Pela primeira vez, em seis anos, a ajuda internacional caiu, em 2024; e, ao longo do último ano, os principais governos doadores – incluindo o Canadá, a França, a Alemanha, o Reino Unido e os Estados Unidos da América (EUA), o maior doador do Mundo – anunciaram cortes na ajuda ao desenvolvimento ultramarino,
A administração do presidente norte-americano, Donald Trump, desmantelou a Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e cortou milhares de milhões de dólares em projetos de ajuda a nível mundial. Ora, a redução do financiamento da ajuda ameaça a vida das mulheres e das raparigas, em todo o Mundo, visto que muitas organizações não-governamentais (ONG) que as apoiam preveem que serão forçadas a encerrar em breve. Por conseguinte, muitas raparigas não têm acesso à educação e são obrigadas a trabalhar ou a casar cedo; as mulheres grávidas nos campos de refugiados têm de dar à luz sem uma parteira; as mulheres sobreviventes de violação, as trabalhadoras do sexo e as doentes com vírus da imunodeficiência humana (VIH) ficam sem abrigo ou apoio.
Não estamos a falar de cenários hipotéticos ou de avisos severos, mas do impacto real e atual dos cortes maciços na ajuda externa às ONG que apoiam mulheres e raparigas em zonas de guerra e de conflito e em países atingidos por crises, que vão de Gaza à Ucrânia. Segundo um relatório recente da Organização da Nações Unidas (ONU) Mulheres, os grupos liderados por mulheres e os grupos de defesa dos direitos das mulheres que operam na linha da frente das crises humanitárias foram os mais afetados, com quase metade das organizações a preverem encerrar as suas atividades, no prazo de seis meses, por falta de financiamento.
Efetivamente, um inquérito realizado, em março, a 411 organizações lideradas por mulheres e de defesa dos direitos das mulheres, em 44 países, revelou que cerca de três quartos dos grupos já tinham despedido pessoal e pouco mais de metade tinha suspendido programas, devido a cortes no financiamento. “Em termos simples, as mulheres e as raparigas morrerão, por falta de acesso a estes serviços”, afirmou Sabine Freizer Gunes, representante da ONU Mulheres na Ucrânia, prevendo que a situação se venha a agravar, à medida que as organizações de mulheres que prestam serviços vitais forem forçadas a encerrar.
De acordo com a ONU Mulheres, em 2025, foram financiados apenas 11,1% dos 46 mil milhões de dólares (40,6 mil milhões de euros) necessários para as necessidades humanitárias globais, forçando todo o sistema de ajuda a reformar-se e a reduzir-se. E Dorothy Sang, responsável pela defesa e política da CARE International UK, descreveu as respostas ao inquérito da ONU Mulheres como “profundamente preocupantes” e considerou que não se trata apenas de “perdas abstratas ou [de] números numa folha de cálculo”. “Trata-se de uma experiência humana quotidiana: uma rapariga que já não tem um espaço seguro para aprender; uma mãe que dá à luz sem apoio médico; um sobrevivente de violência que foi afastado de um abrigo que foi encerrado”, sustentou.
Segundo Dorothy Sang, “a arquitetura da ajuda internacional está a ser virada do avesso” e, ainda que se queira restabelecer a ajuda vital, há que “garantir que as decisões que estão a ser tomadas, neste momento, não deixam um legado de destruição para as mulheres e raparigas”.
Já antes dos cortes anunciados pelos principais doadores governamentais, as organizações humanitárias se debatiam com a redução global da ajuda aos países mais desfavorecidos. Essa ajuda ascendeu a 212 mil milhões de dólares (188 mil milhões de euros), em 2024, uma redução de 7,1%, em termos reais, face a 2023, a primeira queda após cinco anos de crescimento consecutivo, de acordo com os dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).
As ONG afirmam que a compressão do financiamento foi agravada pelos cortes da administração Trump na USAID, que o próprio presidente dos EUA referiu, em maio, como “devastadores”, ao esperando que estimulassem outros países a “contribuir e a gastar dinheiro”.
Em 2024, os EUA foram responsáveis por 38% de todo o financiamento da ajuda global registado pela ONU. Os das do governo dos EUA mostram que desembolsou cerca de 61 mil milhões de dólares (69 mil milhões de euros) em ajuda externa, mais de metade dos quais provenientes da USAID. E, além dos EUA, oito países europeus e a própria União Europeia (UE) anunciaram ou implementaram cortes na ajuda ao desenvolvimento externo, totalizando cerca de 30 mil milhões de euros, nos próximos quatro anos, segundo um estudo da Countdown 2030 Europe.
Os cortes afetam, desproporcionadamente, os grupos locais liderados por mulheres e os grupos de defesa dos direitos das mulheres, em comparação com as ONG internacionais e as entidades da ONU, de acordo com a investigação e os peritos da ONU Mulheres. Quase dois terços (62%) das organizações lideradas por mulheres e de defesa dos direitos das mulheres inquiridas afirmam ter sido obrigadas a reduzir os serviços prestados às mulheres e raparigas, e quatro em cada cinco previram que as reduções da ajuda externa prejudicariam gravemente o acesso a serviços que salvam vidas.
Também um relatório publicado, em abril, por várias agências da ONU, incluindo a Organização Mundial de Saúde (OMS), alertou para o facto de os cortes no financiamento estarem a colocar mais mulheres grávidas em risco e, em última análise, a ameaçar os frágeis progressos realizados, a nível mundial, no sentido de acabar com as mortes maternas. Em locais, como a República Democrática do Congo (RDC), Gaza e Ucrânia, os grupos liderados por mulheres e os grupos de defesa dos direitos das mulheres “são, muitas vezes, a espinha dorsal das suas comunidades, atuando como primeiros socorristas e prestando auxílio que salva vidas”, de acordo com Niki Ignatiou, diretora de mulheres, paz e segurança da ActionAid UK, que referiu: “Os governos e os doadores do Norte Global têm de deixar de ignorar os grupos nacionais, locais e de base que estão a fazer o trabalho pesado nas zonas de crise.”
Com base em cortes anteriores à ajuda pública ao desenvolvimento no Reino Unido, sabe-se que, na sequência imediata dos cortes, as mulheres e as raparigas são as que mais perdem, incluindo o acesso a serviços que salvam vidas. E, quando os serviços vitais entram em colapso, durante as crises humanitárias, as mulheres e as raparigas tendem a assumir mais responsabilidades conexas com a prestação de cuidados, como fornecer alimentos e água e cuidar dos doentes. E é também mais provável que sacrifiquem a própria saúde e a nutrição, para colocar as famílias em primeiro lugar, e tendam a ter menos oportunidades de ganhar dinheiro.
Uma organização local de defesa dos direitos das mulheres na Ucrânia, que funciona só com dinheiro de doadores, disse à ONU Mulheres que se encontrava numa “situação terrível”, devido à redução do financiamento. Muitas das beneficiárias, mulheres que sobreviveram à violência, mulheres seropositivas, ex-prisioneiras, trabalhadoras do sexo, necessitam urgentemente de apoio à adaptação e de serviços sociais, mas devido aos cortes no financiamento, só lhes podem oferecer consultas telefónicas. E, ante a redução do financiamento, os grupos liderados por mulheres e os grupos de defesa dos direitos das mulheres vendem ativos, reduzem os custos operacionais e procuram novos doadores ou apoio adicional junto dos atuais financiadores.
Vários peritos em ajuda humanitária sustentam que os programas humanitários para mulheres e raparigas devem ser protegidos e considerados prioritários, com maiores investimentos em organizações locais de mulheres e com maior flexibilidade no financiamento concedido, a fim de garantir um apoio a longo prazo. Ora, as condições de financiamento dos grupos liderados por mulheres e dos grupos de defesa dos direitos das mulheres têm prejudicado, sistematicamente, a sua sustentabilidade. Por exemplo, o dinheiro está normalmente ligado a projetos específicos, que duram, muitas vezes, apenas alguns meses ou até um ano.
Como isso tem muitas implicações para a sustentabilidade organizacional e para o crescimento estratégico, surge o apelo aos doadores para que considerem um financiamento flexível que permita aos grupos de mulheres responder, em tempo real, às necessidades no terreno, em vez de serem orientados pelas prioridades dos doadores.
Embora o objetivo seja proteger a vida das mulheres e das raparigas, o setor da ajuda humanitária está preocupado com o impacto, a longo prazo, dos cortes no financiamento dos direitos das mulheres. “O enfraquecimento destas organizações irá fazer retroceder os ganhos e os progressos alcançados, em matéria de igualdade de género e de empoderamento das mulheres, e poderá encorajar, ainda mais, os movimentos antigénero”, afirmou April Pham, chefe da unidade de género do Gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários da ONU (OCHA).
As organizações locais de mulheres de países como, a Colômbia e os Camarões, disseram à ONU Mulheres que a diminuição do financiamento disponível era um retrocesso nos direitos das mulheres. “Sem a presença das organizações de mulheres, as mulheres serão cada vez mais negligenciadas e os seus direitos serão espezinhados”, afirmou uma das ONG da RDC, não identificada.
“Numa altura em que a igualdade de género está a ser alvo de ataques constantes, todos os intervenientes humanitários devem reforçar os seus compromissos para com os grupos liderados por mulheres e os grupos de defesa dos direitos das mulheres”, afirmou April Pham, frisando: “Temos, agora, a oportunidade de dar forma a uma redefinição humanitária que coloque, verdadeiramente, as mulheres e as raparigas no centro – e é tempo de o fazermos.”
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Paul David Hewson OBE OL, conhecido por seu nome artístico
Bono, vocalista dos
U2 esteve, a 30 de maio, no podcast
de Joe Rogan, para falar sobre o lançamento do seu documentário “Bono: Stories Of Surrender”,
e citou um relatório que dizia que mais de 300 mil pessoas morrerão, em
resultado dos cortes de Elon Musk na ajuda internacional.Durante as três horas de conversa, aproveitou o ensejo para criticar a administração Trump e, em especial, destacou Musk e o seu Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), que supervisionou o desmantelamento USAID.
O cantor, filantropo, compositor e empresário irlandês, que defende, há décadas, a ajuda humanitária, criticou os cortes na ajuda internacional e citou um estudo da Universidade de Boston que estima que os cortes causarão mais de 300 mil mortes, em todo o Mundo. “Há comida a apodrecer em barcos, em armazéns – 50 mil toneladas”, disse Bono. “As pessoas que conheciam os códigos, que eram responsáveis pela distribuição dessa ajuda, foram despedidas. Isso não é a América, pois não?”, questionou.
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A 11
de fevereiro, a Comissão Europeia declarou que “a UE não pode preencher esta
lacuna deixada por outros”, em resposta às ONG de ajuda aos deficientes que procuravam
ajuda de emergência de Bruxelas, depois de o presidente dos EUA ter bloqueado
projetos de desenvolvimento internacional.As ONG que apoiam pessoas com deficiência nos Balcãs e na Europa Oriental viram o seu trabalho interrompido, devido à decisão dos EUA de suspenderem o financiamento da ajuda externa. Por isso, estas organizações instam a UE a prestar apoio financeiro essencial. “Do ponto de vista da UE, a nossa posição como principal doador humanitário mantém-se inalterada. [.] Não vamos recuar nos nossos compromissos humanitários. A nossa ajuda continuará a salvar vidas e a aliviar o sofrimento, em todo o Mundo”, disse um porta-voz da Comissão Europeia.
Não obstante, o porta-voz advertiu que “a escala e a complexidade das atuais necessidades globais requerem uma resposta conjunta”, devendo todos, na comunidade internacional, assumir as suas responsabilidades pois “o défice de financiamento está a aumentar, deixando milhões de pessoas necessitadas” e “a UE não pode preencher esta lacuna sozinha”.
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As mudanças na política humanitária dos
EUA foram sentidas, de forma aguda, no terreno, no Egito e na Jordânia. Os EUA têm sido, desde há muito, o
maior benfeitor internacional de ambos.Sem contar com a ajuda humanitária indireta das agências internacionais financiadas pelos EUA, o Cairo e Amã são o terceiro e quarto maiores beneficiários do financiamento internacional norte-americano, num total de mais de 3 mil milhões de dólares (quase 2,7 mil milhões de euros), por ano. “Estamos a viver num clima turbulento e tenso que a administração Trump criou”, afirmou Ezzat Saad, antigo diplomata egípcio e ministro-adjunto dos Negócios Estrangeiros.
No entanto, Washington fez distinção crucial entre a ajuda que está a cortar e a que será mantida.
No meio dos cortes e do caos, o governo americano anunciou, em março, que iria criar um novo gabinete regional da USAID no Cairo, decisão incongruente e amplamente ignorada. Mesmo os funcionários norte-americanos no terreno admitiram que não tinham conhecimento da decisão e, muito menos, das razões que a motivaram.
Uma análise mais atenta acerca do que constitui a ajuda à Jordânia e ao Egito pode explicar, pelo menos, parte do raciocínio. Enquanto 75% da ajuda dos EUA à Jordânia é humanitária, esse número desce para apenas 20% no Egito. O resto é destinado à assistência militar, ou seja, ao fornecimento de armas, de que o Egito é o segundo maior beneficiário, a seguir ao vizinho Israel. Washington já deu a entender que esta forma de apoio não será afetada pelos cortes.
Alguns consideram que a razão para manter essa ajuda está relacionada com a fronteira comum entre os dois países e com a passagem de Rafah, controlada pelo Egito, para Gaza. “A principal questão do Egito é garantir que os habitantes de Gaza permaneçam em Gaza e, para isso, precisam do apoio dos EUA”, explicou Ben Fishman, membro sénior do think-tank Washington Institute, que trabalhou, anteriormente, no apoio à administração Obama na política para o Médio Oriente, incluindo nos pacotes de ajuda.
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Os cortes na
ajuda humanitária dos EUA (a ajuda militar continua, em relação aos países que
lhes interessam) não são cortes cegos. Os países amigos dos EUA continuam a
receber a insuficiente ajuda humanitária, ainda que a USAID tenha de ser instalada em vários lugares. Já os refugiados,
as mulheres e raparigas que sofrem atropelos aos seus direitos pouco importam a
Donald Trump. Mudam-se os tempos, mudam-se os valores!
2025.06.04 – Louro de Carvalho
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