O governo liderado por António Costa, que está ainda em plenitude de
funções, logo que seja publicado o decreto presidencial de dissolução da
Assembleia da República (AR) e formalizada a aceitação do pedido de demissão do
primeiro-ministro (PM), entrará na modalidade de governo de gestão, nos termos
do n.º 5 do artigo 186.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), que
estabelece: “Antes da apreciação do seu programa pela Assembleia da República,
ou após a sua demissão, o governo limitar-se-á à prática dos atos estritamente
necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos.”
Não obstante, o governo parece apostado em não abandonar projetos
estratégicos plurianuais, sobretudo os que envolvam acesso a fundos
comunitários. É o caso do lançamento do concurso para o primeiro troço da nova
linha de alta velocidade Lisboa-Porto, que obedece a prazos específicos – deve
ser lançado em janeiro de 2024 – para se candidatar a fundos europeus.
Nestes termos, o PM sinalizou ao líder do Partido Social Democrata (PSD)
que o projeto do TGV (train à grande vitesse – comboio de alta velocidade) é
assunto a tratar em breve, esperando apenas que a Unidade Técnica de
Acompanhamento de Projetos (UTAP) conclua o trabalho técnico sobre a
viabilidade jurídica e financeira do projeto. O novo líder do Partido
Socialista (PS) que sair das eleições internas de 15 de dezembro também será
chamado à conversação.
Se Luís Montenegro e o novo líder do PS concordarem, o concurso avançará em
janeiro, como previsto, com a vantagem de, cumprindo o prazo, o projeto ganhar
maturidade e, assim, fortalecer a candidatura aos fundos europeus (ao abrigo do
Connecting Europe Facility). Se não houver acordo, o trabalho técnico fica
feito “para o novo governo dar seguimento”. Neste caso, ficam desvalorizados os
riscos políticos de o governo de gestão aprovar projetos de dimensão estrutural
e de enorme impacto financeiro (como fez o governo-relâmpago de Passos Coelho
com a privatização da TAP) e, segundo alguns, haverá pressão para um
entendimento de modo que Portugal não perca o acesso ao dinheiro europeu.
Porém, do meu ponto de vista, desde que os prazos estabelecidos não sejam cumpridos,
a pressão de pouco valerá.
Em 2022, o principal motivo para o projeto não ter sido considerado
elegível foi a falta de maturidade, obstáculo que será ultrapassado com o
lançamento do concurso em janeiro. Ao mesmo tempo, é de notar que este tipo de
processos, ao invés da privatização da TAP, em 2015, não implica novos
compromissos, antes se limita a dar seguimento à execução de projetos que têm
financiamento garantido e a dar continuidade ao calendário do Plano de
recuperação e Resiliência (PRR) que tem marcos e metas exigentes. A autorização
de investimento para a linha Violeta do metro de Lisboa que o governo aprovou
em Conselho de Ministros, nas últimas semanas, é exemplo disso, pois faz parte
do calendário apertado do PRR.
Diferente é a decisão sobre a privatização da TAP ou sobre a nova
localização do aeroporto, que ficam para o novo governo. João Galamba, na
véspera de apresentar o pedido de demissão do cargo de ministro das
Infraestruturas, foi à audição na AR defender ante os deputados que não lançar
o concurso para a construção do troço do TGV Lisboa-Oiã (em Aveiro)
significaria perder 750 milhões de euros em fundos, que Portugal “não iria
recuperar”. Com a saída do ministro, quem ficou com a pasta foi o PM, que
passou a tutelar diretamente o secretário de Estado-adjunto e das
Infraestruturas, Frederico Francisco.
Aliás, o governo está em manter a normalidade, nas últimas semanas, e tem
aprovado várias medidas. A 29 de novembro, o comunicado do Conselho de
Ministros tinha uns extensos 26 pontos, e nas últimas semanas, só no âmbito da
Administração Pública, foram assinados vários acordos com impactos orçamentais
plurianuais, incluindo a cedência do governo aos sindicatos no sentido de
antecipar para 2024 a entrada em vigor da nova carreira de técnico superior.
Foi também o caso do acordo a que Manuel Pizarro chegou, a 28 de novembro,
com o Sindicato Independente dos Médicos (SIM), ao fim de 19 meses de
negociações, com a previsão de um aumento de 14,6%, já em janeiro, para os
assistentes hospitalares, num modelo extensivo às carreiras médicas. Também a
27 de novembro, foi assinado o acordo sobre a revisão do sistema de avaliação
na função pública (SIADAP) entre o governo, a Federação de Sindicatos da
Administração Pública (FESAP) e o Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado
(SQTE), com vista a maior progressão nas carreiras. Foi também aprovado o
diploma que prevê aumentos salariais de até 280 euros para os polícias
municipais, a partir de janeiro, no âmbito do acordo plurianual de valorização
dos trabalhadores da Administração Pública recentemente assinado.
Todavia, estas medidas e outras das tomadas recentemente inserem-se no
quadro de um governo em plenitude de funções, ainda que em fim de ciclo.
***
Porém, com o Orçamento do Estado aprovado, é natural que o governo espere
que, promulgada e publicada a lei do orçamento, a qualquer momento, o
Presidente da Republica (PR) assine o/s decreto/s de dissolução da AR e de
aceitação do pedido de demissão do PM (não exoneração), após cuja publicação o
governo ficará formalmente em “gestão”.
É de lembrar que nos termos do n.º 4 do artigo 186.º da CRP, “em caso de
demissão do governo, o primeiro-ministro do governo cessante é exonerado na
data da nomeação e posse do novo primeiro-ministro”. A regra geral é que um
governo entre a convocação de eleições e a sua substituição pelo novo governo
se deve limitar a atos de gestão corrente. Não pode, aliás, legislar e todos os
decretos e propostas de lei que tenha feito e não tenham sido promulgados até à
aceitação do pedido de demissão caducam com a publicação do decreto
presidencial. Há, todavia, uma série de atos administrativos que cabem no
domínio da interpretação mais lata.
Como sustentava Freitas do Amaral, em 2011, com o governo demissionário à
beira de pedir ajuda externa, “a Constituição diz que um governo de gestão pode
fazer tudo o que for necessário ao país”. Freitas, professor de Direito
Administrativo, fundador do partido do Centro Democrático Social (CDS) e membro
de vários governos (incluindo ministro dos Negócios Estrangeiros do PS), é
ainda a referência citada, quando se instala a discussão sobre o que pode fazer
um governo de gestão. Em 1985 escreveu um pequeno livro, reeditado em 2002 e
hoje esgotado, intitulado precisamente “Governos de Gestão”.
Por isso, o entendimento em São Bento sobre o que pode fazer um governo de
gestão é lato – “pode fazer tudo o que sejam considerados atos inadiáveis” –,
onde se incluem os investimentos já previstos ou que estão dependentes da
atribuição de fundos comunitários. A ideia é manter a normalidade governativa,
como o PM tem feito nas últimas semanas em que esteve em plenas funções,
desdobrando-se em inaugurações de projetos relacionados com o PRR. Aliás,
prevê-se que, na primeira semana inteira de dezembro, o governo esteja em peso
numa última edição do “Governo Mais Próximo”, no Porto.
Por isso, a Confederação Empresarial de Portugal (CIP) apela ao governo, ao
PR e aos partidos a que façam leitura abrangente dos poderes, de forma a
possibilitar atos como a concretização dos avisos previstos para os planos de
fundos europeus, as atualizações de preços regulados e as liquidações de
compromissos do Estado, já que o país não pode parar cinco meses.
Porque os empresários receiam a paralisação do Estado (e a de serviços e de
setores da economia) no período eleitoral, que pode ir até abril, apresentam
cinco pontos fundamentais para o país não ficar “absolutamente perdido”, a
partir de quando o governo entrar em gestão. Por isso, a CIP enviou carta ao PR
e aos partidos a pedir o compromisso entre todos para que o país não pare. “Num
país onde o Estado tem uma interação tão forte na economia, quando um agente
económico com a importância do Estado está entre governos ele pode parar, há
risco de parar. Esta carta é um apelo à exigência, ao sentido de Estado dos
partidos para que não tenhamos um país absolutamente perdido durante cinco
meses”, disse ao Expresso o presidente da CIP.
Embora critique o Orçamento do Estado, a CIP pensa que é importante
garantir a sua execução, enquanto não houver outro. Mas, alertando que isso não
basta, sinaliza “a urgência e a necessidade de um grande consenso nacional”
sobre cinco pontos, que é preciso garantir: a continuidade dos avisos do PRR e
do PT2030 já lançados; a concretização do plano de avisos já anunciados para o
PRR e PT2030; a atualização dos preços regulados com referência à taxa de
inflação esperada; a aplicação do regime excecional e temporário do aumento de
preços com impacto em contratos públicos (ver Decreto-Lei n.º 49-A/2023, de 30
de junho); e a injeção de capital e/ou decisões ministeriais para liquidação
dos compromissos do Estado, nomeadamente pagamentos contratualizados e dívidas
vencidas.
Armindo Monteiro pede que o país político não se enrede na discussão sobre
o que o governo em gestão pode fazer. “O país já está a ser disputado em termos
eleitorais, pelo que é natural que existam partidos que já não queiram ação do
governo, porque entendem que pode ser vantajosa sob o ponto de vista eleitoral.
Nós, empresários, não estamos nesse jogo de disputa eleitoral. Não nos preocupa
nada quem é que tem vantagem ou desvantagem em que o país não fique parado. Nós
temos vantagem em que o país não fique parado. O nosso apelo é que não
aproveitem o facto de o país poder continuar a funcionar, ainda que numa
velocidade menor, para entrar em campanha eleitoral a todos os níveis porque
isso faz com que o país pare”, argumenta.
Na carta, a CIP lembra que “Portugal está num período especialmente
sensível”, pois o PRR é oportunidade extraordinária que prevê um financiamento
irrepetível para investimentos (públicos e privados) e para reformas,
nomeadamente da administração pública, que melhore a relação com os cidadãos e
com as empresas e a defesa eficiente do interesse público. Assim, apela aos órgãos
de soberania a que, em contexto incerto e difícil, diminuam os riscos, atuando
decisivamente para que se concretizem, “de forma estável e adequada”, o
Orçamento de Estado e a execução dos fundos estruturais, nomeadamente o PRR,
cuja execução é marcada por atrasos e dificuldades, e os investimentos
infraestruturais, de que Portugal precisa.
***
Aliás, já há um precedente de decisão grave tomada em governo de gestão. Em
2011, as eleições legislativas foram antecipadas para 5 de junho, por decisão
de Cavaco Silva, de 31 de março, após o governo do PS, sem maioria absoluta,
ver rejeitado o PEC IV chumbado (pacote de medidas de austeridade para
controlar a crise financeira do país), pois toda a oposição votou contra, o que
levou José Sócrates a pedir a demissão. Contudo, a convocação de eleições
antecipadas não impediu que o governo demissionário assinasse, a 6 de abril, o
pedido de resgate ao Fundo Monetário Internacional (FMI), à União Europeia (UE)
e ao Banco Central Europeu (BCE), no valor de 78 mil milhões de euros.
Ao governo do PS, juntaram-se o PSD e o CDS na assinatura do pedido do
resgate. Quem acionou, formalmente, por carta, o pedido foi, como teria de ser,
o governo em funções, do PS. Porém, a 31 de março, rejeitando Sócrates ainda o
pedido de empréstimo, Passos Coelho assinou uma carta oficial do PSD, que
escreveu com Miguel Macedo e que foi entregue pelos serviços de protocolo aos
destinatários PR e PM, defendendo o pedido de resgate. A 1 de abril, os mesmos
destinatários receberam outra carta, de teor idêntico, subscrita pelo
governador do Banco de Portugal, Carlos Costa. No dia 2, Paulo Portas, líder do
CDS, declarou à Lusa o apoio à ideia: “Não faço parte dos que diabolizam o
FMI.”
O V Governo Constitucional foi um governo de gestão, encarregado de
preparar eleições, mas teve um programa que passou na AR, antes da dissolução,
e produziu inúmeros decretos-lei.
Quando os poderes se entendem, muitas coisas são possíveis!
***
Ora, se o líder da oposição não bloquear as decisões administrativas de
vulto, o governo de gestão pode fazer tudo o que for de interesse para o
Estado, inclusive o TGV e o PRR.
2023.12.01 – Louro de Carvalho
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