A 26 de maio, o jornal digital Sete Margens publicou uma peça jornalística sob o título “Clandestino ou registado: os
riscos que corre o clero na China”, com o antetítulo “Impedidos de evocar a morte de Francisco”, que dá conta do crescimento das “restrições” e
das “imposições ao
exercício das atividades das diferentes religiões”, na República Popular da
China (RPC).
Na verdade, o regime político pretende o controlo da
atividade dos cidadãos e a submissão de todos à ótica mais ampla do que é
designado por “sinização” ou chinização, isto é, o processo no qual sociedades ou
grupos não chineses são assimilados na cultura chinesa – mormente,
a língua, as normas sociais, as práticas culturais e a identidade da
principal etnia da China: os Han.
A nível do léxico, o termo é
usado para referir, especificamente, a transliteração e, neste contexto, a
“sinização” é análoga à romanização, que todos estudámos.
Em sentido mais amplo,
“sinização” significa todo o conjunto de políticas de aculturação, de assimilação
ou de imperialismo cultural de culturas vizinhas para a China, dependendo das
relações políticas históricas, o que se reflete, historicamente, na esfera
cultural da Ásia Oriental, designadamente, na Coreia, no Vietname e no Japão,
como, por exemplo, como por exemplo, na adoção da cultura literária
chinesa.
Obviamente, a sinização imposta pelo regime implica a
submissão “à cultura chinesa e aos princípios ideológicos” do Partido Comunista
Chinês (PCC), de que emana o governo do país.
Voltando ao tema do Sete Margens, a nível religioso, a questão atual mais sensível é a
do “registo oficial” exigido pelas autoridades a todos os padres e bispos, invocando
o Acordo de 2018 com a Santa Sé, “o qual, apesar de secreto, parece não exigir
este requisito”. E a pressão é cada vez mais intensa, sobretudo, “nas
províncias onde é ainda relevante o peso das comunidades cristãs subterrâneas
ou clandestinas”.
O registo postula a adesão à Associação Patriótica dos
Católicos Chineses, ideologicamente influenciada e controlada pelo PCC. Não se
trata de ato meramente formal ou de registo administrativo, de acordo com a
análise feita por um padre clandestino à agência noticiosa católica Asia News. A inscrição de um clérigo
acarreta a obrigatoriedade da sua participação “em cursos políticos e [em] conferências”
sobre os “valores fundamentais do socialismo”, sendo-lhe exigido que colabore
na “sinização da religião” e na “remoção de cruzes, na exibição da bandeira
nacional e na dessacralização” das decorações e da linguagem litúrgica da
Igreja.
Ao registar-se, “o clérigo adquire um estatuto de
legitimidade”, mas as obrigações contraídas acarretam “um compromisso com o
poder político”, gerando um sentimento de culpa por ‘traição à fé’, que se
acumula ao longo do tempo”, com refere fonte da Asia News, sob anonimato.
Os presbíteros registados podem celebrar missa, pregar
e ministrar sacramentos nas igrejas aprovadas pelo governo, mas não podem
abordar, nas homilias, temas sensíveis, como a autoridade papal, a Igreja
universal, as perseguições religiosas. E é habitual as igrejas estarem
equipadas com câmaras de vídeo e funcionários do governo poderem “assistir ou
mesmo intervir durante as homilias”. Além disso, criar seminários para a
formação do clero, organizar eventos, desenvolver a catequese, dar cursos de
formação ou convidar leigos para desempenho de cargos pastorais requer
autorização das autoridades.
Ora, entre perder a confiança dos fiéis e o sentido do
ministério, e perder a confiança das autoridades e o risco de não ser renovado o
registo, que deve ser revisto frequentemente, a vida dos padres carateriza-se
pelo “isolamento” e pelo “cansaço mental”.
Este cenário afeta padres e bispos, e a intromissão
das autoridades na vida das igrejas “pode gerar situações extremas”, como a
verificada no período de sede vacante,
por morte do Papa Francisco. O direito canónico veda, nesse período, a nomeação
de novos bispos. Ora, foi, precisamente, nesse período que o regime da RPC nomeou
dois novos bispos, um auxiliar, em Shangai, e outro, titular, em XianXiang, dois
zelosos fiéis do regime de Pequim. E, como refere o Bitter Winter, site especializado em temas religiosos na RPC, “como
sempre acontece, as assembleias de padres, freiras e leigos são convocadas e,
invariavelmente, ‘confirmam’ as escolhas do PCC”.
Outro caso recente foi o impedimento de os católicos
do país evocarem a memória do Papa Francisco, após a sua morte, a 21 de abril.
Era de esperar que, tendo o governo negociado o acordo com a Santa Sé, uma
celebração em memória do Papa não suscitasse dificuldades. Porém, a notícia só
foi recebida a 23 de abril, quando católicos de várias regiões estavam
concentrados em Nanjing, para celebrar uma vitória do PCC. E não foi feita qualquer
referência à morte de Francisco. A informação apareceu num órgão oficial, em
duas linhas, ao fundo de um bloco de notícias, sem chamada na primeira página.
Enfim, no
dizer da Asia News, a vida católica na China, é um “calvário”.
***
O caso mais
evidente de sinização é o do Tibete, desde a sua anexação pela RPC, em
1950-1951.
A sinização do Tibete consiste na
submissão aos programas e às leis do governo chinês e do PCC, que forçam a
“unidade cultural” nas áreas tibetanas da China, incluindo a Região Autónoma do Tibete (TAR) e áreas autónomas vizinhas do Tibete.
Os esforços são empreendidos pela China, alegadamente, para refazer a cultura
tibetana, na cultura chinesa dominante.
Para
facilitar o processo, o governo chinês introduziu uma série de reformas económicas,
sociais, culturais, religiosas e políticas. E os críticos citam, como um dos principais
componentes da sinização, a migração patrocinada pelo governo de grande número
de Chineses Han para a TAR.
De acordo com
o governo tibetano no exílio, a política chinesa redundou no
desaparecimento de elementos da cultura tibetana, pretendendo as políticas tornar
o Tibete parte integrante da China e controlar o desejo de autodeterminação tibetana.
O 14.º Dalai Lama e a Administração Central do Tibete caraterizaram
os programas de sinização como genocídio ou limpeza cultual. Ao
invés, o governo chinês afirma que as suas políticas beneficiaram o Tibete e
que as mudanças culturais e sociais são consequências da modernização.
Segundo o governo, a economia do Tibete expandiu-se; os serviços e
infraestruturas aprimorados melhoraram a qualidade de vida dos Tibetanos;
e a língua e a cultura tibetanas foram protegidas.
***
Após a queda
da dinastia Qing e antes de 1950, a região que corresponde,
aproximadamente, à atual TAR era estado independente de facto, embora
não reconhecido por outros estados. Imprimia moeda e postagem e tinha relações
internacionais, mas sem troca de embaixadores. O Tibete reivindicou três
províncias (Amdo, Kham e Ü-Tsang), mas só controlou o Oeste de Kham e
Ü-Tsang. A China anexou Kham oriental a Sichan e Kham ocidental à
nova TAR.
No início do
século XX, no período da RPC que se seguiu a dinastia Qing, o general
chinês muçulmano e governador Qinghai, Ma Bufang, é acusado pelos Tibetanos
de implementar, em áreas tibetanas, políticas de sinização e de islamização. Após
ganhar a guerra civil chinesa, em 1949, o objetivo de Mao Zedung era
a unificação das cinco nacionalidades como a RPC, sob o PCC. O governo
tibetano, em Lhasa, enviou Ngabo para Chamdo, em Kham, cidade
estratégica perto da fronteira, para manter a sua posição, enquanto chegavam
reforços de Lhasa, para lutar contra os Chineses. A 16 de outubro de 1950,
chegou a notícia de que o Exército de Libertação do Povo (PLA) avançava para
Chamdo e tomara a cidade de Riwoche (que poderia bloquear a rota para
Lhasa). Ngabo e os seus homens retiraram-se para um mosteiro, onde o PLA os
cercou e capturou. Ngabo escreveu a Lhasa, sugerindo a rendição pacífica,
em vez da guerra. Depois, aceitou o Acordo de 17 Pontos, de Mao que estipulava que, em troca de o
Tibete se tornar parte da RPC, lhe seria concedida autonomia. Sem
apoio do Mundo, em agosto de 1951, o Dalai Lama enviou um telegrama a Mao a
aceitar o acordo, que os delegados assinaram sob coação.
Embora a
incorporação do Tibete na China seja conhecida na Historiografia chinesa
como a “Libertação Pacífica do
Tibete”, o Dalai Lama Dalai considera-a colonização e o
Congresso da Juventude Tibetana, uma invasão.
Antes do
acordo, a economia do Tibete era dominada pela agricultura de subsistência e
a permanência de 35 mil soldados chineses, na década de 1950, prejudicava o
abastecimento de alimentos da região. Quando o Dalai Lama visitou Mao Zedong,
em Pequim, em 1954, Mao disse-lhe que mudaria 40 mil agricultores chineses para
o Tibete.
Como parte
do “Grande Salto Adiante”, da década de 1960, as autoridades chinesas
coagiram os agricultores tibetanos a cultivar milho, em vez de cevada (a
cultura tradicional da região). A colheita falhou e milhares de Tibetanos
morreram de fome.
A Revolução
Cultural, envolvendo estudantes e trabalhadores do PCC, foi iniciada por Mao e
conduzida pela Gangue dos Quatro, de 1966 a 1976, para preservar
o maoísmo como a principal ideologia da China, e foi uma luta dentro
do PCC para eliminar a oposição política a Mao.
A Revolução
Cultural afetou a China e o Tibete. Os Guardas Vermelhos atacaram
civis, acusados de traição. Mais de seis mil mosteiros tibetanos foram
saqueados e destruídos. Monges e freiras foram forçados a deixar os mosteiros
para viverem uma vida normal, e encarcerados os que resistiram. E os
prisioneiros foram obrigados a trabalhos forçados, torturados e executados.
***
O Projeto
Estratégico Nacional da China para o Desenvolvimento do Ocidente, introduzido na
década de 1980, após a Revolução Cultural, incentiva a migração de Chineses de
outras regiões da China para o Tibete com bónus e com condições de vida
favoráveis. Assim, muitas pessoas se voluntariam para serem enviadas para lá
como professores, médicos e administradores para ajudar no desenvolvimento do
Tibete.
Os tibetanos
são o grupo étnico maioritário na TAR, constituindo cerca de 93% da população,
em 2008. Os ataques de 2008 por Tibetanos a propriedades pertencentes a
Han e a Hui foram, supostamente, devidos ao grande influxo de Han e de
Hui, no Tibete. E, segundo George Fitzherbert, envolver-se com os
argumentos da China a respeito do Tibete é estar sujeito a um tipo de armadilha
intelectual e familiar como no conflito palestiniano, por meio da qual a
disputa é encurralada em questões difíceis de contestar.
O governo
chinês tentou desenvolver o Tibete como parte da sua política de
desenvolvimento ocidental da China. Por exemplo, a Ferrovia Qinghai foi
concluída em 2006, levando ao aumento do turismo do resto da China; e alguns
jovens tibetanos identificam-se como tibetanos e como chineses e são fluentes
em Tibetano e em Mandarim.
Em agosto de
2020, Xi Jinping, secretário-geral do PCC, afirmou que é “necessário
orientar, ativamente o budismo tibetano”, para se adaptar à sociedade
socialista e para promover a sua sinização. E, segundo a Associated Press, em
agosto de 2021, WangYang declarou, em frente ao Palácio de Potala que são
necessários esforços, para garantir que os Tibetanos compartilhem os “símbolos
e imagens culturais da nação chinesa”.
O governo afirma
que controlará como o 15.º Dalai Lama será escolhido, contrariando séculos de
tradição. Assim, quando o Dalai Lama confirmou um menino tibetano, em 1995,
como a reencarnação do Panchen Lama, o segundo líder da seita Gelugpa,
o governo retirou o menino e os pais e instalou o seu próprio lama. O paradeiro
do Dalai Lama escolhido, Gedhun Choekyi Nyima, é desconhecido, mas o governo
afirmou que ele tem emprego estável e vida normal.
No Tibete, as
escolas advertem os pais de que os alunos não devem frequentar as aulas em mosteiros,
nem envolverem-se em qualquer atividade religiosa, o que acarretará pesadas
sanções.
A remoção bandeiras
de oração, símbolos da cultura tibetana e da crença religiosa, aumentou desde
2010; e, em junho de 2020, as autoridades chinesas iniciaram o programa de
“reforma comportamental”, no Qinghai’s Golog da TAR e no condado de Tengchen
(Dingqing) em Chamdo, ordenando a destruição das bandeiras de oração. E o
relatório anual do Centro Tibetano para Direitos Humanos e Democracia, de 2019,
descobriu que as forças policiais e equipas de vigilância se mudaram para
mosteiros e para vilas, para monitorarem residentes tibetanos em busca de
sinais de oposição ao governo da China.
No verão de
2019, as autoridades chinesas demoliram milhares de residências, no centro
budista tibetano Yachen Gar, na província de Sichuan, deslocando até seis mil
monges e freiras; em abril de 2019, fecharam a Larung Gar Buddhist Academy para
novas inscrições; e têm intensificado a repressão à posse ou à exibição de
fotos do Dalai Lama e monitorado os festivais religiosos.
Em protesto
contra as políticas repressivas do governo, pelo menos, 156 tibetanos se
autoimolaram desde fevereiro de 2009. *
A sinização
estende-se ao ensino obrigatório do Mandarim nas escolas e a sua utilização
oficial, embora a Constituição da RPC, estipule a autonomia das regiões étnicas.
Por outro lado, em 2003, o governo chinês
lançou uma política que exigia que os nómadas (em concreto, os pastores)
se mudassem para moradias urbanas, em vilas recém-construídas; e, em 2017, foram
obrigados a voltar, sem os seus animais, devido a nova política anunciada, em
2016, para que as autoridades usassem as suas casas como centros turísticos e como
habitação de funcionários do governo.
***
É ambígua a
avaliação que se faz das intenções do PCC. Em 1989, Robert Badinter, advogado criminal
francês, participou num episódio de Apostrophes, programa de
televisão francês dedicado aos direitos humanos, com o Dalai Lama, e, referindo-se
ao desaparecimento da cultura tibetana, usou a expressão “genocídio cultural”,
que o Dalai Lama usou, em 1993, para o mesmo efeito. E, durante a agitação
tibetana de 2008, acusou a China de genocídio cultural. Porém, igualmente, em
2008, Robert Barnett, diretor do Programa de Estudos Tibetanos da Universidade
de Columbia, sustentou ser a hora de abandonar as acusações de genocídio
cultural, vincando: “Acho que temos de superar qualquer sugestão de que os
Chineses são mal-intencionados ou estão a tentar acabar com o Tibete.” E,
na New York Review of Books, interrogava-se: “Por que, se a cultura
tibetana, dentro do Tibete, está a ser “rapidamente apagada da existência”,
tantos Tibetanos, no Tibete, ainda parecem ter uma vida cultural mais vigorosa,
com mais da centena de revistas literárias em Tibetano, do que as suas
contrapartes no exílio?”
Em minha
opinião, é de censurar o controlo minudente de cada passo das pessoas e dos
grupos, como é intolerável o recurso à violência para consecução dos próprios intentos,
a utilização abusiva e exploratória de pessoas pobres ao serviço dos interesses
do governo e o ataque às crenças e à liberdade de culto. Revolução cultural? Qual
Revolução? Qual cultura? Receio que, daqui a alguns anos, algo similar aconteça
em Hong-Kong e em Macau.
A sinização
pode trazer progresso económico, mas nada há que substitua as liberdades. Por outro
lado, os fins não justificam os meios.
2025.06.03 – Louro de Carvalho
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