segunda-feira, 16 de junho de 2025

O programa do governo diverge do programa eleitoral da AD

 

A 14 de junho, deu entrada na Assembleia da República (AR), para discussão parlamentar, o programa do governo, que se prevê não vir a ser rejeitado. Todavia, é diferente do programa eleitoral da força política que venceu as eleições de 18 de maio, a nova Aliança Democrática (AD), e não tem em conta os avisos de várias instituições, que acusam a degradação dos números mundiais e nacionais. 
Dois candidatos à Presidência da República, Luís Marques Mendes e Henrique Gouveia e Melo, elogiaram o programa do governo, admitindo que é reformador, mas advertem que é preciso esperar para ver se contribuirá para o desenvolvimento do país. E o novel candidato António José Seguro, na apresentação da sua candidatura presidencial, a 15 de junho, não lhe fez qualquer referência, apenas acentuando que o país não pode andar sempre em eleições, que precisa de estabilidade política e que está para unir todos os Portugueses. Ora, não sei se vale a pena unir os Portugueses em torno de um projeto político qualquer.  

Os dois dirigentes mais proeminentes do Partido Socialista (PS), José Luís Carneiro, candidato único à liderança, que prometeu viabilizar o programa do governo e os seus orçamentos, e o presidente do partido, Carlos César, criticaram o governo, no dia 15, por ter medidas no seu programa não previstas no manifesto eleitoral, prometendo mais oposição. José Luís Carneiro considera essa “atitude incorreta, que deve merecer, para já, a censura” do PS. E Carlos César criticou Luís Montenegro por ter “omitido, no programa eleitoral”, propostas que “integra agora no programa do governo”.

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Sobre a primeira questão, escreveu Vítor Matos, no Expresso online, a 14 de junho, relevando as divergências entre o programa enviado à AR e o programa eleitoral da AD.
Assim, a AD entrou na campanha eleitoral com um programa a dizer que 2029 seria a data para atingir a meta da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) para os gastos em Defesa de 2% do produto interno bruto (PIB), mas que o objetivo podia ser antecipado, se não prejudicasse o Estado Social e potenciasse o investimento industrial. Nunca, antes das eleições, foi escrito, nem dito, nem referido que o ano de antecipação poderia ser 2025.
Tendo em conta o que o primeiro-ministro (PM) participará na Cimeira da NATO, entre 24 e 25 de junho, será preciso, segundo o Expresso mobilizar ou reclassificar, pelo menos, 1439 de euros milhões adicionais, no orçamento do Ministério da Defesa, que é de 3100 milhões, representando a verba necessária 46% da área tutelada por Nuno Melo.
Outra omissão relevante é o aumento dos investimentos em Defesa, nos próximos anos, já que os dois documentos em causa não preveem que se possa chegar aos 3,5% do PIB de gastos militares, como se prevê que a cimeira da NATO concluirá, muito menos aos 5%, mesmo incluindo infraestruturas.
No texto disponibilizado ao eleitorado, não aparece a expressão “legislação laboral”, apesar de serem elencadas várias medidas, nesta área, nem a palavra “greve”. A ideia da revisão da lei da greve foi levantada por Luís Montenegro, durante campanha, a propósito da greve na CP, mas não figurava no documento da AD, o qual era vago, quanto às leis laborais, na previsão de revisitação do enquadramento legal e no acento do privilégio da concertação social na definição das regras da relação laboral, “ajustadas à realidade de cada setor, ao invés do código do trabalho e demais enquadramentos genéricos legislativos associados”. Já o programa do governo assume a intenção da “revisão da legislação laboral”, no contexto da concertação social, para “melhorar a adequação do regime legal aos desafios do trabalho na era digital” e para “equilibrar a proteção dos trabalhadores com uma maior flexibilidade dos regimes laborais”, “essencial para aumentar a produtividade e competitividade das empresas”. E julga “crucial que a legislação laboral permita às empresas responder, celeremente, a alterações do mercado e do seu modelo de negócio”, pelo que deverá ser atenuado o grau de rigidez da legislação laboral.
O programa eleitoral elencava uma série de medidas para modernizar o Estado, mas não se comprometia com o fim de entidades da administração central. Criticava a fixação ideológica do PS, na propriedade e na gestão estatal, para justificar as privatizações, mas não referia a “guerra à burocracia”, declarada pelo PM, no discurso de tomada de posse. Contudo, a expressão aparece, por quatro vezes, no programa do governo. Além disso, a reforma do Estado não foi tema muito debatido na campanha eleitoral. Veio à tona com a escolha do novo ministro Adjunto e da Reforma do Estado, um dos herdeiros do tempo da troika.
Apesar de o documento da AD referir a intenção de prosseguir com a reorganização de funções e com a extinção de observatórios inúteis, de estruturas duplicadas e de revisão de despesa associada, transversal a toda a Administração Pública (AP), isto não implicava a “redução líquida das entidades da Administração Direta do Estado”, isto é, cortes em organismos, como serviços centrais, direções-gerais e serviços periféricos como as direções regionais.
Assumir alterações na Saúde, uma das áreas que mais preocupa os Portugueses, é um risco eleitoral. Por isso, o documento oferecido aos eleitores, prevê extensas reformas, investimentos e a reorganização do sistema de saúde, como a implementação do Plano de Emergência e Transformação da Saúde (PETS) – tão propagandeado como ineficaz, a reestruturação da gestão do Serviço Nacional de Saúde (SNS), o reforço de equipas e de meios, e a aposta em parcerias público-privadas (PPP). Porém, não menciona a revisão da Lei de Bases da Saúde (LBS) como uma das medidas ou objetivos. Agora, com uma maioria clara de direita na AR, o governo passou a prever a revisão da LBS – que foi alterada, pela última vez, pelo PS, com a ministra Marta Temido – como medida fundamental para a sustentabilidade do sistema de saúde, no contexto de transformação dos seus pilares fundamentais: organização dos cuidados, recursos humanos e financiamento.
No atinente à imigração, a AD previa a criação de um programa de atração, de acolhimento e de integração de imigrantes, com vista, “sempre que possível, à imigração regulada dos núcleos familiares”. A expressão “núcleos familiares” sinalizava a abertura à entrada de unidades familiares de forma regulada, como, aliás, era a posição do chefe do governo, o qual, ainda em outubro, queria privilegiar essas políticas. E a AD prometia “regular e ajustar a abertura dos canais de entrada (já previstos na lei) para cidadãos da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) e do reagrupamento familiar, tendo em conta a capacidade finita de integração do país e de resposta dos serviços públicos”, mas parecia um ajustamento ao que está na lei.
O programa eleitoral referia rever “a lei de estrangeiros, a lei de asilo”, com vista à “regulamentação dos centros de instalação temporária e [de] espaços equiparados, para implementar procedimentos de asilo justos, eficazes e convergentes”. Todavia, o programa do governo assume a “revisão da lei de estrangeiros e da lei de asilo”, como quadro legislativo que inclui a limitação de fluxos migratórios, “nomeadamente, o reagrupamento familiar”, que não integra o elenco de medidas apresentado ao eleitorado. E faz depender tais políticas da “capacidade dos serviços públicos e de integração da sociedade portuguesa, restringindo o visto para procura de trabalho” também “a candidatos com elevadas qualificações”.
Ambos os programas referem a luta contra a “xenofobia”, mas não mencionam a luta contra o “racismo”, termo que não consta em nenhum dos dois programas.

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A 12 de junho, também no Expresso online, Liliana Valente, alertava para a desatenção do programa do governo, em relação aos avisos de contenção das autoridades financeiras nacionais e mundiais. Há um ano, o excedente de cerca de três mil milhões de euros, levou o PM a garantir que não ficaria pelo “mais fácil”, que daria resposta às reivindicações de aumentos salariais para vários sectores da função pública e que manteria o “rigor orçamental”. Desde então, com o endurecimento das greves e das manifestações de rua e com a falência política das promessas, a agenda pública alterou-se e a estabilidade orçamental cedeu espaço à imigração, à segurança e, agora, à reforma do Estado.
Face aos vários avisos e previsões de várias instituições, nas últimas semanas, a deixarem pairar o risco de défice orçamental e de crescimento económico menor do que o previsto, o Executivo assobia para o lado e empurra a barriga para a frente, privilegiando outros temas, como a reforma do Estado e o aumento de investimento em Defesa, temas centrais no discurso de posse do chefe do governo, mas de reduzido debate eleitoral.
Ante o contexto mundial de incerteza e os vários alertas de crise económico-financeira, o governo não irá para esses temas, para não causar alarme. Contudo, no dizer de Liliana Valente, as questões económicas e financeiras podem impor-se por si.
Atualmente, as condições económicas e financeiras estão mais incertas com a degradação económica mundial, por via da incerteza provocada com a reentrada de Donald Trump na Casa Branca. E, nas últimas semanas, surgiram vários sinais de que, no horizonte do próximo ano e meio, poderá ocorrer significativa deterioração do contexto económico e financeiro que pode afetar as contas públicas e o desempenho da economia. Além da contração já sentida no primeiro trimestre deste ano e de o PIB já ter registado o segundo pior resultado do euro, Bruxelas faz alertas sobre a despesa pública primária, o valor que conta para as instituições europeias avaliarem o cumprimento das regras. E, em termos de contas públicas, a Comissão Europeia estima, para este ano, um superavit baixo de 0,1%, e um crescimento económico de 1,8%, muito abaixo do previsto pelo governo, 2,4%, e da última previsão do Conselho de Finanças Públicas (CFP), 2,2%.
Por seu turno, o Banco de Portugal (BdP) avançou com uma previsão ainda mais pessimista de 1,3% de crescimento do PIB.
Mário Centeno, que poderá estar de saída do cargo de governador do BdP, diz que os números conhecidos mostram dinâmicas preocupantes. Com efeito, os últimos seis meses evidenciam destruição líquida de emprego, com “redução muito significativa da taxa de contratação e [com] um aumento das taxas de separação”. Por isso, de acordo com o ainda governador do BdP, “a complacência é algo que devemos evitar em política económica”.
O responsável pela política monetária em Portugal quis dizer que o governo não está a ler os sinais emitidos, de modo a poder concluir, segundo Liliana Valente, “se os riscos internacionais, como as decisões, ao minuto, de Trump sobre as tarifas, acrescentam incerteza, as decisões de política nacional estão a pôr em risco o que tem garantido um ciclo positivo consistente da economia portuguesa, o mercado de trabalho”. E foi, sobretudo, no mercado de trabalho (de cujas mudanças, nos últimos anos, Mário Centeno mais se orgulha) que se focou, para dizer que o governo tem de prestar atenção à imigração, pois, “sem imigração, a economia portuguesa não cresce.”
Além disso, o governador do BdP alertou para a dívida pública, em crescimento, há cinco meses, e para o que isso significa, nesta altura, “porque os dados da execução orçamental mostram que os saldos orçamentais estão apenas ancorados nos resultados positivos da Segurança Social”. Assim, de acordo com Mário Centeno, “qualquer flutuação no mercado de trabalho pode levar a défices orçamentais e estes acontecerem, quando estamos em crescimento económico, que devia ser aproveitado para reduzir dívida”.
O Presidente da República (PR) considerou tais alertas expectáveis, na visão “preventiva” e mais “economicista” do papel do BdP, e contrapôs-lhes as obrigações sociais do governo.

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Seria de esperar que o governo não deixasse de falar de temas, para não criar alarme público. A função governativa não admite omissões, tal como não admite enfatização do negrume geral. Compete ao governo fazer uma gestão adequada da informação ao país, sem estados de alma, e estar atento aos alertas das autoridades financeiras.  

O futuro líder do PS referiu “a questão da Saúde” e “as matérias laborais”, como assuntos não abordados na campanha eleitoral, nem no programa eleitoral, e que, “agora, estão no programa do governo”. Segundo José Luís Carneiro, que assumiu o voto contra na moção de rejeição ao programa do governo apresentada pelo Partido Comunista Português (PCP), estes temas “vão merecer uma apreciação estudada e fundamentada por parte do Partido Socialista”, que “vai colocar-se sempre do lado do país e das preocupações das pessoas.”

Carlos César, presidente do PS e secretário-geral interino, até haver novo, acusa o governo, em mensagem no Facebook, de se estar a chegar “mais à direita”, tentando seduzir a Iniciativa liberal (IL) e o Chega, com “a promessa de medidas”, que são “negativas” para o PS. Contudo, segundo o  dirigente socialista, “o PS não deve aprovar uma moção de rejeição no Parlamento”. Apenas promete mais oposição do que a prevista. Faz lembrar António José Seguro, então secretário-geral do PS a ameaçar com uma oposição mais violenta.

Do meu ponto de vista, por coerência, o PS deveria alterar a sua posição, uma vez que o governo alterou os pressupostos, o que levará o PS a ficar colado à deriva mais direitista da AD.

Vítor Matos, no Expresso online, a 14 de junho, evocou a polémica lançada por Gouveia e Melo, ao admitir que poderia dissolver a AR, se o governo não cumprisse, de forma grave, promessas centrais do seu programa, para questionar o que havia de fazer, se acontecesse o inverso, isto é, se o governo apresentasse um programa para executar com medidas que não foram sufragadas pelos eleitores, por não constarem no programa eleitoral. 

É uma questão pertinente, que subscrevo. É certo que incumbe ao governo, nos termos constitucionais, a definição da política geral do país, mas se o PR entende que deve pôr sob vigilância o cumprimento das promessas, também o deverá fazer, quanto a medidas não previstas para o sufrágio eleitoral, a menos que, a meio de mandato, surgissem factos que as justificassem, de modo premente, como uma pandemia, uma guerra e/ou um surto inflacionista.

Em todo o caso, as campanhas eleitorais são feitas de propaganda enganosa ou de meias verdades. E as juras irrevogáveis facilmente se contornam.

Só se deixa enganar o desatento ou o obcecado pelo partidarismo. Mal a AD se viu com uma maioria à direita, quase tudo lhe passou a servir, talvez exceto uma revisão constitucional subversiva.  

2025.06.15 – Louro de Carvalho


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