terça-feira, 3 de junho de 2025

Prossegue, de vento em popa, o processo de “sinização”

 

A 26 de maio, o jornal digital Sete Margens publicou uma peça jornalística sob o título “Clandestino ou registado: os riscos que corre o clero na China”, com o antetítulo “Impedidos de evocar a morte de Francisco”, que dá conta do crescimento das “restrições” e das “imposições ao exercício das atividades das diferentes religiões”, na República Popular da China (RPC).

Na verdade, o regime político pretende o controlo da atividade dos cidadãos e a submissão de todos à ótica mais ampla do que é designado por “sinização” ou chinização, isto é, o processo no qual sociedades ou grupos não chineses são assimilados na cultura chinesa – mormente, a língua, as normas sociais, as práticas culturais e a identidade da principal etnia da China: os Han.

A nível do léxico, o termo é usado para referir, especificamente, a transliteração e, neste contexto, a “sinização” é análoga à romanização, que todos estudámos.

Em sentido mais amplo, “sinização” significa todo o conjunto de políticas de aculturação, de assimilação ou de imperialismo cultural de culturas vizinhas para a China, dependendo das relações políticas históricas, o que se reflete, historicamente, na esfera cultural da Ásia Oriental, designadamente, na Coreia, no Vietname e no Japão, como, por exemplo, como por exemplo, na adoção da cultura literária chinesa.

Obviamente, a sinização imposta pelo regime implica a submissão “à cultura chinesa e aos princípios ideológicos” do Partido Comunista Chinês (PCC), de que emana o governo do país.

Voltando ao tema do Sete Margens, a nível religioso, a questão atual mais sensível é a do “registo oficial” exigido pelas autoridades a todos os padres e bispos, invocando o Acordo de 2018 com a Santa Sé, “o qual, apesar de secreto, parece não exigir este requisito”. E a pressão é cada vez mais intensa, sobretudo, “nas províncias onde é ainda relevante o peso das comunidades cristãs subterrâneas ou clandestinas”.

O registo postula a adesão à Associação Patriótica dos Católicos Chineses, ideologicamente influenciada e controlada pelo PCC. Não se trata de ato meramente formal ou de registo administrativo, de acordo com a análise feita por um padre clandestino à agência noticiosa católica Asia News. A inscrição de um clérigo acarreta a obrigatoriedade da sua participação “em cursos políticos e [em] conferências” sobre os “valores fundamentais do socialismo”, sendo-lhe exigido que colabore na “sinização da religião” e na “remoção de cruzes, na exibição da bandeira nacional e na dessacralização” das decorações e da linguagem litúrgica da Igreja.

Ao registar-se, “o clérigo adquire um estatuto de legitimidade”, mas as obrigações contraídas acarretam “um compromisso com o poder político”, gerando um sentimento de culpa por ‘traição à fé’, que se acumula ao longo do tempo”, com refere fonte da Asia News, sob anonimato.

Os presbíteros registados podem celebrar missa, pregar e ministrar sacramentos nas igrejas aprovadas pelo governo, mas não podem abordar, nas homilias, temas sensíveis, como a autoridade papal, a Igreja universal, as perseguições religiosas. E é habitual as igrejas estarem equipadas com câmaras de vídeo e funcionários do governo poderem “assistir ou mesmo intervir durante as homilias”. Além disso, criar seminários para a formação do clero, organizar eventos, desenvolver a catequese, dar cursos de formação ou convidar leigos para desempenho de cargos pastorais requer autorização das autoridades.

Ora, entre perder a confiança dos fiéis e o sentido do ministério, e perder a confiança das autoridades e o risco de não ser renovado o registo, que deve ser revisto frequentemente, a vida dos padres carateriza-se pelo “isolamento” e pelo “cansaço mental”.

Este cenário afeta padres e bispos, e a intromissão das autoridades na vida das igrejas “pode gerar situações extremas”, como a verificada no período de sede vacante, por morte do Papa Francisco. O direito canónico veda, nesse período, a nomeação de novos bispos. Ora, foi, precisamente, nesse período que o regime da RPC nomeou dois novos bispos, um auxiliar, em Shangai, e outro, titular, em XianXiang, dois zelosos fiéis do regime de Pequim. E, como refere o Bitter Winter, site especializado em temas religiosos na RPC, “como sempre acontece, as assembleias de padres, freiras e leigos são convocadas e, invariavelmente, ‘confirmam’ as escolhas do PCC”.

Outro caso recente foi o impedimento de os católicos do país evocarem a memória do Papa Francisco, após a sua morte, a 21 de abril. Era de esperar que, tendo o governo negociado o acordo com a Santa Sé, uma celebração em memória do Papa não suscitasse dificuldades. Porém, a notícia só foi recebida a 23 de abril, quando católicos de várias regiões estavam concentrados em Nanjing, para celebrar uma vitória do PCC. E não foi feita qualquer referência à morte de Francisco. A informação apareceu num órgão oficial, em duas linhas, ao fundo de um bloco de notícias, sem chamada na primeira página.

Enfim, no dizer da Asia News, a vida católica na China, é um “calvário”.

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O caso mais evidente de sinização é o do Tibete, desde a sua anexação pela RPC, em 1950-1951.

A sinização do Tibete consiste na submissão aos programas e às leis do governo chinês e do PCC, que forçam a “unidade cultural” nas áreas tibetanas da China, incluindo a Região Autónoma do Tibete (TAR) e áreas autónomas vizinhas do Tibete. Os esforços são empreendidos pela China, alegadamente, para refazer a cultura tibetana, na cultura chinesa dominante.

Para facilitar o processo, o governo chinês introduziu uma série de reformas económicas, sociais, culturais, religiosas e políticas. E os críticos citam, como um dos principais componentes da sinização, a migração patrocinada pelo governo de grande número de Chineses Han para a TAR.  

De acordo com o governo tibetano no exílio, a política chinesa redundou no desaparecimento de elementos da cultura tibetana, pretendendo as políticas tornar o Tibete parte integrante da China e controlar o desejo de autodeterminação tibetana. O 14.º Dalai Lama e a Administração Central do Tibete caraterizaram os programas de sinização como genocídio ou limpeza cultual. Ao invés, o governo chinês afirma que as suas políticas beneficiaram o Tibete e que as mudanças culturais e sociais são consequências da modernização. Segundo o governo, a economia do Tibete expandiu-se; os serviços e infraestruturas aprimorados melhoraram a qualidade de vida dos Tibetanos; e a língua e a cultura tibetanas foram protegidas.

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Após a queda da dinastia Qing e antes de 1950, a região que corresponde, aproximadamente, à atual TAR era estado independente de facto, embora não reconhecido por outros estados. Imprimia moeda e postagem e tinha relações internacionais, mas sem troca de embaixadores. O Tibete reivindicou três províncias (Amdo, Kham e Ü-Tsang), mas só controlou o Oeste de Kham e Ü-Tsang. A China anexou Kham oriental a Sichan e Kham ocidental à nova TAR.

No início do século XX, no período da RPC que se seguiu a dinastia Qing, o general chinês muçulmano e governador Qinghai, Ma Bufang, é acusado pelos Tibetanos de implementar, em áreas tibetanas, políticas de sinização e de islamização. Após ganhar a guerra civil chinesa, em 1949, o objetivo de Mao Zedung era a unificação das cinco nacionalidades como a RPC, sob o PCC. O governo tibetano, em Lhasa, enviou Ngabo para Chamdo, em Kham, cidade estratégica perto da fronteira, para manter a sua posição, enquanto chegavam reforços de Lhasa, para lutar contra os Chineses. A 16 de outubro de 1950, chegou a notícia de que o Exército de Libertação do Povo (PLA) avançava para Chamdo e tomara a cidade de Riwoche (que poderia bloquear a rota para Lhasa). Ngabo e os seus homens retiraram-se para um mosteiro, onde o PLA os cercou e capturou. Ngabo escreveu a Lhasa, sugerindo a rendição pacífica, em vez da guerra. Depois, aceitou o Acordo de 17 Pontos, de Mao que estipulava que, em troca de o Tibete se tornar parte da RPC, lhe seria concedida autonomia. Sem apoio do Mundo, em agosto de 1951, o Dalai Lama enviou um telegrama a Mao a aceitar o acordo, que os delegados assinaram sob coação.

Embora a incorporação do Tibete na China seja conhecida na Historiografia chinesa como a “Libertação Pacífica do Tibete”, o Dalai Lama Dalai considera-a colonização e o Congresso da Juventude Tibetana, uma invasão. 

Antes do acordo, a economia do Tibete era dominada pela agricultura de subsistência e a permanência de 35 mil soldados chineses, na década de 1950, prejudicava o abastecimento de alimentos da região. Quando o Dalai Lama visitou Mao Zedong, em Pequim, em 1954, Mao disse-lhe que mudaria 40 mil agricultores chineses para o Tibete.

Como parte do “Grande Salto Adiante”, da década de 1960, as autoridades chinesas coagiram os agricultores tibetanos a cultivar milho, em vez de cevada (a cultura tradicional da região). A colheita falhou e milhares de Tibetanos morreram de fome.

A Revolução Cultural, envolvendo estudantes e trabalhadores do PCC, foi iniciada por Mao e conduzida pela Gangue dos Quatro, de 1966 a 1976, para preservar o maoísmo como a principal ideologia da China, e foi uma luta dentro do PCC para eliminar a oposição política a Mao.

A Revolução Cultural afetou a China e o Tibete. Os Guardas Vermelhos atacaram civis, acusados de traição. Mais de seis mil mosteiros tibetanos foram saqueados e destruídos. Monges e freiras foram forçados a deixar os mosteiros para viverem uma vida normal, e encarcerados os que resistiram. E os prisioneiros foram obrigados a trabalhos forçados, torturados e executados.

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O Projeto Estratégico Nacional da China para o Desenvolvimento do Ocidente, introduzido na década de 1980, após a Revolução Cultural, incentiva a migração de Chineses de outras regiões da China para o Tibete com bónus e com condições de vida favoráveis. Assim, muitas pessoas se voluntariam para serem enviadas para lá como professores, médicos e administradores para ajudar no desenvolvimento do Tibete.

Os tibetanos são o grupo étnico maioritário na TAR, constituindo cerca de 93% da população, em 2008. Os ataques de 2008 por Tibetanos a propriedades pertencentes a Han e a Hui foram, supostamente, devidos ao grande influxo de Han e de Hui, no Tibete. E, segundo George Fitzherbert, envolver-se com os argumentos da China a respeito do Tibete é estar sujeito a um tipo de armadilha intelectual e familiar como no conflito palestiniano, por meio da qual a disputa é encurralada em questões difíceis de contestar.

O governo chinês tentou desenvolver o Tibete como parte da sua política de desenvolvimento ocidental da China. Por exemplo, a Ferrovia Qinghai foi concluída em 2006, levando ao aumento do turismo do resto da China; e alguns jovens tibetanos identificam-se como tibetanos e como chineses e são fluentes em Tibetano e em Mandarim.

Em agosto de 2020, Xi Jinping, secretário-geral do PCC, afirmou que é “necessário orientar, ativamente o budismo tibetano”, para se adaptar à sociedade socialista e para promover a sua sinização. E, segundo a Associated Press, em agosto de 2021, WangYang declarou, em frente ao Palácio de Potala que são necessários esforços, para garantir que os Tibetanos compartilhem os “símbolos e imagens culturais da nação chinesa”.

O governo afirma que controlará como o 15.º Dalai Lama será escolhido, contrariando séculos de tradição. Assim, quando o Dalai Lama confirmou um menino tibetano, em 1995, como a reencarnação do Panchen Lama, o segundo líder da seita Gelugpa, o governo retirou o menino e os pais e instalou o seu próprio lama. O paradeiro do Dalai Lama escolhido, Gedhun Choekyi Nyima, é desconhecido, mas o governo afirmou que ele tem emprego estável e vida normal.

No Tibete, as escolas advertem os pais de que os alunos não devem frequentar as aulas em mosteiros, nem envolverem-se em qualquer atividade religiosa, o que acarretará pesadas sanções.

A remoção bandeiras de oração, símbolos da cultura tibetana e da crença religiosa, aumentou desde 2010; e, em junho de 2020, as autoridades chinesas iniciaram o programa de “reforma comportamental”, no Qinghai’s Golog da TAR e no condado de Tengchen (Dingqing) em Chamdo, ordenando a destruição das bandeiras de oração. E o relatório anual do Centro Tibetano para Direitos Humanos e Democracia, de 2019, descobriu que as forças policiais e equipas de vigilância se mudaram para mosteiros e para vilas, para monitorarem residentes tibetanos em busca de sinais de oposição ao governo da China.

No verão de 2019, as autoridades chinesas demoliram milhares de residências, no centro budista tibetano Yachen Gar, na província de Sichuan, deslocando até seis mil monges e freiras; em abril de 2019, fecharam a Larung Gar Buddhist Academy para novas inscrições; e têm intensificado a repressão à posse ou à exibição de fotos do Dalai Lama e monitorado os festivais religiosos.

Em protesto contra as políticas repressivas do governo, pelo menos, 156 tibetanos se autoimolaram desde fevereiro de 2009. *

A sinização estende-se ao ensino obrigatório do Mandarim nas escolas e a sua utilização oficial, embora a Constituição da RPC, estipule a autonomia das regiões étnicas. Por outro lado, em 2003, o governo chinês lançou uma política que exigia que os nómadas (em concreto, os pastores) se mudassem para moradias urbanas, em vilas recém-construídas; e, em 2017, foram obrigados a voltar, sem os seus animais, devido a nova política anunciada, em 2016, para que as autoridades usassem as suas casas como centros turísticos e como habitação de funcionários do governo.

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É ambígua a avaliação que se faz das intenções do PCC. Em 1989, Robert Badinter, advogado criminal francês, participou num episódio de Apostrophes, programa de televisão francês dedicado aos direitos humanos, com o Dalai Lama, e, referindo-se ao desaparecimento da cultura tibetana, usou a expressão “genocídio cultural”, que o Dalai Lama usou, em 1993, para o mesmo efeito. E, durante a agitação tibetana de 2008, acusou a China de genocídio cultural. Porém, igualmente, em 2008, Robert Barnett, diretor do Programa de Estudos Tibetanos da Universidade de Columbia, sustentou ser a hora de abandonar as acusações de genocídio cultural, vincando: “Acho que temos de superar qualquer sugestão de que os Chineses são mal-intencionados ou estão a tentar acabar com o Tibete.” E, na New York Review of Books, interrogava-se: “Por que, se a cultura tibetana, dentro do Tibete, está a ser “rapidamente apagada da existência”, tantos Tibetanos, no Tibete, ainda parecem ter uma vida cultural mais vigorosa, com mais da centena de revistas literárias em Tibetano, do que as suas contrapartes no exílio?”

Em minha opinião, é de censurar o controlo minudente de cada passo das pessoas e dos grupos, como é intolerável o recurso à violência para consecução dos próprios intentos, a utilização abusiva e exploratória de pessoas pobres ao serviço dos interesses do governo e o ataque às crenças e à liberdade de culto. Revolução cultural? Qual Revolução? Qual cultura? Receio que, daqui a alguns anos, algo similar aconteça em Hong-Kong e em Macau.

A sinização pode trazer progresso económico, mas nada há que substitua as liberdades. Por outro lado, os fins não justificam os meios.

2025.06.03 – Louro de Carvalho

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