No Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, a escritora algarvia Lídia Jorge, presidente da Comissão Organizadora das Comemorações do 10 de Junho, em Lagos, e o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, estiveram em consonância, no ataque ao ultraconservadorismo racista, xenófobo, nacionalista e medíocre, que nos pode precipitar no abismo, com difícil retorno.
Olhando para Lagos, onde rapidamente se instalara o mercado de escravos, sustentou que nós “somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou”. E contemplando as sociedades hodiernas, alertou contra a possibilidade de loucos atingirem o poder e contra “a fúria revisionista que assalta pelos extremos”.
Citou William Shakespeare, Luís de Camões e Miguel de Cervantes, “três autores que perceberam bem que, em dado momento, é possível que figuras enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia, assaltem o poder e subvertam todas as regras da boa convivência”. E foi contundente (talvez pensando em Donald Trump, em Vladimir Putin e em muitos dos seus sequazes), ao enunciar: “O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que, a cada dia, a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a terra é disputada. E os cidadãos são apenas público que assiste a espetáculos em ecrãs de bolso. Por alguma razão, os cidadãos, hoje, regrediram à subtil designação de seguidores e os seus ídolos são fantasmas.”
Depois, numa crítica ao racismo, a também conselheira de Estado referiu que, “em pleno século XVII, cerca de 10% da população portuguesa teria origem africana, população que os Portugueses tinham trazido arrastados”. E deduziu: “O que significa que, por aqui, ninguém tem sangue puro e a falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós é uma soma do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco, do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou.”
Por conseguinte, criticou “a fúria revisionista que assalta, pelos extremos, nos dias de hoje, um pouco por toda a parte”, e põe em causa “os fundamentos institucionais científicos, éticos, políticos”. E apontou: “O princípio da exemplaridade – essa conduta que fazia com que o rei devesse ser o mais digno entre dignos – está a ser subvertido pela cultura digital. O escolhido passou a ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende.”
Numa alusão tácita ao presidente norte-americano, frisou que “o chefe de Estado de uma grande potência, durante um comício, disse: Adoro-vos, adoro os pouco instruídos.” E, completou, com amarga ironia: “E os pouco instruídos aplaudiram. Pergunto, pois qual é o conceito, hoje em dia, de ser humano, como proteger esse valor que, até há pouco, funcionava e não funciona mais.”
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Obviamente, a escritora havia de falar de Camões, pois o ilustre poeta –
grande na lírica e na épica – serviu Portugal pelas armas, frequentou os salões
cortesãos, viveu a vida como grande parte dos escudeiros e dos populares,
sofreu as vicissitudes da vida (conheceu o cárcere, a deportação / emigração e
a penúria), exaltou a Pátria e a suas gestas, criticou os vícios de tanta gente
e cultivou a Língua Portuguesa, modernizando-a, modelando-a e dando-lhe
sonoridade. De Camões a escritora salientou que, “tal como nós, conheceu uma época de transição, assistiu ao fim de um ciclo”. Com efeito, ele adivinhou a decadência do Império; e nós vemos que os perigos espreitam a democracia, em Portugal e no Mundo, com os conflitos a arrastarem-se uns aos outros. E Lídia Jorge falou de um “novo tempo, que está a acontecer à escala global”.
Segundo a oradora, o ilustre vate, n’ Os Lusíadas, “expressa corajosas verdades dirigidas ao rosto dos poderes que elogia”. Também hoje, “o poder demente aliado ao triunfalismo tecnológico faz que […] sintamos como a Terra redonda é disputada por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se tratasse de um berloque”, lamentou, vincando: “É contra isso e por isso que vale a pena que Portugal e as comunidades portuguesas usem o nome de um poeta por patrono.”
Para Lídia Jorge, “Lagos, a cidade dos sonhos do infante de que Sagres é a metáfora promove a consciência do que somos capazes de fazer uns aos outros”. “Essa população [africana] não nos tinha invadido. Os Portugueses os tinham trazido arrastados até aqui. E nos miscigenámos. O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro. […] Cada um de nós é uma soma”, advertiu.
Todavia, para a escritora, a consciência dessa aventura antropológica “talvez mitigue a fúria revisionista que nos assalta pelos extremos, nos dias de hoje, um pouco por toda a parte”.
“Agora, que percebemos que estamos no fim de um ciclo e que um outro se está a desenhar, e a incógnita existencial sobre o futuro próximo, ainda desconhecido, nos interpela, a cada manhã que acordamos, sem sabermos como irá ser o dia seguinte a pergunta é esta: Quando ficaram em causa os fundamentos institucionais, científicos, éticos, políticos e os pilares de relação de inteligência homem-máquina, entrar em um novo paradigma, que lugar ocuparemos nós como seres humanos? O que passará a ser um humano?”, questionou.
Prestes a terminar o seu discurso, afirmou que “nós, Portugueses, não somos ricos, somos pobres e injustos, mas, ainda assim, derrubámos uma longuíssima ditadura e terminámos com a opressão que mantínhamos sobre diversos povos e com eles estabelecemos novas alianças, e criámos uma comunidade de países de Língua Portuguesa e fomos capazes de instaurar uma democracia e aderir a uma união de países livres e prósperos que desejam a paz”.
E concluiu: “Assim sendo, por certo que ainda não temos as respostas, mas, perante as incógnitas que nos assaltam, sabemos que temos a força. Leio Camões, aquele que nunca mais morreu, e comovo-me com o seu destino, porque, se alguma coisa tenho em comum com ele, que foi génio e eu não sou, é a certeza de que partilho da sua ideia de que um ser humano é um ser de resistência e de combate. É só preciso determinar a causa certa.”
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Por seu turno, o Presidente da República acentuou que “Lagos é um lugar
simbólico de História”, dizendo que ali somos chamados a “recordar os quase 900
anos da pátria comum e o orgulho daqueles que a fizeram, vindos de todas as
partes”.Na sua intervenção, de cerca de 10 minutos, Marcelo Rebelo de Sousa recordou o passado, propôs a recriação do país e agradeceu a todos os povos que fizeram a pátria portuguesa. “Nós somos portugueses porque somos universais e somos universais porque somos portugueses”, proclamou o chefe de Estado, numa tirada verdadeiramente ecuménica.
O Presidente da República lembrou os combatentes, dizendo que ganhámos a independência e recuperámos a independência, “por causa da sua intervenção”; e que “somos a pátria que vive em liberdade e em democracia, feita por esses soldados”.
Contra os nacionalismos em Portugal, o chefe de Estado recordou os “quase 900 anos da pátria comum”, onde conviveram “vindos de todas as partes, Gregos, Fenícios [Cartagineses, Iberos, Celtas e Celtiberos], Romanos, Germânicos, Nórdicos, Judeus, Mouros, Africanos, Latino-americanos e Orientais, e, desde as raízes, Lusitanos [Suevos e Visigodos], Lioneses, Borgonheses, Gauleses, Saxões, os mais antigos aliados políticos” e os “muitos mais que fizeram uma mistura”, de modo que “ninguém possa dizer que é mais puro do que qualquer outro”.
Considerando que é preciso olhar para “as independências que ganhámos” e para “aquelas que perdemos, mas que conseguimos recuperar”, no seu último discurso do 10 de Junho, o Presidente da República salientou a necessidade de “recordar as epopeias que vivemos e os seus combatentes, desde há mais de cinco séculos, e o que delas soubemos acertar, aprender, converter em futuro nosso e da Humanidade” pedindo que se tire também “o que errámos, o que desperdiçámos, o que não fizemos, em continentes e oceanos”. É “tudo isto”, disse, “e muito mais”, que “definiu o que somos” como país. “Somos Portugueses, porque somos universais e somos universais, porque somos Portugueses”, sentenciou.
No seu discurso, o chefe de Estado pediu que se cuide “mais” dos que “ficaram para trás ou estão a ficar”, sustentando que estes são “intoleravelmente muitos, são de mais”, repetindo, por várias vezes, a necessidade de “cuidar dos nossos compatriotas” e da “pertença” de Portugal à Europa.
“Temos o dever de nos recriar, de nos ultrapassar, de cuidar melhor da nossa gente, para que seja mais numerosa, mais educada, mais atraída a ficar nesta pátria, feita de um retângulo e dois arquipélagos, se quiser ficar, ou a partir, para voltar, e nunca perder a saudade da terra, se quiser partir. Cuidar mais do que puder e dever ser feito, produzido, inovado, investido, exportado e, sobretudo, proporcionado a quem é nela a viver. Cuidar dos que já ficaram para trás ou estão a ficar, e são sempre entre dois e três milhões, e são muitos há muito tempo”.
Numa crítica às desigualdades sociais que permanecem, “regime após regime, situação após situação”, o Presidente da República apelou a que se cuide dos “nossos compatriotas que todos os dias criam Portugal, por todo o Mundo”.
Na semana em que decorre, entre os dias 9 e 13, a conferência das Nações Unidas sobre Oceanos, na cidade francesa de Nice, após a celebração, a 8 de junho, do Dia Mundial dos Oceanos, o chefe de Estado pediu que se cuide “do mar, dos oceanos, essa valia que é muito nossa, portuguesa e universal, universal e portuguesa, mas temos de a não ignorar, temos de não a minimizar”.
“Não há outro país do Mundo que tenha o seu dia nacional escolhido por causa de um poeta”, sinalizou o Presidente da República. Também isso nos torna um povo singular, digo eu.
“Recriar Portugal é, no fundo, ler Os Lusíadas, a obra máxima do poeta do século XVI”, ou seja, “recordar o passado, mas apostar no futuro”, asseverou o Presidente da República, já que o poeta recordou o passado, mas propôs “a aposta no futuro, em anos em que Portugal parecia condenado a morrer”.
O elogio aos Portugueses e ao país nos discursos de celebração do 10 de Junho foi, de resto, uma constante do Presidente da República, ao longo dos dez anos de mandato. E o último não foi exceção. “Isto é Portugal, isto é Portugal, os portugueses e as portuguesas, e nele os nossos combatentes, os nossos militares, esses militares que aqui estão, todos os anos, pelo 10 de Junho, mas estão na nossa História desde que nascemos”, enfatizou.
Em dia de cerimónia militar, como chefe de Estado, garante da unidade nacional e comandante supremo das Forças Armadas, Marcelo Rebelo de Sousa agradeceu a todos e a todas, povo anónimo, aos que aqui nasceram, aos que vieram de fora, aos que vivem na diáspora e, claramente, aos heróis, o facto de terem construído esta pátria que emendar os erros, que sabe recriar-se.
Deixou explícito agradecimento aos militares que instauraram a democracia e nos abriram o horizonte da liberdade. E, desta vez, pessoalizou o agradecimento na figura do general Ramalho Eanes, a quem agraciou com o grande-colar da Ordem Militar de Avis (é a primeira personalidade a receber este grau, o máximo, da Ordem de Avis), salientando que serviu Portugal como combatente em África, é um capitão de Abril, foi protagonista do 25 de Novembro, chefe do Estado-Maior do Exército e Presidente da República, com dois mandatos. Foi o primeiro Presidente da República eleito livremente pelo povo.
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De acordo com o portal das ordens honoríficas, “a Ordem Militar de Avis
destina-se a premiar altos serviços militares, sendo, exclusivamente, reservada
a oficiais das Forças Armadas e da Guarda Nacional Republicana, bem como a
unidades, órgãos, estabelecimentos e corpos militares”. E, segundo a Presidência
da República, é a primeira vez que é atribuído o grande-colar da Ordem Militar
de Avis, o mais alto grau desta ordem militar.Ramalho Eanes foi condecorado com o grande-colar da Ordem Militar de Avis, num dia em que os candidatos presidenciais tiveram opções diferentes: o almirante esteve ausente, com agenda pública, em Lisboa, numa homenagem aos combatentes do Ultramar, ao invés de Luís Marques Mendes, que fez questão de ver e ser visto pelos jornalistas.
Marcelo Rebelo de Sousa, mais tarde, foi sibilino sobre Henrique Gouveia e Melo, dizendo que não fazia comentários sobre candidatos, mas que os candidatos têm de fazer pela vida.
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Os dois oradores foram consonantes
na proclamação da pátria aberta e plural. Não obstante, Lídia Jorge foi mais pormenorizada
na denúncia do perigo de descarrilamento do comboio das democracias, embora
abrisse a passadeira da esperança; o chefe de Estado foi contundente na escalpelização
da desigualdade, mas o resto do discurso sabe a testamento político, ainda que
prematuro, pois espera-se que veja, como Presidente da República, alguma reforma
no Estado.Temos de voltar a Camões para vermos Portugal como “quase cume da cabeça” da Europa (ou “rosto”, como queria Fernando Pessoa), em vez de cauda, como tantos apregoam!
2025.06.11 – Louro de Carvalho
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