quarta-feira, 18 de junho de 2025

Instituições europeias alarmadas com discurso de ódio em Portugal

 
Em relatório publicado a 18 de junho, os peritos da Comissão Europeia Contra o Racismo e a Intolerância (ECRI), órgão do Conselho da Europa, manifestam profunda preocupação com os casos de violência racista, motivada pelo ódio, e falam mesmo na banalização de uma retórica xenófoba, até no discurso político, sob o pretexto da liberdade de expressão, apontando as principais vítimas: migrantes, pessoas ciganas, LGBTI e negras. Por outro lado, criticam a atuação da polícia, no atinente a palavras e a ações, e as escolas, por falhas nos conteúdos abordados para uma educação inclusiva.
***
Na verdade, o discurso de ódio em Portugal registou um “aumento acentuado”, de acordo com a ECRI, que alerta para um crescimento online e critica o “discurso antimigrante nas discussões políticas” – isto, depois de um trabalho de monitorização da situação do racismo e da intolerância no nosso país.
Os investigadores dizem-se preocupados com “o aumento do discurso de ódio online” e com um discurso inflamatório utilizado por alguns políticos, que divide as pessoas. “Embora não existam dados oficiais e desagregados sobre incidentes de discurso de ódio, em Portugal, vários relatórios credíveis de organizações da sociedade civil e de outras instituições independentes apontam para um aumento acentuado do discurso de ódio no país, que parece visar, predominantemente, migrantes, ciganos, LGBTI e pessoas negras”, refere a ECRI, que tem divulgado, a cada cinco anos, um relatório sobre o que se passa em Portugal.
 Os peritos dizem ter falado com interlocutores, em Portugal, que referiram haver uma espécie de “banalização do discurso de ódio, muitas vezes, sob o pretexto da liberdade de expressão”.
A ECRI também se diz preocupada com o aumento da xenofobia e do discurso de ódio contra os migrantes, que continua mais dirigido aos não europeus. “O discurso antimigrante é predominante nas discussões políticas, nomeadamente, através da disseminação de desinformação que associa os migrantes à criminalidade ou a um fardo para o sistema de segurança social português”, afirmam os especialistas, vincando que “as narrativas políticas negativas e hostis”, em torno da migração, assim como os comentários xenófobos, em particular, de políticos, “estão em contradição com a contribuição significativa dos migrantes para a sociedade portuguesa”.
Neste sexto relatório da ECRI, os peritos olham para o que foi feito nos últimos anos e reconhecem que houve melhorias em várias áreas, como a aprovação, em 2021, do primeiro Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação (PNCRD), que inclui ações para combater o discurso e os crimes de ódio. Também o Código Penal foi alterado, em 2024, para reforçar o crime de incitamento à discriminação, ao ódio e à violência – mudança aplaudida pelos peritos.
Porém, continua a haver relatos de violência motivada pelo ódio, por vezes, envolvendo grupos neonazis, num país onde as “lacunas significativas” na legislação e na ação das entidades policiais e judiciais fazem com que muitas queixas não tenham quaisquer consequência para os agressores. E continua a haver relatos de abuso racista, que incluem discriminação racial e xenófoba, por parte da própria polícia.
Perante este cenário, os peritos recomendam às autoridades portuguesas a implementação de medidas que melhorem as relações e a confiança entre a polícia e os grupos que preocupam a ECRI, incluindo migrantes, negros, LGBTI e ciganos.
O relatório analisa também a situação dos emigrantes irregulares, lembrando que devem pagar pelos cuidados, exceto quando se trate de situações de urgência médica, de riscos para saúde pública, de saúde materno-infantil, de saúde reprodutiva, de vacinação e de situações de exclusão social ou de grave carência económica comprovada pela Segurança Social.
No entanto, os peritos ouviram “diversos relatos sobre dificuldades práticas no acesso à saúde”, como funcionários que negaram, indevidamente, o atendimento ou histórias de xenofobia. Por isso, a ECRI pede melhor formação dos profissionais sobre os direitos dos migrantes irregulares e avaliações regulares, para identificar e para prevenir comportamentos xenófobos no setor.
A ECRI, alertando também para o bullying nas escolas portuguesas, defende a obrigatoriedade de os currículos abordarem o combate ao racismo e à “discriminação de pessoas negras, ciganas e LGBTI”. É certo que, nos últimos anos, houve uma melhoria no combate ao racismo e à intolerância, mas ainda há situações a melhorar, defendem os peritos, os quais, tendo ouvido relatos e detetado lacunas e discrepâncias, em relação ao que deveria ser uma educação inclusiva, consideram preocupantes os casos de bullying que têm como alvo os alunos migrantes, negros, ciganos e LGBTI.
Na disciplina de “Cidadania e Desenvolvimento”, por exemplo, “há discrepâncias importantes entre escolas” no atinente ao tempo dedicado à disciplina e aos conteúdos abordados. Se, nos anos iniciais, os temas são integrados no currículo geral, nos níveis superiores, a disciplina passa a ser autónoma e, como as escolas têm autonomia sobre as matérias, algumas acabam por “não abordar temas, como o racismo e a intolerância contra pessoas negras, LGBTI ou ciganas”, referem os peritos. Por isso, a ECRI recomenda às autoridades portuguesas que a educação em direitos humanos passe a ser uma “parte obrigatória do currículo, com conteúdos mínimos obrigatórios, em todas as escolas, incluindo combate ao racismo, à intolerância e à discriminação de pessoas negras, ciganas e LGBTI”.
Ao mesmo tempo, recomenda formação inicial e contínua de professores e pede que seja incentivada a formação obrigatória dos docentes, sobre a igualdade e a não discriminação, em especial, para os que lecionam a disciplina de “Cidadania”.
No relatório, o órgão consultivo do Conselho da Europa reconhece haver boas medidas já implementadas, como a Rede de Escolas para a Educação Intercultural ou projetos da sociedade civil como o “Educação LGBTI” da Rede Ex Aequo, e formações antirracistas do Grupo Educar. Contudo, sobre estes projetos, “recomenda maior apoio”, até porque há um “aumento dos casos de bullying, particularmente, contra estudantes migrantes, negros, ciganos e LGBTI”.
Segundo uma pesquisa realizada pela Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (UE), 71% dos inquiridos LGBTIQ foram alvo de insultos, de ameaças ou de humilhações, pelo que a ECRI recomenda que as autoridades reforcem as ações de prevenção e de combate ao bullying racista e LGBTI-fóbico, através de formação de professores, do melhoramento do sistema de monitorização de incidentes, com dados desagregados, e de políticas específicas de prevenção dirigidas a alunos mais vulneráveis.
Por outro lado, os peritos saúdam a publicação de duas orientações práticas – o “Guia para Prevenir e Combater a Discriminação Racial na Escola” e o “Guia sobre o Direito de Ser Se Mesmo na Escola” (desenhado a pensar nos estudantes LGBTI) – e recomendam a sua “ampla divulgação” junto da comunidade escolar.
Também o plano “Escola sem Bullying, Escola sem Violência” é aplaudido pelos investigadores, que lamentam que a plataforma digital de registo de incidentes não permita a extração de dados desagregados, por motivo de preconceito, de idade ou de género.
Os investigadores, olhando para os manuais escolares, lamentam que “quase nada tenha sido feito para melhorar o ensino da História Colonial Portuguesa, da escravatura e da violência nas ex-colónias”. Por isso, recomendam que os manuais escolares e os conteúdos curriculares sejam revistos e que os professores recebam formação adequada sobre o colonialismo, a escravatura e as suas ligações com o racismo contemporâneo.
Outro dos pontos referidos no estudo é a baixa representatividade de pessoas negras e ciganas nos currículos escolares, convidando as autoridades a incentivar uma representação positiva dessas comunidades e a apoiar a contratação de professores de origem cigana e africana.
***
Não obstante, há quem levante a questão se, de facto, se trata de realidade ou de mera perceção. A leitura de um artigo da Lina Ferreira intitulado “Aumento do discurso de ódio e agressões: o que se passa em Portugal?”, publicado, a 18 de junho, pela Euronews, pode servir de esclarecimento.
Na verdade, os casos de agressões, os grupos neonazis e o discurso de ódio “passaram a ser o novo normal em Portugal”, no dizer da articulista, após ter recolhido testemunhos, como o de Carla Nunes Semedo, que denunciou, a 15 de junho, nas redes sociais, que a “filha, de 17 anos, tinha sido atacada por um condutor de autocarro”, que achou por bem dizer-lhe que não transportava animais”.
Salienta Lina Ferreira que Carla Nunes Semedo é negra, mas não é uma cidadã anónima: “é vereadora da Câmara de Cascais, uma vila na Área Metropolitana de Lisboa” e que “o caso teve eco na imprensa e espoletou uma investigação por parte da companhia de autocarros”.
E a vereadora, responsável pelos pelouros da Saúde, Assuntos Sociais e Direitos Humanos, anota a tendência do “aumento deste tipo de casos”. Porém, mais preocupante ainda é “o aumento do discurso de ódio” e “a sua normalização”, isto é, a “perda da vergonha” e o à-vontade com que se profere o que, durante anos, esteve camuflado sob o véu do “politicamente correto”.
Todos os dias, há notícias de agressões, de discurso de ódio ou de movimentos de extrema-direita. E, nos últimos tempos, deu brado o facto de, dois dias após a denúncia de Carla Semedo, isto é, a 17 de junho, a Polícia Judiciária (PJ) portuguesa ter detido seis suspeitos de integrarem um grupo de extrema-direita apoiado por uma milícia armada, alegadamente seguidores de “um ideário antissistema e conspirativo, que incentivava à discriminação, ao ódio e à violência contra imigrantes e refugiados”, segundo a PJ.
O país ainda não se tinha recomposto dos ataques do 10 de junho, contrapostos aos notáveis discursos oficiais de igualdade fundamental, de tolerância e de inclusão, e “um elemento de grupo, alegadamente, nazi atacou um ator à porta de um teatro em Lisboa”, como aponta Lina Ferreira, fazendo eco do que foi notícia na comunicação social. E prossegue a articulista: “Umas horas depois, no Porto, dois homens agrediram voluntárias que prestavam assistência a sem-abrigo, por estarem a ajudar estrangeiros  Os suspeitos terão feiro a saudação nazi.”
Todavia, para lá de tudo isto, as organizações de combate ao racismo denunciam que há muitos mais casos que nunca chegam a ser noticiados, nomeadamente, agressões a migrantes, o que é motivo de preocupação, como sustenta o Conselho da Europa.
E a articulista coloca, explicitamente a questão: “Será que o discurso aumentou mesmo em Portugal ou é apenas uma perceção?”
Ora o Conselho da Europa considera que há, efetivamente, uma tendência de crescimento e a ECRI, no seu relatório quinquenal, fala em “razões para a preocupação”. “Houve um aumento acentuado do discurso de ódio em Portugal, direcionado, principalmente, a migrantes, pessoas ciganas, LGBTI e pessoas negras”, diz a ECRI, vincando o “aumento do discurso de ódio na Internet, do discurso inflamatório de alguns políticos e também de casos de violência a envolver grupos neonazis”.
Também conclui que “não tem sido feito o suficiente para apoiar os desafios dos ciganos e que as iniciativas educacionais para este grupo são esporádicas e limitadas”.
De facto, os imigrantes “enfrentam a xenofobia no acesso à habitação”, alguns são “sem-abrigo ou vivem em casas sobrelotadas ou sem condições dignas” e estão particularmente vulneráveis, devido a “atrasos nos processos de regularização”.
O relatório defende que é preciso fazer mais para combater estes crimes, por exemplo, melhorar as leis, aprimorar investigação e prevenir os casos de abusos racistas praticados pela polícia. É certo que há progressos, mas são insuficientes e podem ser substituídos por retrocessos.
Os casos denunciados coincidem com o aumento da imigração, em Portugal. O país tem cerca de 1,5 milhões de imigrantes, um aumento acentuado desde 2017, quando havia pouco mais de 400 mil imigrantes. Nesse ano, foi simplificada a regularização dos imigrantes, através da manifestação de interesse. E, aponta-se, indevidamente, o excesso de crimes à permanência de imigrantes, quando o crime não é caprichoso na escolha de pessoas ou de etnias.  
Neste contexto, verifica-se também o aumento da extrema-direita. Nas últimas eleições legislativas, de 18 de maio, o partido Chega – de cujas bandeiras faze parte “a hostilidade, em relação à imigração e aos ciganos” – passou a ser a segunda força política, na Assembleia de República, ultrapassando o Partido Socialista (PS).
Porém, é de registar um dado positivo: muitas das vítimas, sobretudo nacionais portugueses, parecem estar mais atentas e conscientes dos seus direitos. Assim, como refere Lina Ferreira, na publicação, em que denunciava a agressão à filha, Carla Semedo dizia que, apesar de ser difícil falar sobre o caso, “é mais duro calar” e avisava: “Nós já não somos os mesmos. Não somos mais aqueles que, por respeito ou [por] medo, engoliam em seco o ódio disfarçado de ‘opinião’. Não somos mais os que aceitavam ofensas, em nome da paz social.”
***
Em suma, a realidade não pode ser negada, nem ocultada. Antes, importa prevenir o crime (expresso em palavras e em ações) e combatê-lo. Para tanto, há que o denunciar. Por outro lado, o Estado deve melhorar (não piorar) as leis e dotar o país dos meios de vigilância, de investigação e de apoio aos ofendidos, bem como de promover uma Justiça atempada, célere e eficaz. E também as instituições educativas, sociais e culturais devem promover a consciencialização das pessoas para os seus direitos e para a necessidade de os protegerem e exercerem, assim como dos seus deveres e para a necessidade de os cumprirem.

2025.06.18 – Louro de Carvalho


terça-feira, 17 de junho de 2025

O Papa Leão XIV recupera tradições deixadas de lado por Francisco

 
Desde a primeira aparição saudação aos fiéis do Mundo, após ser eleito para o sumo pontificado, a 8 de maio, Leão XIV retomou pequenas tradições do ministério petrino que tinham sido abandonadas pelo Papa Francisco.
Por exemplo, apareceu na varanda central da basílica de São Pedro envergando a mozeta, pequena capa de veludo vermelho com uma borda a cobrir os ombros, simbolizando a autoridade do papa e a sua vocação à compaixão.
Essa vestimenta, que não foi usada pelo papa Francisco, marcou, desde o início, um gesto de continuidade com costumes enraizados na História da Igreja.
Também envergou a casula, cujo nome deriva do latino “casula” (casinha), vestimenta litúrgica externa usada sobre a alva e a estola, que muda de cor conforme o ano litúrgico. Leão XIV já usou várias casulas notáveis, entre elas, uma usada pelo Papa São João Paulo II.
Leão XIV também usa a estola, que representa a consagração sacerdotal do Papa e a sua responsabilidade maior de guiar a Igreja como um bom pastor, e o báculo pastoral nas celebrações litúrgicas. Aliás, essa não foi uma tradição abandonada por Francisco, apenas foi suspensa quando passou a utilizar a cadeira de rodas ou a deslocar-se com a bengala de pé tríplice.
O báculo destina-se a apoiar a caminhada, não fazendo sentido usá-lo sentado ou a par com uma bengala necessária circunstancialmente. 
Em ocasiões recentes, o atual Santo Padre (atual é redundância, pois não há outro) também começou a usar calças brancas por baixo da batina papal branca. O Papa Francisco, ao contrário dos seus antecessores, usava calças pretas.
Leão XIV também reviveu algumas tradições na liturgia e na oração. Uma das mais notáveis ​​foi o canto do Regina Caeli, em Latim, na sua primeira oração mariana na Páscoa, que coincidiu com o Domingo do Bom Pastor. Muitos fiéis reunidos na praça de São Pedro ficaram visivelmente surpreendidos, ao ouvirem o Pontífice cantar esta oração.
Cá está, uma tradição que Francisco não manteve, pois não cantava. Na verdade, pronunciava a bênção papal rezando. E o mesmo fazia com as orações da missa ou do ofício. Até o “Gloria in excelsis Deo” era entoado por um elemento da Schola Cantorum. Não era por aí que vinha mal ao Mundo. A diocese de Aveiro e, posteriormente, a do Porto tiveram como seu bispo, um santo bispo que não cantava, mas de cuja capacidade pastoral não se duvidava.   
Leão XIV falou sobre a sua disposição de retomar a antiga tradição de impor, pessoalmente, o pálio aos novos arcebispos metropolitas, na solenidade dos santos Pedro e Paulo, a 29 de junho. Este rito, carregado de simbolismo, foi modificado, em 2015, por decisão de Francisco, que ordenou que o pálio, uma faixa de lã branca adornada com seis cruzes de seda preta, fosse entregue nas arquidioceses de origem, como sinal de comunhão com a Igreja local, não implicando a deslocação propositada dos metropolitas a Roma. Ao retomar esse costume, Leão XIV restabelece o vínculo dos arcebispos metropolitanos com o Papa e com a Sé Apostólica.
Na esfera litúrgica, diz a jornalista espanhola Almudena Martínez-Bordiú, no ACI digital, que também houve ênfase no uso do canto latino e gregoriano nas celebrações solenes na basílica de São Pedro. Pessoalmente, não concordo que tenha havido esse reforço. Com efeito, também no tempo de Francisco, mesmo quando não era ele a presidir à Liturgia Eucarística, por ser difícil deslocar-se e manter-se de pé (ele presidia ao ritos iniciais, à Liturgia da Palavra e aos ritos finais, envergando o pluvial e permanecendo na cadeira da presidência), o cardeal celebrante e os concelebrantes rezavam a Liturgia Eucarística em Latim e, normalmente, os cânticos em Latim eram entoados em gregoriano, quase em alternância a cânticos em Italiano.
A Santa Sé confirmou, a 17 de junho que, diferentemente do Papa Francisco, o Leão XIV passará as férias de verão nas vilas pontifícias de Castel Gandolfo, retomando a tradição seguida pelos papas anteriores a Francisco, aliás, com também diferentemente do seu imediato predecessor, passou a habitar os aposentos papais do Palácio Apostólico e não uma habitação em Santa Marta.
Francisco optou por Santa Marta, por motivos de convivência com as outras pessoas, como explicou; e optou por não passar férias Castel Gandolfo, talvez por não gostar muito das instalações, pelo que ali criou um museu e abriu as portas à população. Nada mau!
Leão vai lá passar as férias, pois não está disposto a prescindir de nenhuma das atribuições que a História da Igreja descobriu como própria do sucessor de Pedro, a menos que venha a contradizer gravemente o Evangelho.
Nos aposentos papais do Palácio Apostólico, pode receber pessoas e em Castel Gandolfo, dada a sua magreza, Leão XIV pode coexistir com o museu e manter as portas abertas à população, celebrando com o povo os ofícios litúrgicos.

***

Nada me move a favor da manutenção dessas tradições, nem contra, pois há razões para uma e para outra opção. Só espero que o Santo Padre mantenha o núcleo fundamental da renovação conciliar e sinodal, num aprimoramento da doutrina, sem a deixar cristalizar e sem a deixar cair numa certa “pirosidade”, e numa ousadia abrangente da ação pastoral para e com todos, privilegiando os mais débeis e simples, mas atento às diversas correntes teológicas e pastorais, colocando-as ao maior serviço Deus, da Igreja e do Mundo.            
E, sobretudo, espero que mantenha a proximidade possível com o povo e que não se deixe arrastar para uma deriva ultraconservadora, como alguns tentarão. E já há uma amostra. 
Como refere a jornalista Kristina Millare, no ACI digital, o cardeal Raymond Burke disse ter pedido ao papa Leão XIV o fim das restrições à celebração da missa tradicional em Latim impostas pelo Papa Francisco.
Raymond Burke, discursando numa conferência em Londres organizada pela Sociedade da Missa em Latim, da Inglaterra e do País de Gales, disse aos participantes esperar que o novo papa “ponha fim à perseguição” aos fiéis que querem celebrar a missa utilizando o “uso mais antigo” – “usus antiquior” – da liturgia romana.
Burke, prefeito emérito do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica e ex-patrono da Ordem de Malta, foi um dos sete convidados a falar na conferência sobre fé e cultura, no dia 13 de junho.
O bispo auxiliar de Astana, Cazaquistão, Athanasius Schneider, que já escreveu muito sobre a Eucaristia e sobre a tradição da Igreja, também falou na conferência de fim de semana que marcou o 60.º aniversário daquela sociedade sediada no Reino Unido. “Certamente já tive a oportunidade de expressar isso ao papa”, disse Burke por videoconferência. “Espero que ele, o mais breve possível, se dedique ao estudo desta questão.”
Depois do Concílio Vaticano II, o papa São Paulo VI promulgou o Novus Ordo Missae, em 1969. Essa liturgia, que permite celebrar a missa em língua vernácula, além do Latim, alterou, substancialmente, a liturgia anterior, que data do Concílio de Trento, no século XVI, e substituiu a missa tradicional.
Ora, como é sabido e a jornalista em referência não o desdiz, o Concílio Vaticano II não aboliu o Latim da liturgia, ao invés do que muitos dizem, antes permitiu, com vista a melhor consciencialização e à côngrua participação de todos, o uso da língua vernácula e urgiu a simplificação das cerimónias e a ênfase na abundante proclamação e meditação da Palavra, tornando a liturgia mais próxima da Bíblia e mais adequada à resposta aos desafios pastorais. 
Os papas São João Paulo II e Bento XVI libertaram o uso dos livros litúrgicos anteriores à reforma do Concílio Vaticano II, supostamente, para incluir, de pleno direito, os conservadores num Igreja plural. Mas o problema não está no Latim, nem no recurso ao “usus antiquior”. Está na rejeição da liturgia pós-conciliar, que acusam de herética, e também, implícita ou explicitamente, na rejeição da própria doutrina conciliar.
Por exemplo, querem a missa solene com três padres, sendo que um faz de diácono e outro faz de subdiácono e com uma série de acólitos. E, no caso das missas de pontifical, tem o bispo de ser acompanhado por uma dezena de ajudantes ou mais. A missa é de costas para o povo. Só os sacerdotes é que podem dar a comunhão e pegar no cálice e na patena; a comunhão é de joelhos e recebida só na língua; só o celebrante pode comungar sob as duas espécies (de pão e de vinho); não aceitam a concelebração; e os padres que não celebrem missa com o povo celebram-na com um ajudante, podendo ser na mesma igreja, em altares diferentes e ao mesmo tempo.
A questão está nestas cambiantes doutrinais e disciplinares, não no Latim.          
Na conferência, Raymond Burke expressou o seu desejo de que o Papa Leão XIV revogue o motu proprio “Traditionis custodes”, escrito pelo Papa Francisco, em 2021, que restringe a missa tradicional em Latim, e restaure o motu proprio Summorum Pontificum”, publicado por Bento XVI, em 2007, disse o jornal católico inglês Catholic Herald.
“Espero que [Leão XIV] continue a desenvolver o que o Papa Bento XVI legislou, com tanta sabedoria e amor, para a Igreja”, disse Burke, na conferência.
Além das críticas ao Traditionis custodes, o cardeal americano criticou publicamente outras iniciativas do papa Francisco.
Em 2016, Burke e outros três cardeais apresentaram dubia, “dúvidas”, em Latim, que na tradição da Igreja são pedidos formais de esclarecimento, sobre interpretações da exortação apostólica Amoris laetitia.
O cardeal também criticou o sínodo de 2019 sobre a Região pan-Amazónica, convocado pelo Papa Francisco, dizendo que partes da agenda pareciam “contrárias” à doutrina da Igreja.

***

Também há reações em sentido inverso. Por exemplo, a arquidiocese do Rio de Janeiro (RJ) orientou os fiéis católicos a não participarem em eventos da Associação Civil Centro Dom Bosco (CDB), depois que a instituição “se autodeclarou sob a direção” da Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX) “e de ministros que a ela pertencem ou a suas comunidades amigas”.

Trata-se de uma associação de leigos que “se reúnem para rezar, estudar e defender a fé”, diz o seu site oficial. Afirma ter a missão de ajudar a resgatar a bimilenar Tradição da Igreja, através de livros, de aulas e de iniciativas apologéticas.

Em nota de 16 de junho, assinada pelo delegado episcopal para a atenção pastoral dos grupos de fiéis que celebram o rito romano, segundo o missal anterior à reforma de 1970, monsenhor André Sampaio de Oliveira, a arquidiocese ressalta que, embora a sua sede civil se localize na cidade do Rio de Janeiro, o CDB “não tem qualquer vínculo ou reconhecimento eclesial na arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro”. “Os seus Estatutos jamais foram apresentados para reconhecimento ou aprovação às autoridades eclesiásticas competentes locais, configurando-se como mera associação constituída segundo o direito civil brasileiro, mas sem qualquer status canónico oficial”, acrescenta a nota, que foi publicada por causa de algumas “recentes declarações públicas” do CDB, como a divulgação do VIII Fórum Nacional da Liga Cristo Rei, promovido pela associação a 23 e 24 de agosto, no Rio de Janeiro, “colocando-se publicamente sob a direção espiritual da Fraternidade Sacerdotal São Pio X e sacerdotes a ela pertencentes (ou pertencentes a suas comunidades amigas)”.

A FSSPX é a sociedade sacerdotal tradicionalista canonicamente irregular criada pelo arcebispo francês Marcel Lefebvre, em 1970. E a arquidiocese acusa-a de ostentar “sérias oposições, em matéria de obediência à autoridade de todos os papas exercida desde o Concílio do Vaticano II, bem como oposições às próprias diretrizes do mesmo Concílio”. E recorda que Lefebvre morreu “na condição de publicamente excomungado, por ato considerado pela Santa Sé como cismático de ordenar quatro bispos, sem mandato pontifício, no ano de 1988”.

O CDB divulgou, nas suas redes sociais, a realização do VIII Fórum Nacional da Liga Cristo Rei, destacando que uma das novidades deste ano é a presença de padres ligados à FSSPX, que estarão a palestrar, a atender confissões e a celebrar “a missa de sempre” (que não é verdade: é do século XVI), como se referem à missa anterior à reforma conciliar. Os padres que estarão presentes são: os da FSSPX, Lourenço Fleichman e Estêvão F. da Costa; o padre Wander de Jesus Maia, da diocese de Santo Amaro (SP), e padre Françoá Costa, da diocese de Anápolis (GO), ambos que anunciaram a aproximação com a FSSPX, neste ano.

O CDB diz que, “o Papa Paulo VI, no discurso de encerramento do Concílio Vaticano II, a 7 de dezembro de 1965, ofereceu um ‘remédio’ ao Mundo moderno, mas um remédio que, em vez de curar, intoxicou ainda mais a alma da civilização”. “Não propôs a correção dos erros, enganos e vaidades do homem moderno, mas encorajou-o a perseverar no seu humanismo sem Deus. Um verdadeiro veneno”, afirma o CDB, acrescentando que, “diante dessa realidade alarmante – e inesperada da parte de um Sumo Pontífice –, homens de Deus como monsenhor Marcel Lefebvre escolheram seguir um outro caminho, ou melhor, o caminho de sempre: não a religião do homem que se faz deus, mas a religião do Deus que se fez homem”.

O CDB convida as pessoas a participarem no evento e a juntarem-se em defesa do Reinado Social de Cristo, fiéis ao mandato apostólico de transmitir, sem adulterações, a fé recebida”.

A nota de esclarecimento da arquidiocese citou outra medida do CDB, “como resultado de seguir de perto” as oposições da FSSPX, a publicação de “uma tradução de obra do autor inglês Michael Haynes, denominada ‘Os Erros do Catecismo Moderno’ (‘A Catechism of Errors’), em que são expostas críticas indevidas ao Catecismo da Igreja Católica (CIC), em pontos em que este consagra as decisões e diretrizes assumidas pela Igreja Católica”, por ocasião do Vaticano II. E a arquidiocese ressalta que o CIC, aprovado em 1992, teve a sua publicação ordenada por São João Paulo II, “expressamente em virtude de sua autoridade apostólica”.

O prefácio de Os Erros do Catecismo Moderno foi escrito pelo arcebispo italiano Carlo Maria Viganò, excomungado pela Santa Sé, desde julho de 2024 pelas suas opiniões gravemente problemáticas, considerado culpado do delito canónico de cisma, pela recusa pública de reconhecer e de se submeter ao Papa, de manter a comunhão com os membros da Igreja a ele sujeitos e de aceitar a legitimidade e autoridade magisterial do Concílio Vaticano II.

Por fim, a arquidiocese enfatiza que, enquanto a FSSPX “não tiver uma posição canónica legítima na Igreja, também os seus ministros não exercem ministérios legítimos na Igreja”. Por isso, “os fiéis devem abster-se de participar nas suas atividades ou nas associações jurídica ou espiritualmente a ela vinculadas, como é o caso CDB.

2025.05.17 – Louro de Carvalho

Consequências do hipotético encerramento do Estreito de Ormuz

 
No âmbito do conflito que opõe Israel e Irão, está a ser colocada, da parte do Irão, a séria hipótese do bloqueio do Estreito de Ormuz, o que trará consequências para todo o Mundo, com particular impacto na Europa, pois a Administração de Informação de Energia dos EUA (EIA), frisando a importância estratégica da passagem que liga o Golfo Pérsico ao Golfo de Omã e ao Mar Arábico, chama-lhe “o ponto de estrangulamento de petróleo mais importante do Mundo”.
Na verdade, o comandante da Guarda Revolucionária iraniana, Sardar Esmail Kowsari, declarou aos meios de comunicação locais que o encerramento do Estreito de Ormuz “está a ser considerado e o Irão tomará a melhor decisão com determinação”. “As nossas mãos estão bem abertas, quando se trata de punir o inimigo, e a resposta militar foi só parte da nossa resposta global”, sustentou Kowsari, que, para lá do cargo militar, é membro do parlamento.
***
O Estreito de Ormuz está situado no Médio Oriente, na entrada do Golfo Pérsico, entre Omã, na Península Arábica e o Irão. É uma das principais rotas de comércio, pois é uma via marítima estratégica por onde transita mais de 33% do petróleo mundial e 20% do transporte marítimo mundial. Por isso, qualquer coisa que aconteça por ali reflete-se nos preços dos combustíveis de origem fóssil e na economia do Mundo. De pequena extensão, tem 54 quilómetros (km) de largura mínima e o seu trecho mais largo não passa de 100 km.
Para alguns, é assim chamado, por derivar do nome do Deus Persa Ormoz; e, para outros, o nome é oriundo de uma palavra persa local “hur-mogh, que significa Tamareira.
O Estreito de Ormuz – faixa de água, só com 29 milhas náuticas de largura, no seu ponto mais estreito – é a única ligação entre o Golfo Pérsico e os oceanos. Todo o tráfego marítimo de e para os principais países exportadores de petróleo do Mundo tem de passar por via, que é também importante para o transporte de gás natural liquefeito (GNL) do Qatar, o seu maior fornecedor mundial. O seu ponto mais estreito situa-se entre o Irão, ao Norte, e Omã, ao Sul. Considerando-se as águas territoriais dos dois países, a zona navegável reduz-se a 10 quilómetros. E é nessa faixa de água que os superpetroleiros passam, diariamente, transportando mais de 15 milhões de barris de petróleo. O petróleo vem de países, como a Arábia Saudita, o Iraque, o Irão, o Kuwait, o Qatar, o Barhein e os Emirados Árabes Unidos (EAU), com destino aos Estados Unidos da América (EUA), à Europa Ocidental e, sobretudo, à China, à Índia e ao Japão.
Tudo começou em 1959, quando o Irão resolveu expandir o mar territorial para 12 milhas náuticas (22 km), anunciando que só reconheceria o trânsito de passagem inocente (passagem contínua e rápida, estabelecida pelo direito costumeiro internacional). E também eram proibidas manobras militares, atos de propaganda, pesquisa e busca de informações, pesca e levantamentos hidrográficos. Omã fez o mesmo, em 1972, e o Estreito de Ormuz foi fechado.
Porém, os navios precisavam de passar pelas águas territoriais dos dois países. Para tanto, Omã instituída a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS), em 1989, declarou que era permitida apenas passagem inocente pelo seu mar territorial, obedecendo às disposições da UNCLOS. Os navios de guerra estrangeiros precisavam de autorização prévia.
Por seu turno, o Irão, que assinou a convenção de 1982, exigiu que só os Estados – que integravam a Convenção do Direito do Mar – pudessem beneficiar dos direitos do contrato estabelecidos e realizar a passagem de trânsito nos trechos internacionais de navegação. 
Em 1993, o Irão promulgou nova lei de áreas marítimas, com diversos pontos de conflito com as regras da UNCLOS. A exigência incluía a permissão prévia de navios de guerra, submarinos e de navios nucleares, para obter passagem inocente pelas águas territoriais iranianas. Porém, os EUA contestaram todas as reivindicações do Irão e de Omã. Por isso, foi instalada uma estação de radar para monitorar o tráfego TSS (Esquema de Separação de Tráfego) no Estreito de Ormuz – localizada no pico da ilha enclave de Musandam.  
Devido à importância da passagem para as exportações de petróleo, essa área é, frequentemente, motivo de disputas fronteiriças entre os países da região. O Irão e os EAU reivindicam as ilhas de Abu Musa e Tunb Maior e Tunb Menor, para controlarem o Estreito de Ormuz.
A comunidade internacional também monitoriza o estreito atentamente. Há anos que os EUA têm presença robusta na região, no intuito de fazerem valer as liberdades marítimas, até mesmo por meios militares, se necessário. 
Sempre que a tensão aumenta no Oriente Médio, vem à tona o temor de um bloqueio do Estreito de Ormuz pelo Irão. Teerão ameaçou, repetidamente, impor tal medida, através de unidades navais e de mísseis de médio alcance, para retaliar as sanções decretadas pela comunidade internacional ao país, devido ao seu programa nuclear. Do ponto de vista militar, o bloqueio pode ser facilmente imposto, por o Estreito de Ormuz correr ao longo de muitos quilómetros da costa iraniana. Entretanto, especialistas avaliam-no como improvável, pois o Irão prejudicar-se-ia a si mesmo: arriscar-se-ia a entrar em conflito com os países vizinhos, que vivem das exportações de petróleo, e com aqueles cujas indústrias são dependentes da importação do produto.
Ainda que o bloqueio total do Estreito de Ormuz pelo Irão seja improvável, o país capturou um petroleiro de bandeira britânica, em 2019, e tomou, em janeiro de 2021, o navio-tanque Hankuk Chemi, de bandeira sul-coreana.
Embora não na medida necessária, os países da região possuem rotas alternativas para o escoamento da sua produção de petróleo, caso ocorra um bloqueio no Estreito de Ormuz. Os EAU têm um gasoduto que liga Abu Dhabi diretamente ao Golfo de Omã, evitando, assim, o Estreito de Ormuz pela parte Sul. A Arábia Saudita possui um oleoduto que pode levar o petróleo do Golfo Pérsico ao Mar Vermelho. Com eles, os dois países querem reduzir a sua dependência geopolítica. Todavia, as capacidades existentes não bastariam para compensar a escassez resultante de eventual bloqueio. De acordo com especialistas, elas não cobririam nem sequer o consumo diário de petróleo da China e do Japão.
***
A questão bloqueio levanta-se também no conflito em curso, de que resultariam graves consequências. Os mísseis de curto e médio alcance do Irão poderiam atingir plataformas de infraestruturas petrolíferas, oleodutos no Estreito e mesmo atacar navios comerciais, e os mísseis terra-terra poderiam atingir navios-tanque ou portos, ao longo do Golfo. Os ataques aéreos com aviões e com drones poderiam desativar equipamentos de navegação ou de radar nos principais portos de navegação da região. De facto, os drones não tripulados, como os modelos Shahed do Irão, podem ser utilizados para atacar rotas de navegação ou infraestruturas específicas no estreito. O Irão poderá tentar enviar navios de guerra, para bloquear fisicamente o acesso ao estreito. Em 2012, o Irão lançou um ciberataque contra a indústria petrolífera da Arábia Saudita, mostrando a sua crescente capacidade neste domínio.
Sendo o Estreito de Ormuz dos pontos de estrangulamento estrategicamente mais importantes do Mundo, qualquer bloqueio, por parte do Irão, representaria sérios riscos para a Europa.
O bloqueio do Estreito é, hipoteticamente, uma das respostas iranianas ao conflito, incluindo os atos terroristas na Europa continental, que o especialista em segurança Claude Moniquet, antigo funcionário dos serviços secretos franceses, mencionou, em entrevista à Euronews, dizendo que seria uma catástrofe para a Europa”. E há razões que fundamentam o temor.
Em termos de ameaça à segurança energética, é de anotar que cerca de 20% do petróleo mundial (e quase um terço do petróleo transportado por mar) e parte significativa (um quinto) do gás natural passam pelo estreito. A Europa importa petróleo e gás natural liquefeito (GNL) dos países do Golfo, da Arábia Saudita, do Qatar e dos EAU, grande parte do qual passa por ali. Se o Irão o bloquear, o preço do petróleo subirá, a nível mundial, e a Europa enfrentará escassez de energia, sobretudo, nos países dependentes do combustível do Médio Oriente, o que levaria ao aumento da inflação e dos custos da energia, perturbando, em especial, os setores da indústria transformadora, dos transportes e da agricultura, com efeito de arrastamento nas reações do mercado e na volatilidade das bolsas europeias.
Um bloqueio poderia desencadear confrontos militares entre os EUA, as marinhas da União Europeia (UE) e os Estados do Golfo, com o risco de guerra regional mais vasta. A Europa poderá ser envolvida no conflito pelas obrigações da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), sobretudo, se países, como a França ou o Reino Unido mantiverem presença naval na região. Seria a insegurança e a escalada militar.
Para lá do petróleo e do GNL, o estreito é uma rota fundamental para o transporte marítimo mundial, cujas perturbações atrasariam as importações europeias de matérias-primas, de produtos eletrónicos e de bens de consumo, afetando as cadeias de abastecimento. O preço dos seguros para o transporte marítimo subiria, aumentando os custos para as empresas e para os consumidores europeus. Enfim, haveria perturbações no transporte marítimo e no comércio.
***
Os mercados globais permaneceram relativamente calmos, face às crescentes tensões entre Israel e Irão. Porém, segundo alguns especialistas, esse sentimento pode mudar, rapidamente, se o conflito afetar o Estreito de Ormuz, que é um dos pontos de estrangulamento mais críticos do Mundo, para o fluxo do petróleo e do GNL. E, se as exportações de petróleo forem interrompidas, ou se o Irão tentar bloquear o estreito, o mercado global de petróleo poderá enfrentar um risco existencial.
Cerca de 20 milhões de barris de petróleo fluem pelo estreito diariamente, segundo a EIA. E Rob Thummel, gerente sénior de portfólio da empresa de investimentos em energia Tortoise Capital, afirmou que a possível interrupção no Estreito de Ormuz faria os preços do petróleo dispararem para 100 dólares, por barril. Portanto, está visto que um estreito funcional é “absolutamente essencial” para a saúde da economia global.
Existe sempre a ameaça latente de que o estreito seja bloqueado pelo Irão, durante o conflito, mas, nesse caso, o Irão enfrentaria uma imensa reação global, pois cerca de um quarto do fornecimento mundial de petróleo transita pela via aquática, segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), cujo relatório de 17 de junho sustenta que “o fechamento do Estreito, mesmo por um período limitado, teria um impacto importante nos mercados globais de petróleo e gás natural”. 
O Centro Conjunto de Informações Marítimas, organização focada em navegação global, disse, em comunicado, no dia 16, que está a monitorizar de perto a situação. Embora o número de trânsitos pelo Estreito de Ormuz tenha mostrado uma pequena diminuição, em navios de carga”, o estreito permanece aberto e o tráfego comercial continua a fluir.
Embora uma tentativa do Irão de fechar o estreito possa causar abalos no mercado, este não é o único risco. Um desenvolvimento mais preocupante seria um ataque às instalações de processamento de petróleo, como o ataque do Irão às instalações de processamento Alqaiq da Aramco, em 2019.
Analistas da RBC Capital Markets disseram que, embora seja difícil para o Irão fechar o Estreito de Ormuz, por um período prolongado, há outras formas de o conflito Israel-Irão interromper o tráfego marítimo e a produção de petróleo. “Com os ataques em cascata a instalações de gás, a depósitos de petróleo e a refinarias, a energia está, claramente, na mira do conflito Israel-Irão, e vemos o risco de uma grave interrupção no fornecimento aumentando, significativamente, num cenário de guerra prolongada”, declararam aqueles analistas, numa nota do dia 15.
Davide Accomazzo, professor de finanças da Escola de Negócios Graziadio, da Universidade Pepperdine, disse à CNN que uma possível interrupção no Estreito de Ormuz continua a ser um “grande risco”, para o preço do petróleo, e não sabemos como o conflito vai prosseguir.
O mercado ainda espera que isso permanecerá contido e não envolverá os EUA, as infraestruturas de energia e o Estreito de Ormuz, mas há uma grande interrogação, porque podem surgir, de súbito, eventos exógenos.
***
Na sequência dos ataques israelitas ao Irão, os responsáveis iranianos levantaram o espetro do encerramento do Estreito, o que provocou forte aumento dos preços do petróleo bruto.
De acordo com a AIE, cerca de 20 milhões de barris por dia (mb/d) de petróleo bruto e produtos refinados passaram pelo Estreito de Ormuz em 2023, representando quase 30% do total do comércio mundial de petróleo. A maior parte deste volume – cerca de 70% – teve como destino a Ásia, com a China, a Índia e o Japão, entre os maiores destinatários.
Embora haja infraestruturas alternativas de oleodutos, são limitadas. A AIE estima que apenas 4,2 mb/d de petróleo bruto podem ser reencaminhados através de rotas terrestres, como o oleoduto Este-Oeste da Arábia Saudita para o Mar Vermelho e o oleoduto de petróleo bruto de Abu Dhabi, nos EAU, para Fujairah. Esta capacidade representa um quarto do volume diário típico que transita pelo Estreito. Assim, uma crise prolongada no Estreito de Ormuz perturbaria os fornecimentos dos principais produtores do Golfo e tornaria inacessível a maior parte da capacidade de produção mundial disponível, que se concentra no Golfo Pérsico.
Os mercados de GNL estão mais expostos a potenciais perturbações. Todas as exportações de GNL do Qatar e dos EAU têm de passar pelo Estreito. Sem rotas alternativas viáveis, qualquer encerramento marítimo restringiria, gravemente, o abastecimento mundial. 
Embora o encerramento total continue como cenário de baixa probabilidade, os analistas dizem que a ameaça, só por si, é suficiente para injetar volatilidade nos mercados energéticos. Deste modo, os preços do petróleo bruto subiram já 13%, devido à escalada das tensões entre Israel e o Irão. E, embora os preços tenham diminuído, ligeiramente, outra vez, depois de os relatórios terem confirmado que as infraestruturas energéticas iranianas não foram afetadas pelos ataques israelitas, o risco de nova escalada e de potencial perturbação dos fluxos energéticos globais continua elevado.
Os analistas de Wall Street apressaram-se a avaliar as possíveis consequências de eventual interrupção do transporte de petróleo e gás através do Golfo Pérsico, em particular, do Estreito de Ormuz. E o Goldman Sachs alertou para o facto de um cenário de risco extremo, envolvendo um encerramento prolongado do Estreito, fazer subir os preços bem acima dos 100 dólares, por barril.
Como as forças iranianas e israelitas continuam a trocar ataques, o risco de erro de cálculo é grande. E, numa região onde a diplomacia é frágil e os riscos são elevados, um passo em falso pode transformar um conflito regional numa crise energética global. Esperamos que não.

2025.06.17 – Louro de Carvalho


segunda-feira, 16 de junho de 2025

Pensionistas e taxas de pobreza na Europa

 
De acordo com os últimos dados da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE), sobre a matéria, na maioria dos países europeus, o rendimento médio das pessoas com mais de 65 anos é inferior ao da população total. Em vários casos, os rendimentos dos idosos são inferiores a 80% da média nacional, o que contribui para taxas de pobreza significativamente elevadas entre os reformados / aposentados.
Na maior parte dos casos, o rendimento destas pessoas advém das pensões resultantes da acumulação de descontos, decorrente de uma longa carreira contributiva em ambiente de trabalho. Isto, para não falar daqueles que vivem de uma pensão social magríssima. E, em geral, as pensões tendem a ser cada vez mais diminutas.    
Os pensionistas (reformados e aposentados) tendem a enfrentar maiores dificuldades financeiras na Europa Oriental, enquanto as taxas de pobreza são, geralmente, mais baixas nos países nórdicos e da Europa Ocidental. Não obstante, há particularidades na situação do Reino Unido e da Suíça.
As taxas de pobreza medem a proporção de pessoas no extremo inferior da escala de distribuição de rendimentos. Especificamente, a taxa de pobreza refere-se à percentagem da população cujo rendimento se situa abaixo do limiar de pobreza. E, segundo a OCDE, este limiar é definido como 50% do rendimento mediano do agregado familiar da população total.
Por exemplo, em 2022, na França, o rendimento mediano disponível das famílias, ajustado à dimensão do agregado familiar, era de 26410 euros, pelo que o limiar de pobreza era de 13205 euros. E, nesse ano, a taxa de pobreza dos pensionistas, em 30 países europeus, variava entre 3,1 %, na Islândia e 37,4 % na Estónia, medindo a percentagem de pessoas com mais de 65 anos com rendimentos inferiores a metade do rendimento mediano disponível do agregado familiar.
Os pensionistas tendem a ser mais vulneráveis financeiramente, na Europa Oriental, em especial, nos Estados Bálticos e em vários países pós-comunistas, ao arrepio do que proclamam muitos dos nossos comentadores, que sustentam que os países do Leste crescem mais do que Portugal. A seguir à Estónia, as taxas de pobreza dos pensionistas mais elevadas são as da Letónia, com 33%, da Croácia, com 28,5%, e da Lituânia, com 24,6%. Ao invés, as taxas de pobreza dos pensionistas tendem a ser mais baixas na Europa Ocidental e do Norte. Assim, registam algumas das taxas mais baixas a Islândia (3,1%), a Noruega (4,1%), a Dinamarca (4,3%) e a Finlândia (5,5%), países que beneficiam de fortes sistemas de proteção social e de regimes de pensões universais.
No entanto, destacam-se, com taxas de pobreza dos pensionistas relativamente elevadas, a Suíça (19,8%) e o Reino Unido (14,9%). E, entre as cinco maiores economias da Europa, o Reino Unido regista a taxa mais elevada, seguido de perto pela Alemanha (14,1%) e pela Espanha (13,1%).
Já a Itália tem um desempenho ligeiramente melhor, com 12%, enquanto a França se destaca com a taxa mais baixa de longe – apenas 6%.
Outro dado relevante é que as taxas de pobreza das mulheres pensionistas são muito mais elevadas do que as dos homens, em parte, devido a uma maior esperança de vida.
Entre os principais fatores da pobreza dos pensionistas, sobressaem, como fator principal, os baixos pagamentos de pensões, o que “contribui para a pobreza dos pensionistas”, de acordo com Andrew Reilly, analista de pensões da OCDE, segundo o qual, “mesmo com carreiras profissionais relativamente longas, as pensões são baixas na Estónia, no Japão, na Coreia do Sul, na Letónia e na Lituânia”, que têm algumas das taxas mais elevadas de pobreza dos reformados.
“Nos Estados Bálticos, as elevadas taxas de pobreza resultam de pensões baixas relacionadas com os rendimentos e de prestações relativamente baixas da rede de segurança”, explicitou.
A força das pensões de primeiro nível, ou pensões do Estado, pode reduzir as taxas de pobreza nos cidadãos mais velhos, proporcionando um rendimento mínimo garantido. Assim, os países que dispõem de grandes prestações da rede de segurança para os pensionistas, destinadas aos mais pobres, ou pagas universalmente a todos, tendem a apresentar níveis mais baixos de pobreza entre os grupos etários mais velhos, comparativamente com os números globais da população, como é o caso da Dinamarca, da Islândia e da Noruega. Já a Letónia e a Lituânia têm níveis baixos de prestações da rede de segurança.
Outro dado a considerar é o rendimento dos idosos, em comparação com a média nacional. Assim, o rendimento médio das pessoas com mais de 65 anos, considerado como uma percentagem do rendimento médio da população total, varia, significativamente, na Europa. Em 2022, variava entre 66,3%, na Estónia, e 107%, no Luxemburgo. Nestes termos, os adultos mais velhos, na Estónia, recebiam apenas dois terços do rendimento médio nacional.
Entre 29 países, o rácio de rendimento das pessoas com mais de 65 anos é inferior a 80% em vários casos. É o caso da Lituânia (66,5%), da Letónia (71,4%), da Croácia (73,4%), da Bélgica (76,2%), da Chéquia (76,7%), da Bulgária (77,2%) e da Suíça (79,4%).
O Luxemburgo lidera com 107%, seguido da Itália, 98,8%, Portugal (97,1%) e Espanha (96,7%).
Entre as maiores economias da Europa, a Itália e a Espanha apresentam os rácios mais elevados de rendimento dos idosos, seguidas de perto pela França, com 94,3%. Por exemplo, em 2022, o rendimento familiar disponível médio em França – ajustado à dimensão do agregado familiar – era de 30500 euros. As pessoas com mais de 65 anos receberam uma média de 28750 euros.
O Reino Unido situa-se abaixo, com 82,1%. Apesar da elevada taxa de pobreza dos pensionistas, na Alemanha, o rácio de rendimento dos idosos continua a atingir os 90%.
Este rácio pode flutuar bastante, de ano para ano, em alguns países. Por exemplo, na Turquia, foi de 97,3%, em 2019; subiu para 103%, em 2020; e caiu para 84,5% em 2022.
Por outro lado, o relatório Pensions at a Glance 2023, da OCDE observa que estes números se baseiam “em dados sobre o rendimento” e que “as diferenças consideráveis entre países em termos de riqueza (habitação ou outra) detida pelos idosos podem não se refletir nas taxas de pobreza monetária”. Ou seja, tanto o montante do rendimento das pensões como o seu poder de compra devem ser considerados, ao avaliar quais os países que oferecem as melhores condições para a reforma / aposentação.
***
Uma vez que as pensões influenciam o rendimento dos pensionistas, há que refletir sobre o panorama geral das pensões na Europa. E o que se verifica é uma forte correlação positiva entre a confiança financeira na reforma / aposentação e o nível das pensões mensais.
As pensões relacionadas com o rendimento constituem, na sua esmagadora maioria, a principal fonte de rendimento dos Europeus com 65 anos ou mais. Porém, menos de metade dos consumidores da União Europeia (UE) confia que terá dinheiro suficiente para viver, com conforto, durante a reforma e, em vários países, este nível de confiança desce para 30% ou mesmo para menos, o que suscita preocupações, quanto à adequação das pensões.
A proteção dos idosos contra a pobreza é uma função essencial dos regimes de pensões. As pensões de velhice são pagamentos periódicos destinados a manter o rendimento do beneficiário, após a reforma da atividade profissional remunerada na idade legal ou normal, ou a apoiar o rendimento das pessoas idosas, exceto se os pagamentos são feitos por um período limitado.
De acordo com o Eurostat, as pensões de velhice, na Europa, variam significativamente, tanto em termos nominais como em termos de poder de compra padrão (PPC).
Para simplificar, a Euronews Business converte o rendimento anual da pensão em montantes mensais, dividindo-o por 12 meses. Assim, em 2021, a despesa média mensal bruta com a pensão de velhice, por beneficiário na UE, variou muito, desde 2575 euros, no Luxemburgo, até 226 euros, na Bulgária, com a média da UE a situar-se em 1224 euros.
Incluindo os países da Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA) e os países candidatos à UE, a Islândia registou a média mais elevada, com 2762 euros, enquanto a Albânia registou a média mais baixa, com 131 euros.
A pensão de velhice, por beneficiário, excedeu a média da UE, em todos os “quatro grandes” países da UE. A Itália registou a pensão mais elevada, com 1561 euros, enquanto a França, a Espanha e a Alemanha apresentaram valores quase idênticos, cada uma com cerca de 1450 euros. E os países nórdicos também registaram bons resultados, com pensões de velhice médias superiores às dos “quatro grandes”.
Os sete países dos Balcãs ocupam os lugares mais baixos da classificação. A despesa média com as pensões de velhice, no Luxemburgo, é quase 11 vezes superior à da Bulgária, o que revela disparidades significativas. Mesmo considerando o Luxemburgo como um caso isolado, a média da UE continua a ser quase seis vezes superior à da Bulgária.
Algumas destas disparidades, em matéria de pensões, podem ser atribuídas à variação dos níveis de preços entre os estados-membros da UE, uma vez que o Eurostat observa que o custo de vida global difere significativamente, em toda a região.
Em termos de PPC, unidade monetária artificial que ajusta as diferenças de nível de preços entre países, as disparidades diminuem significativamente. Assim, a pensão média de velhice varia entre 437 euros, na Bulgária, e 1681 euros, no Luxemburgo, ou seja, um beneficiário de pensão, no Luxemburgo, recebe uma pensão bruta quase quatro vezes mais elevada do que o da Bulgária.
De acordo com o inquérito Eurobarómetro 2023, da Autoridade Europeia dos Seguros e Pensões Complementares de Reforma (EIOPA), apenas 42% dos consumidores da UE confiam que terão dinheiro suficiente para viver confortavelmente, durante a reforma. Os níveis de confiança apresentam uma variação significativa entre os países, sendo o Luxemburgo (61%), os Países Baixos (59%) e a Dinamarca (58%) os que registam maior confiança. Em contrapartida, os níveis de confiança mais baixos são os da Letónia (23%), da Eslovénia (27%) e da Polónia (28%).
Há, pois, correlação positiva entre o grau de confiança financeira para viver confortavelmente, durante a reforma, e o montante da pensão mensal de velhice. Tal correlação indica que os níveis de confiança mais elevados prevalecem em países com pensões mais altas, enquanto a confiança tende a diminuir em locais com pensões mais baixas.
De acordo com o briefing do Parlamento Europeu (PE), grupos de peritos e partes interessadas apresentaram uma série de recomendações para reforçar a sustentabilidade e a adequação dos regimes de pensões da UE. Na verdade, segundo o PE, “a forma como os regimes de pensões estão, atualmente, concebidos deixa um número crescente de pessoas em risco de pobreza na velhice”, uma tendência “contrária aos esforços da UE para reduzir a pobreza”.
A comparação dos níveis internacionais de pensões é um desafio, devido às significativas diferenças entre os regimes de pensões. Estas comparações não têm, frequentemente, em conta o impacto da tributação e das contribuições sociais nos montantes finais das pensões. Os valores são calculados a partir da base de dados do Eurostat, dividindo a despesa total com pensões de velhice pelo número de beneficiários. “É importante reiterar que estes valores relativos às despesas com pensões, por beneficiário, não refletem, necessariamente, o nível ou a adequação das pensões de velhice individuais nos diferentes países”, alerta o Eurostat.
***
De acordo com o relatório global sobre pensões do Mercer CFA Institute, os Países Baixos estão no topo da lista, ao comparar os sistemas de pensões em todo o Mundo. A Islândia ficou em segundo lugar, tendo sido destituída do seu primeiro lugar de 2022, e a Dinamarca ficou em terceiro lugar, no índice de 2023.
Foram analisados mais de 50 indicadores e comparados 47 sistemas de rendimentos na reforma, abrangendo 64% da população mundial. Os fatores mais relevantes foram o nível de benefícios de pensões dos setores privado e público disponíveis, a sustentabilidade do sistema para durar décadas, no futuro, e a qualidade da sua governação.
A maioria dos países europeus incluídos no relatório obteve uma boa classificação. Porém, são necessárias melhorias na Finlândia, na Noruega, na Suécia, no Reino Unido, na Suíça, na Irlanda, na Bélgica, em Portugal e na Alemanha. Por outro lado, a França, a Espanha, a Itália, a Polónia, a Áustria e a Croácia, bem como os Estados Unidos da América (EUA), apresentam riscos e/ou deficiências importantes que devem ser corrigidos. E ocupam os últimos lugares da classificação a Índia, as Filipinas e a Argentina, as quais, juntamente com a Turquia e a Tailândia, partilham a pior classificação, o nível D, o que indica que, sem melhorias, estão em dúvida a eficácia e a sustentabilidade do seu sistema de pensões.
O relatório reconhece que “os sistemas de rendimentos da reforma, em todo o Mundo, estão sob pressão como nunca antes”, devido à inflação persistente, à subida das taxas de juro e à incerteza geopolítica, que afetam os rendimentos dos investimentos.
Segundo Margaret Franklin, presidente e diretora executiva do CFA Institute, a idade média das populações continua a aumentar em muitos mercados, sobretudo nos mais maduros; a inflação e o aumento das taxas de juro criaram nova dinâmica de mercado que lança desafios significativos aos planos de pensões; e pesa a fraturação contínua, no atinente à globalização. “Estes são apenas alguns dos desafios, cada vez mais complexos, que os fundos de pensões enfrentam e que afetam os reformados, de forma significativa”, diz a especialista.
Por isso, o relatório recomenda que os decisores políticos levem a cabo as reformas necessárias, apesar da atual incerteza financeira e económica, para evitar colocar em risco o bem-estar dos atuais e futuros pensionistas, bem como o reforço das pensões garantidas por ativos (por oposição à repartição), o que pode contribuir para a diversificação das fontes de financiamento da reforma, tornando os sistemas de pensões mais resilientes.
Segundo o relatório, a inteligência artificial (IA) deverá melhorar o desempenho dos regimes de pensões, reduzindo os custos e assinalando os riscos futuros, pois os modelos de IA podem gerar informações falsas, quando utilizados num novo contexto, e ataques cibernéticos aos dados dos membros dos planos de pensões. Porém, de acordo com David Knox, sócio sénior do Mercer, a expansão da IA nas operações e nas decisões dos gestores de investimentos pode conduzir a “processos de tomada de decisão mais eficientes e mais bem informados” e “a retornos de investimento reais mais elevados para os membros dos planos de pensões”.
Outras utilizações da IA poderão incluir a criação de carteiras personalizadas e a identificação de anomalias no mercado, embora seja improvável que a IA preveja, com exatidão, os movimentos do mercado, pelo que a incerteza se manterá. Na verdade, a IA é uma ferramenta, não a solução.
***
Falamos de estatísticas, mas os valores médios não evidenciam as situações precárias de tantos pensionistas, a par dos obscenamente bafejados pelo sistema.

2025.06.16 – Louro de Carvalho


O programa do governo diverge do programa eleitoral da AD

 

A 14 de junho, deu entrada na Assembleia da República (AR), para discussão parlamentar, o programa do governo, que se prevê não vir a ser rejeitado. Todavia, é diferente do programa eleitoral da força política que venceu as eleições de 18 de maio, a nova Aliança Democrática (AD), e não tem em conta os avisos de várias instituições, que acusam a degradação dos números mundiais e nacionais. 
Dois candidatos à Presidência da República, Luís Marques Mendes e Henrique Gouveia e Melo, elogiaram o programa do governo, admitindo que é reformador, mas advertem que é preciso esperar para ver se contribuirá para o desenvolvimento do país. E o novel candidato António José Seguro, na apresentação da sua candidatura presidencial, a 15 de junho, não lhe fez qualquer referência, apenas acentuando que o país não pode andar sempre em eleições, que precisa de estabilidade política e que está para unir todos os Portugueses. Ora, não sei se vale a pena unir os Portugueses em torno de um projeto político qualquer.  

Os dois dirigentes mais proeminentes do Partido Socialista (PS), José Luís Carneiro, candidato único à liderança, que prometeu viabilizar o programa do governo e os seus orçamentos, e o presidente do partido, Carlos César, criticaram o governo, no dia 15, por ter medidas no seu programa não previstas no manifesto eleitoral, prometendo mais oposição. José Luís Carneiro considera essa “atitude incorreta, que deve merecer, para já, a censura” do PS. E Carlos César criticou Luís Montenegro por ter “omitido, no programa eleitoral”, propostas que “integra agora no programa do governo”.

***

Sobre a primeira questão, escreveu Vítor Matos, no Expresso online, a 14 de junho, relevando as divergências entre o programa enviado à AR e o programa eleitoral da AD.
Assim, a AD entrou na campanha eleitoral com um programa a dizer que 2029 seria a data para atingir a meta da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) para os gastos em Defesa de 2% do produto interno bruto (PIB), mas que o objetivo podia ser antecipado, se não prejudicasse o Estado Social e potenciasse o investimento industrial. Nunca, antes das eleições, foi escrito, nem dito, nem referido que o ano de antecipação poderia ser 2025.
Tendo em conta o que o primeiro-ministro (PM) participará na Cimeira da NATO, entre 24 e 25 de junho, será preciso, segundo o Expresso mobilizar ou reclassificar, pelo menos, 1439 de euros milhões adicionais, no orçamento do Ministério da Defesa, que é de 3100 milhões, representando a verba necessária 46% da área tutelada por Nuno Melo.
Outra omissão relevante é o aumento dos investimentos em Defesa, nos próximos anos, já que os dois documentos em causa não preveem que se possa chegar aos 3,5% do PIB de gastos militares, como se prevê que a cimeira da NATO concluirá, muito menos aos 5%, mesmo incluindo infraestruturas.
No texto disponibilizado ao eleitorado, não aparece a expressão “legislação laboral”, apesar de serem elencadas várias medidas, nesta área, nem a palavra “greve”. A ideia da revisão da lei da greve foi levantada por Luís Montenegro, durante campanha, a propósito da greve na CP, mas não figurava no documento da AD, o qual era vago, quanto às leis laborais, na previsão de revisitação do enquadramento legal e no acento do privilégio da concertação social na definição das regras da relação laboral, “ajustadas à realidade de cada setor, ao invés do código do trabalho e demais enquadramentos genéricos legislativos associados”. Já o programa do governo assume a intenção da “revisão da legislação laboral”, no contexto da concertação social, para “melhorar a adequação do regime legal aos desafios do trabalho na era digital” e para “equilibrar a proteção dos trabalhadores com uma maior flexibilidade dos regimes laborais”, “essencial para aumentar a produtividade e competitividade das empresas”. E julga “crucial que a legislação laboral permita às empresas responder, celeremente, a alterações do mercado e do seu modelo de negócio”, pelo que deverá ser atenuado o grau de rigidez da legislação laboral.
O programa eleitoral elencava uma série de medidas para modernizar o Estado, mas não se comprometia com o fim de entidades da administração central. Criticava a fixação ideológica do PS, na propriedade e na gestão estatal, para justificar as privatizações, mas não referia a “guerra à burocracia”, declarada pelo PM, no discurso de tomada de posse. Contudo, a expressão aparece, por quatro vezes, no programa do governo. Além disso, a reforma do Estado não foi tema muito debatido na campanha eleitoral. Veio à tona com a escolha do novo ministro Adjunto e da Reforma do Estado, um dos herdeiros do tempo da troika.
Apesar de o documento da AD referir a intenção de prosseguir com a reorganização de funções e com a extinção de observatórios inúteis, de estruturas duplicadas e de revisão de despesa associada, transversal a toda a Administração Pública (AP), isto não implicava a “redução líquida das entidades da Administração Direta do Estado”, isto é, cortes em organismos, como serviços centrais, direções-gerais e serviços periféricos como as direções regionais.
Assumir alterações na Saúde, uma das áreas que mais preocupa os Portugueses, é um risco eleitoral. Por isso, o documento oferecido aos eleitores, prevê extensas reformas, investimentos e a reorganização do sistema de saúde, como a implementação do Plano de Emergência e Transformação da Saúde (PETS) – tão propagandeado como ineficaz, a reestruturação da gestão do Serviço Nacional de Saúde (SNS), o reforço de equipas e de meios, e a aposta em parcerias público-privadas (PPP). Porém, não menciona a revisão da Lei de Bases da Saúde (LBS) como uma das medidas ou objetivos. Agora, com uma maioria clara de direita na AR, o governo passou a prever a revisão da LBS – que foi alterada, pela última vez, pelo PS, com a ministra Marta Temido – como medida fundamental para a sustentabilidade do sistema de saúde, no contexto de transformação dos seus pilares fundamentais: organização dos cuidados, recursos humanos e financiamento.
No atinente à imigração, a AD previa a criação de um programa de atração, de acolhimento e de integração de imigrantes, com vista, “sempre que possível, à imigração regulada dos núcleos familiares”. A expressão “núcleos familiares” sinalizava a abertura à entrada de unidades familiares de forma regulada, como, aliás, era a posição do chefe do governo, o qual, ainda em outubro, queria privilegiar essas políticas. E a AD prometia “regular e ajustar a abertura dos canais de entrada (já previstos na lei) para cidadãos da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) e do reagrupamento familiar, tendo em conta a capacidade finita de integração do país e de resposta dos serviços públicos”, mas parecia um ajustamento ao que está na lei.
O programa eleitoral referia rever “a lei de estrangeiros, a lei de asilo”, com vista à “regulamentação dos centros de instalação temporária e [de] espaços equiparados, para implementar procedimentos de asilo justos, eficazes e convergentes”. Todavia, o programa do governo assume a “revisão da lei de estrangeiros e da lei de asilo”, como quadro legislativo que inclui a limitação de fluxos migratórios, “nomeadamente, o reagrupamento familiar”, que não integra o elenco de medidas apresentado ao eleitorado. E faz depender tais políticas da “capacidade dos serviços públicos e de integração da sociedade portuguesa, restringindo o visto para procura de trabalho” também “a candidatos com elevadas qualificações”.
Ambos os programas referem a luta contra a “xenofobia”, mas não mencionam a luta contra o “racismo”, termo que não consta em nenhum dos dois programas.

***

A 12 de junho, também no Expresso online, Liliana Valente, alertava para a desatenção do programa do governo, em relação aos avisos de contenção das autoridades financeiras nacionais e mundiais. Há um ano, o excedente de cerca de três mil milhões de euros, levou o PM a garantir que não ficaria pelo “mais fácil”, que daria resposta às reivindicações de aumentos salariais para vários sectores da função pública e que manteria o “rigor orçamental”. Desde então, com o endurecimento das greves e das manifestações de rua e com a falência política das promessas, a agenda pública alterou-se e a estabilidade orçamental cedeu espaço à imigração, à segurança e, agora, à reforma do Estado.
Face aos vários avisos e previsões de várias instituições, nas últimas semanas, a deixarem pairar o risco de défice orçamental e de crescimento económico menor do que o previsto, o Executivo assobia para o lado e empurra a barriga para a frente, privilegiando outros temas, como a reforma do Estado e o aumento de investimento em Defesa, temas centrais no discurso de posse do chefe do governo, mas de reduzido debate eleitoral.
Ante o contexto mundial de incerteza e os vários alertas de crise económico-financeira, o governo não irá para esses temas, para não causar alarme. Contudo, no dizer de Liliana Valente, as questões económicas e financeiras podem impor-se por si.
Atualmente, as condições económicas e financeiras estão mais incertas com a degradação económica mundial, por via da incerteza provocada com a reentrada de Donald Trump na Casa Branca. E, nas últimas semanas, surgiram vários sinais de que, no horizonte do próximo ano e meio, poderá ocorrer significativa deterioração do contexto económico e financeiro que pode afetar as contas públicas e o desempenho da economia. Além da contração já sentida no primeiro trimestre deste ano e de o PIB já ter registado o segundo pior resultado do euro, Bruxelas faz alertas sobre a despesa pública primária, o valor que conta para as instituições europeias avaliarem o cumprimento das regras. E, em termos de contas públicas, a Comissão Europeia estima, para este ano, um superavit baixo de 0,1%, e um crescimento económico de 1,8%, muito abaixo do previsto pelo governo, 2,4%, e da última previsão do Conselho de Finanças Públicas (CFP), 2,2%.
Por seu turno, o Banco de Portugal (BdP) avançou com uma previsão ainda mais pessimista de 1,3% de crescimento do PIB.
Mário Centeno, que poderá estar de saída do cargo de governador do BdP, diz que os números conhecidos mostram dinâmicas preocupantes. Com efeito, os últimos seis meses evidenciam destruição líquida de emprego, com “redução muito significativa da taxa de contratação e [com] um aumento das taxas de separação”. Por isso, de acordo com o ainda governador do BdP, “a complacência é algo que devemos evitar em política económica”.
O responsável pela política monetária em Portugal quis dizer que o governo não está a ler os sinais emitidos, de modo a poder concluir, segundo Liliana Valente, “se os riscos internacionais, como as decisões, ao minuto, de Trump sobre as tarifas, acrescentam incerteza, as decisões de política nacional estão a pôr em risco o que tem garantido um ciclo positivo consistente da economia portuguesa, o mercado de trabalho”. E foi, sobretudo, no mercado de trabalho (de cujas mudanças, nos últimos anos, Mário Centeno mais se orgulha) que se focou, para dizer que o governo tem de prestar atenção à imigração, pois, “sem imigração, a economia portuguesa não cresce.”
Além disso, o governador do BdP alertou para a dívida pública, em crescimento, há cinco meses, e para o que isso significa, nesta altura, “porque os dados da execução orçamental mostram que os saldos orçamentais estão apenas ancorados nos resultados positivos da Segurança Social”. Assim, de acordo com Mário Centeno, “qualquer flutuação no mercado de trabalho pode levar a défices orçamentais e estes acontecerem, quando estamos em crescimento económico, que devia ser aproveitado para reduzir dívida”.
O Presidente da República (PR) considerou tais alertas expectáveis, na visão “preventiva” e mais “economicista” do papel do BdP, e contrapôs-lhes as obrigações sociais do governo.

***

Seria de esperar que o governo não deixasse de falar de temas, para não criar alarme público. A função governativa não admite omissões, tal como não admite enfatização do negrume geral. Compete ao governo fazer uma gestão adequada da informação ao país, sem estados de alma, e estar atento aos alertas das autoridades financeiras.  

O futuro líder do PS referiu “a questão da Saúde” e “as matérias laborais”, como assuntos não abordados na campanha eleitoral, nem no programa eleitoral, e que, “agora, estão no programa do governo”. Segundo José Luís Carneiro, que assumiu o voto contra na moção de rejeição ao programa do governo apresentada pelo Partido Comunista Português (PCP), estes temas “vão merecer uma apreciação estudada e fundamentada por parte do Partido Socialista”, que “vai colocar-se sempre do lado do país e das preocupações das pessoas.”

Carlos César, presidente do PS e secretário-geral interino, até haver novo, acusa o governo, em mensagem no Facebook, de se estar a chegar “mais à direita”, tentando seduzir a Iniciativa liberal (IL) e o Chega, com “a promessa de medidas”, que são “negativas” para o PS. Contudo, segundo o  dirigente socialista, “o PS não deve aprovar uma moção de rejeição no Parlamento”. Apenas promete mais oposição do que a prevista. Faz lembrar António José Seguro, então secretário-geral do PS a ameaçar com uma oposição mais violenta.

Do meu ponto de vista, por coerência, o PS deveria alterar a sua posição, uma vez que o governo alterou os pressupostos, o que levará o PS a ficar colado à deriva mais direitista da AD.

Vítor Matos, no Expresso online, a 14 de junho, evocou a polémica lançada por Gouveia e Melo, ao admitir que poderia dissolver a AR, se o governo não cumprisse, de forma grave, promessas centrais do seu programa, para questionar o que havia de fazer, se acontecesse o inverso, isto é, se o governo apresentasse um programa para executar com medidas que não foram sufragadas pelos eleitores, por não constarem no programa eleitoral. 

É uma questão pertinente, que subscrevo. É certo que incumbe ao governo, nos termos constitucionais, a definição da política geral do país, mas se o PR entende que deve pôr sob vigilância o cumprimento das promessas, também o deverá fazer, quanto a medidas não previstas para o sufrágio eleitoral, a menos que, a meio de mandato, surgissem factos que as justificassem, de modo premente, como uma pandemia, uma guerra e/ou um surto inflacionista.

Em todo o caso, as campanhas eleitorais são feitas de propaganda enganosa ou de meias verdades. E as juras irrevogáveis facilmente se contornam.

Só se deixa enganar o desatento ou o obcecado pelo partidarismo. Mal a AD se viu com uma maioria à direita, quase tudo lhe passou a servir, talvez exceto uma revisão constitucional subversiva.  

2025.06.15 – Louro de Carvalho