Em relatório publicado a 18 de junho, os peritos da Comissão Europeia Contra o Racismo e a Intolerância (ECRI), órgão do Conselho da Europa, manifestam profunda preocupação com os casos de violência racista, motivada pelo ódio, e falam mesmo na banalização de uma retórica xenófoba, até no discurso político, sob o pretexto da liberdade de expressão, apontando as principais vítimas: migrantes, pessoas ciganas, LGBTI e negras. Por outro lado, criticam a atuação da polícia, no atinente a palavras e a ações, e as escolas, por falhas nos conteúdos abordados para uma educação inclusiva.
Os investigadores dizem-se preocupados com “o aumento do discurso de ódio online” e com um discurso inflamatório utilizado por alguns políticos, que divide as pessoas. “Embora não existam dados oficiais e desagregados sobre incidentes de discurso de ódio, em Portugal, vários relatórios credíveis de organizações da sociedade civil e de outras instituições independentes apontam para um aumento acentuado do discurso de ódio no país, que parece visar, predominantemente, migrantes, ciganos, LGBTI e pessoas negras”, refere a ECRI, que tem divulgado, a cada cinco anos, um relatório sobre o que se passa em Portugal.
Os peritos dizem ter falado com interlocutores, em Portugal, que referiram haver uma espécie de “banalização do discurso de ódio, muitas vezes, sob o pretexto da liberdade de expressão”.
A ECRI também se diz preocupada com o aumento da xenofobia e do discurso de ódio contra os migrantes, que continua mais dirigido aos não europeus. “O discurso antimigrante é predominante nas discussões políticas, nomeadamente, através da disseminação de desinformação que associa os migrantes à criminalidade ou a um fardo para o sistema de segurança social português”, afirmam os especialistas, vincando que “as narrativas políticas negativas e hostis”, em torno da migração, assim como os comentários xenófobos, em particular, de políticos, “estão em contradição com a contribuição significativa dos migrantes para a sociedade portuguesa”.
Neste sexto relatório da ECRI, os peritos olham para o que foi feito nos últimos anos e reconhecem que houve melhorias em várias áreas, como a aprovação, em 2021, do primeiro Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação (PNCRD), que inclui ações para combater o discurso e os crimes de ódio. Também o Código Penal foi alterado, em 2024, para reforçar o crime de incitamento à discriminação, ao ódio e à violência – mudança aplaudida pelos peritos.
Porém, continua a haver relatos de violência motivada pelo ódio, por vezes, envolvendo grupos neonazis, num país onde as “lacunas significativas” na legislação e na ação das entidades policiais e judiciais fazem com que muitas queixas não tenham quaisquer consequência para os agressores. E continua a haver relatos de abuso racista, que incluem discriminação racial e xenófoba, por parte da própria polícia.
Perante este cenário, os peritos recomendam às autoridades portuguesas a implementação de medidas que melhorem as relações e a confiança entre a polícia e os grupos que preocupam a ECRI, incluindo migrantes, negros, LGBTI e ciganos.
O relatório analisa também a situação dos emigrantes irregulares, lembrando que devem pagar pelos cuidados, exceto quando se trate de situações de urgência médica, de riscos para saúde pública, de saúde materno-infantil, de saúde reprodutiva, de vacinação e de situações de exclusão social ou de grave carência económica comprovada pela Segurança Social.
No entanto, os peritos ouviram “diversos relatos sobre dificuldades práticas no acesso à saúde”, como funcionários que negaram, indevidamente, o atendimento ou histórias de xenofobia. Por isso, a ECRI pede melhor formação dos profissionais sobre os direitos dos migrantes irregulares e avaliações regulares, para identificar e para prevenir comportamentos xenófobos no setor.
A ECRI, alertando também para o bullying nas escolas portuguesas, defende a obrigatoriedade de os currículos abordarem o combate ao racismo e à “discriminação de pessoas negras, ciganas e LGBTI”. É certo que, nos últimos anos, houve uma melhoria no combate ao racismo e à intolerância, mas ainda há situações a melhorar, defendem os peritos, os quais, tendo ouvido relatos e detetado lacunas e discrepâncias, em relação ao que deveria ser uma educação inclusiva, consideram preocupantes os casos de bullying que têm como alvo os alunos migrantes, negros, ciganos e LGBTI.
Na disciplina de “Cidadania e Desenvolvimento”, por exemplo, “há discrepâncias importantes entre escolas” no atinente ao tempo dedicado à disciplina e aos conteúdos abordados. Se, nos anos iniciais, os temas são integrados no currículo geral, nos níveis superiores, a disciplina passa a ser autónoma e, como as escolas têm autonomia sobre as matérias, algumas acabam por “não abordar temas, como o racismo e a intolerância contra pessoas negras, LGBTI ou ciganas”, referem os peritos. Por isso, a ECRI recomenda às autoridades portuguesas que a educação em direitos humanos passe a ser uma “parte obrigatória do currículo, com conteúdos mínimos obrigatórios, em todas as escolas, incluindo combate ao racismo, à intolerância e à discriminação de pessoas negras, ciganas e LGBTI”.
Ao mesmo tempo, recomenda formação inicial e contínua de professores e pede que seja incentivada a formação obrigatória dos docentes, sobre a igualdade e a não discriminação, em especial, para os que lecionam a disciplina de “Cidadania”.
No relatório, o órgão consultivo do Conselho da Europa reconhece haver boas medidas já implementadas, como a Rede de Escolas para a Educação Intercultural ou projetos da sociedade civil como o “Educação LGBTI” da Rede Ex Aequo, e formações antirracistas do Grupo Educar. Contudo, sobre estes projetos, “recomenda maior apoio”, até porque há um “aumento dos casos de bullying, particularmente, contra estudantes migrantes, negros, ciganos e LGBTI”.
Segundo uma pesquisa realizada pela Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (UE), 71% dos inquiridos LGBTIQ foram alvo de insultos, de ameaças ou de humilhações, pelo que a ECRI recomenda que as autoridades reforcem as ações de prevenção e de combate ao bullying racista e LGBTI-fóbico, através de formação de professores, do melhoramento do sistema de monitorização de incidentes, com dados desagregados, e de políticas específicas de prevenção dirigidas a alunos mais vulneráveis.
Por outro lado, os peritos saúdam a publicação de duas orientações práticas – o “Guia para Prevenir e Combater a Discriminação Racial na Escola” e o “Guia sobre o Direito de Ser Se Mesmo na Escola” (desenhado a pensar nos estudantes LGBTI) – e recomendam a sua “ampla divulgação” junto da comunidade escolar.
Também o plano “Escola sem Bullying, Escola sem Violência” é aplaudido pelos investigadores, que lamentam que a plataforma digital de registo de incidentes não permita a extração de dados desagregados, por motivo de preconceito, de idade ou de género.
Os investigadores, olhando para os manuais escolares, lamentam que “quase nada tenha sido feito para melhorar o ensino da História Colonial Portuguesa, da escravatura e da violência nas ex-colónias”. Por isso, recomendam que os manuais escolares e os conteúdos curriculares sejam revistos e que os professores recebam formação adequada sobre o colonialismo, a escravatura e as suas ligações com o racismo contemporâneo.
Outro dos pontos referidos no estudo é a baixa representatividade de pessoas negras e ciganas nos currículos escolares, convidando as autoridades a incentivar uma representação positiva dessas comunidades e a apoiar a contratação de professores de origem cigana e africana.
Na verdade, os casos de agressões, os grupos neonazis e o discurso de ódio “passaram a ser o novo normal em Portugal”, no dizer da articulista, após ter recolhido testemunhos, como o de Carla Nunes Semedo, que denunciou, a 15 de junho, nas redes sociais, que a “filha, de 17 anos, tinha sido atacada por um condutor de autocarro”, que “achou por bem dizer-lhe que não transportava animais”.
Salienta Lina Ferreira que Carla Nunes Semedo é negra, mas não é uma cidadã anónima: “é vereadora da Câmara de Cascais, uma vila na Área Metropolitana de Lisboa” e que “o caso teve eco na imprensa e espoletou uma investigação por parte da companhia de autocarros”.
E a vereadora, responsável pelos pelouros da Saúde, Assuntos Sociais e Direitos Humanos, anota a tendência do “aumento deste tipo de casos”. Porém, mais preocupante ainda é “o aumento do discurso de ódio” e “a sua normalização”, isto é, a “perda da vergonha” e o à-vontade com que se profere o que, durante anos, esteve camuflado sob o véu do “politicamente correto”.
Todos os dias, há notícias de agressões, de discurso de ódio ou de movimentos de extrema-direita. E, nos últimos tempos, deu brado o facto de, dois dias após a denúncia de Carla Semedo, isto é, a 17 de junho, a Polícia Judiciária (PJ) portuguesa ter detido seis suspeitos de integrarem um grupo de extrema-direita apoiado por uma milícia armada, alegadamente seguidores de “um ideário antissistema e conspirativo, que incentivava à discriminação, ao ódio e à violência contra imigrantes e refugiados”, segundo a PJ.
O país ainda não se tinha recomposto dos ataques do 10 de junho, contrapostos aos notáveis discursos oficiais de igualdade fundamental, de tolerância e de inclusão, e “um elemento de grupo, alegadamente, nazi atacou um ator à porta de um teatro em Lisboa”, como aponta Lina Ferreira, fazendo eco do que foi notícia na comunicação social. E prossegue a articulista: “Umas horas depois, no Porto, dois homens agrediram voluntárias que prestavam assistência a sem-abrigo, por estarem a ajudar estrangeiros Os suspeitos terão feiro a saudação nazi.”
Todavia, para lá de tudo isto, as organizações de combate ao racismo denunciam que há muitos mais casos que nunca chegam a ser noticiados, nomeadamente, agressões a migrantes, o que é motivo de preocupação, como sustenta o Conselho da Europa.
E a articulista coloca, explicitamente a questão: “Será que o discurso aumentou mesmo em Portugal ou é apenas uma perceção?”
Ora o Conselho da Europa considera que há, efetivamente, uma tendência de crescimento e a ECRI, no seu relatório quinquenal, fala em “razões para a preocupação”. “Houve um aumento acentuado do discurso de ódio em Portugal, direcionado, principalmente, a migrantes, pessoas ciganas, LGBTI e pessoas negras”, diz a ECRI, vincando o “aumento do discurso de ódio na Internet, do discurso inflamatório de alguns políticos e também de casos de violência a envolver grupos neonazis”.
Também conclui que “não tem sido feito o suficiente para apoiar os desafios dos ciganos e que as iniciativas educacionais para este grupo são esporádicas e limitadas”.
De facto, os imigrantes “enfrentam a xenofobia no acesso à habitação”, alguns são “sem-abrigo ou vivem em casas sobrelotadas ou sem condições dignas” e estão particularmente vulneráveis, devido a “atrasos nos processos de regularização”.
O relatório defende que é preciso fazer mais para combater estes crimes, por exemplo, melhorar as leis, aprimorar investigação e prevenir os casos de abusos racistas praticados pela polícia. É certo que há progressos, mas são insuficientes e podem ser substituídos por retrocessos.
Os casos denunciados coincidem com o aumento da imigração, em Portugal. O país tem cerca de 1,5 milhões de imigrantes, um aumento acentuado desde 2017, quando havia pouco mais de 400 mil imigrantes. Nesse ano, foi simplificada a regularização dos imigrantes, através da manifestação de interesse. E, aponta-se, indevidamente, o excesso de crimes à permanência de imigrantes, quando o crime não é caprichoso na escolha de pessoas ou de etnias.
Neste contexto, verifica-se também o aumento da extrema-direita. Nas últimas eleições legislativas, de 18 de maio, o partido Chega – de cujas bandeiras faze parte “a hostilidade, em relação à imigração e aos ciganos” – passou a ser a segunda força política, na Assembleia de República, ultrapassando o Partido Socialista (PS).
Porém, é de registar um dado positivo: muitas das vítimas, sobretudo nacionais portugueses, parecem estar mais atentas e conscientes dos seus direitos. Assim, como refere Lina Ferreira, na publicação, em que denunciava a agressão à filha, Carla Semedo dizia que, apesar de ser difícil falar sobre o caso, “é mais duro calar” e avisava: “Nós já não somos os mesmos. Não somos mais aqueles que, por respeito ou [por] medo, engoliam em seco o ódio disfarçado de ‘opinião’. Não somos mais os que aceitavam ofensas, em nome da paz social.”
2025.06.18 – Louro de Carvalho