesus, no dia em que ressuscitou,
apareceu no meio dos discípulos reunidos e, soprando sobre eles, lhes disse: “Recebei
o Espírito Santo.” Este enquadramento responde ao objetivo da catequese do
Quarto Evangelho: dizer que o Espírito é um dom que Jesus ressuscitado oferece
aos seus, antes de os deixar, a fim de que, animados pela força de Deus, vão ao
encontro do Mundo e deem testemunho do Reino.
Contudo Lucas, nos Atos
dos Apóstolos, coloca o dom do Espírito no dia do Pentecostes (“quando
chegou o dia do Pentecostes”), 50 dias depois da Páscoa. Na verdade, ao situar
o dom do Espírito no dia em que a comunidade judaica celebrava a aliança e o
dom da Lei, no Sinai, Lucas sugere que a comunidade nascida de Jesus é a
comunidade da Nova aliança e que o Espírito será a sua Lei. A rota que a
comunidade percorre não é balizada por lei externa, escrita em tábuas de pedra,
como a Lei do Sinai, mas é desenhada pelo Espírito Santo que reside no coração
dos discípulos. A comunidade nascida de Jesus e dirigida pelo Espírito é o novo
Povo de Deus. Cumpre-se a promessa de Deus, através do profeta Ezequiel: “Dar-vos-ei
um coração novo e introduzirei em vós um Espírito novo, arrancarei do vosso
peito o coração de pedra e dar-vos-ei um coração de carne. Dentro de vós porei
o meu Espírito, fazendo com que sigais as minhas leis e obedeçais e pratiqueis
os meus preceitos.”
Lucas, depois, narra a manifestação do Espírito. O
cenário é marcado por dois símbolos: o “vento de tempestade” e o “fogo”. São os
símbolos da revelação de Deus no Sinai, quando Deus propôs ao Povo a aliança, lhe
deu a Lei e o constituiu como Povo de Deus. Estes símbolos evocam a força de
Deusm que entra, de forma irresistível, na vida do seu Povo, transforma o
coração do Povo, constitui a comunidade de Deus, una e plural.
O Espírito (força de Deus, presença ativa de Deus) surge
na forma de “língua de fogo”, pois a língua evoca a capacidade de comunicar, de
estabelecer laços, de construir comunidade. “Falar outras línguas” é criar
relações, é superar o gueto, a divisão, o egoísmo, a marginalização. Na História
da “torre de Babel”, o orgulho e a ambição desmedida levaram os homens à
separação, ao desentendimento, à incapacidade de comunicar e de colaborar em
projetos comuns. Agora, chegado o novo tempo, o Espírito de Deus inverte a
história de Babel e faz nascer um Povo novo, capaz de comunicar, de dialogar,
de viver em comunhão.
Assim, os discípulos proclamavam o seu anúncio e cada
um dos presentes os ouvia falar “na sua própria língua”. O elenco dos povos
que, no dia de Pentecostes, escutaram os apóstolos e fizeram a experiência de
comunhão, inclui representantes de todo o Mundo antigo, desde a Mesopotâmia,
passando por Canaã, pela Ásia Menor, pelo Norte de África, até Roma. Embora
separados por barreiras de raça, de língua, de cultura, de geografia, todos os
povos podem escutar a proclamação “das maravilhas de Deus”, ou seja, o anúncio
do Evangelho, fonte de Vida, de amor, de comunhão, de fraternidade e de
salvação. Os que se dispuserem a acolher o anúncio, integram a comunidade da
salvação, onde se fala a mesma língua (a do amor). Sem deixarem a cultura, as
diferenças e as realidades próprias, todos podem experimentar a comunhão que
une por laços de família povos bem diferentes.
Esta comunidade é a Igreja, o Povo da Nova Aliança, a nova
Humanidade: nascida do anúncio do Evangelho, juntará na mesma família homens e
mulheres de todas as raças e culturas, vivificados pelo Espírito, que é, para a
Igreja, fonte de união, de amor e de liberdade.
***
Na segunda
leitura (1Cor 12,3b-7.12-13),
Paulo apresenta o Espírito como fonte de Vida para a comunidade cristã. É Ele
que concede os dons que enriquecem a comunidade e que fomenta a unidade de
todos os membros. Por isso, os dons do Espírito não podem ser usados para
benefício pessoal, mas para serem postos ao serviço de todos.
O apóstolo procura ajudar os Coríntios a enquadrar os
“carismas” pessoais de forma adequada, no contexto comunitário.
O primeiro problema que Paulo equaciona é o critério para
aferir a validade dos dons carismáticos. Não se pode confundir carisma com
atitude da busca de protagonismo ou da salvaguarda de interesses pessoais.
Segundo Paulo, carisma, o que vem do Espírito, é o que leva a confessar que
“Jesus é o Senhor”. Se alguém, por palavras ou por atitudes, nega Jesus ou a
sua autoridade sobre o Mundo e sobre a História, não fala, nem age iluminado
pelo Espírito Santo. Não há oposição entre Cristo e o Espírito; qualquer
manifestação que ponha em causa o essencial da fé, não vem do Espírito, pelo
que não é “carisma”.
Depois, Paulo enumera os diversos carismas concedidos
aos membros da comunidade; mas lembra que, apesar da diversidade de dons
espirituais, é o mesmo Espírito que age em todos; na diversidade de funções, é
o mesmo Jesus que está presente em todos; na diversidade de ações, é o mesmo
Deus que age em todos. Todos os carismas, por diversos que sejam, se unificam no
Deus uno e trino. Não dividem nem podem ser usados para dividir. Unem os
membros da comunidade à volta do mesmo Deus, do mesmo Senhor Jesus, do mesmo Espírito,
da mesma fé. Um carisma que não é fator de unidade é falso.
O apóstolo garante que os dons do Espírito “a cada um”
são “para o bem comum”, para benefício de todos. Não podem, portanto, ser
usados para benefício próprio, para a promoção de si próprio, para melhorar a
própria posição ou o próprio “ego”; são para o bem comum e só fazem sentido, postos
ao serviço da comunidade.
Paulo conclui a sua reflexão aplicando a metáfora do
“corpo” à comunidade. Como um corpo, a comunidade é formada por diversos
membros, cada um com funções diversas; mas todos constituem um único corpo. A
Igreja, “corpo” de Cristo é formada por membros muito diversos, cada um com a
sua função e a sua riqueza; mas todos os membros desse corpo foram batizados no
único Espírito e todos bebem da mesma vida que lhes vem do único Espírito. É o
mesmo Espírito, fonte de Vida para todo o corpo que distribui os dons, faz a
coesão, dinamiza a fraternidade e é o responsável pela unidade dos membros que
formam a comunidade.
***
Leão XIV, na homilia da missa do Jubileu dos Movimentos,
Associações e Novas Comunidades, na Praça de São Pedro, citando Santo Agostinho,
disse que “este é o dia solene em que, depois da sua Ressurreição e depois da glória
da sua Ascensão, Jesus Cristo Nosso Senhor enviou o Espírito Santo” e que, hoje,
se renova o que aconteceu no Cenáculo: “Como um vento impetuoso que nos agita,
como um estrondo que nos desperta, como um fogo que nos ilumina, desce sobre nós
o dom do Espírito Santo.”
O Espírito realiza algo extraordinário na vida dos Apóstolos. Com efeito,
como lembra o Papa, “após a morte de Jesus, enclausuraram-se no medo e na
tristeza”, mas, agora, recebem um olhar novo e uma inteligência do coração que
os ajuda a interpretar o que aconteceu e a fazer a íntima experiência da
presença do Ressuscitado, pois “o Espírito Santo vence o medo, quebra as
correntes interiores, alivia as feridas, unge-os de força e dá-lhes a coragem
de sair ao encontro de todos, para anunciar as obras de Deus”.
Como havia, em Jerusalém, naquele dia, uma multidão proveniente de vários
lugares, mas que “cada um os ouvia falar na sua própria língua”, conclui o Pontífice
que, no Pentecostes, “as portas
do cenáculo se abrem, porque o Espírito abre as fronteiras”. E, citando Bento XVI, sustenta
que “o Espírito Santo concede o dom da compreensão”, ultrapassa a rutura de Babel
– “a confusão dos corações, que nos faz ser uns contra os outros” – para abrir
as fronteiras. Por isso, a Igreja deve tornar-se, de novo, o que já é: “deve
abrir as fronteiras entre os povos e romper as barreiras entre as classes e as
raças”, não podendo haver nela “esquecidos, nem desprezados”. Na Igreja, há só “irmãos
e irmãs livres em Jesus Cristo”.
Considera o Santo Padre que “o Espírito abre as
fronteiras, principalmente, dentro de nós”. O dom que nos desvela a vida para o amor, nos desfaz a dureza, o fechamento,
o egoísmo, os medos que nos bloqueiam e o narcisismo que nos faz rodar só em
torno de nós mesmos. Num Mundo de socialização, somos mais solitários; conectados,
mas incapazes de “fazer redes”; imersos na multidão, mas viajantes perdidos e
solitários. Ao invés, o Espírito de Deus faz-nos descobrir um novo modo de ver
e de viver a vida: abre-nos ao encontro connosco; leva-nos ao encontro com o
Senhor; educa-nos a viver a alegria; convence-nos de que, só se permanecermos
no amor, receberemos a força para observar a sua Palavra e para seremos
transformados por ela. Abre as fronteiras em nós, para a nossa vida se tornar
espaço de acolhimento.
O Espírito abre as fronteiras nas nossas
relações. Com efeito, Jesus diz que este dom é o amor entre Ele e o Pai
que vem habitar em nós. E, quando o amor de Deus habita em nós, somos capazes
de nos abrir aos irmãos, de vencer a rigidez, de superar o medo, face ao diferente,
de educar as paixões que se agitam em nós. E o Espírito transforma os perigos
mais ocultos que envenenam as relações, como os mal-entendidos, os
preconceitos, as instrumentalizações. É terrível a relação infestada pela
vontade de dominar o outro, a atitude que, frequentemente, desemboca na
violência, como demonstram os numerosos e recentes casos de feminicídio.
Ao invés, o Espírito Santo faz amadurecer em nós os frutos que nos ajudam a
viver relações verdadeiras e boas: “amor, alegria, paz, paciência, benignidade,
bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio”. Alarga as fronteiras das relações
com os outros e abre à alegria da fraternidade. E esse é o critério decisivo para
a Igreja: só somos a Igreja do Ressuscitado e discípulos de Pentecostes, se não
houver, entre nós, fronteiras, nem divisões, se, na Igreja, soubermos dialogar
e acolher-nos mutuamente, integrando as diversidades, e se, como Igreja, formos
espaço acolhedor e hospitaleiro para todos.
Por fim, o Espírito abre as
fronteiras entre os povos. Os apóstolos falam as línguas dos que
encontram e o caos de Babel é pacificado pela harmonia gerada pelo Espírito. As
diferenças, quando o Sopro divino une os corações e faz ver no outro o rosto de
irmão, não se tornam ocasião de divisão e conflito, mas tesouro comum, do qual
todos tiramos proveito e que nos põe em caminho, “todos juntos, na fraternidade”.
O Espírito rompe fronteiras e derruba os muros da indiferença e do ódio, porque
“nos ensina tudo” e “nos recorda as palavras de Jesus”. Por isso, ensina,
recorda e grava nos nossos corações o mandamento do amor, que o Senhor pôs no
centro e no ápice de tudo. E, se há amor, não há preconceitos, distâncias de
segurança que afastam do próximo, para a lógica da exclusão que emerge nos
nacionalismos políticos.
Ao celebrar a Solenidade de Pentecostes, o Papa Francisco observara
que, “no Mundo, há tanta discórdia, tanta divisão”. Conectados, “vivemos
desligados uns dos outros, anestesiados pela indiferença e oprimidos pela
solidão”. As guerras que agitam o planeta “são um sinal trágico de tudo isso”,
pelo que urge invocar o Espírito do amor e da paz, para que abra as fronteiras,
derrube os muros, dissolva o ódio e nos ajude a viver como filhos do Pai que
está nos céus.
E o Papa Leão, porque “o Pentecostes renova a Igreja e o Mundo” roga “que o
vento vigoroso do Espírito desça sobre nós e em nós abra as fronteiras do
coração, nos dê a graça do encontro com Deus, amplie os horizontes do amor e
sustente os nossos esforços pela construção de um Mundo onde reine a paz”; e que
Maria, “Mulher do Pentecostes, Virgem visitada pelo Espírito, Mãe cheia de
graça, nos acompanhe e interceda por nós”.
***
O Papa, pregoeiro do Espírito Santo, devoto de Maria e de Agostinho de
Hipona, denuncia o mal do Mundo, mas crê no futuro do homem em Deus.
2025.05.08 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário