O Presidente da República (PR) vetou, nos
últimos dias, sete decretos da Assembleia da República (AR) com reflexos no
Plano de Recuperação e Resiliência (PRR): a 7 de dezembro, o Decreto n.º 103/XV
(Alteração ao Estatuto da Ordem dos Engenheiros) e o Decreto n.º 112/XV (Alteração ao Estatuto da Ordem dos
Arquitetos); a 11 de dezembro, o Decreto n.º 111/XV (Alteração ao Estatuto da
Ordem dos Enfermeiros) e o Decreto n.º 107/XV (Alteração ao Estatuto da Ordem
dos Advogados); a 12 de dezembro, o Decreto n.º 97/XV (Alteração ao Estatuto da
Ordem dos Médicos); a 13 de dezembro, o Decreto n.º 105/XV (Regime Jurídico dos
Atos de Advogados e Solicitadores) e o Decreto n.º 102/XV (Alteração ao
Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução e à Lei n.º
77/2013, de 21 de novembro).
Esta série de vetos, por discordância
relativamente à definição
dos atos próprios de cada profissão, é
tida, por alguns, como o último braço de ferro do PR com o Partido Socialista (PS),
podendo atrasar a execução do PRR. O PS ainda não decidiu, mas admite
reconfirmar os diplomas, o que levará o Presidente à promulgação obrigatória dos
mesmos (se a AR os alterar, o PR pode-os vetar novamente), para que as verbas
do PRR não sejam postas em causa, apenas atrasadas.
Efetivamente, o chefe de Estado, que garantiu ter dado tempo à AR para
ultimar todos os processos legislativos de que estivessem pendentes verbas do
PRR, que prometeu avaliar se cada ato do governo de gestão era mesmo necessário
para assegurar os negócios do Estado e que promulgou alguns estatutos de ordens
profissionais, ouvido o respetivo bastonário, embora chamando à atenção do
legislador para, em sede de revisão, prevista no respetivo diploma, limar as
arestas necessárias, podia, do meu ponto de vista, ter feito o mesmo em relação
aos diplomas ora vetados, não dando razão a quem o acusasse de força de bloqueio
ao governo e à AR.
Aliás, segundo a lei, o legislador ouve as entidades representativas dos
destinatários (ordens, sindicatos, autarquias, etc.) a que respeita determinadas
leis. É estranho que o PR ouça as Ordens, na pessoa do respetivo bastonário,
para efeitos de promulgação ou de veto.
Enfim, as alterações, algumas profundas, nas profissões reguladas deixam
de costas voltadas algumas ordens e o PS, choque apadrinhado pelo PR, que vetou
as alterações aos estatutos de sete ordens profissionais. Além disso, os vetos
e promulgações dos 21 diplomas em análise têm saído a conta-gotas e marcam um
choque político: Marcelo posiciona-se nas alterações estatutárias nas ordens
profissionais; o PS não quer deixar cair uma reforma inscrita no seu programa
eleitoral e contratualizada com Bruxelas, para que Portugal receba as verbas do
PRR.
O PR atrasou a dissolução para 15 de Janeiro, a dar
tempo para o PS reconfirmar os diplomas e deverá ser isso que o PS se prepara
para fazer, apesar de a dimensão do veto contar para essa avaliação. A dimensão
do veto ficou maior, pois o Presidente, dentro da data-limite para a pronúncia,
fez cair o Regime Jurídico dos Atos de Advogados e Solicitadores e, por
conseguinte, caiu também o diploma da Ordem dos Solicitadores.
Já com dois vetos presidenciais em cima da mesa (Ordem
dos Arquitetos e Engenheiros) e a horas de mais três (Advogados, Enfermeiros e Médicos),
o primeiro-ministro (PM) admitia que os atrasos nos fundos europeus, neste caso
do PRR, se devem a atrasos nas ordens e criticou o Partido Social Democrata (PSD)
por ter sempre votado contra. No debate preparatório do Conselho Europeu, a 11
de dezembro, o PM dizia que os
sociais-democratas continuam “a querer travar” os diplomas, “subservientes a
uma visão corporativa da sociedade portuguesa”.
A mexida nas ordens já fazia parte do memorando de
entendimento com a troika, que
identificou a necessidade de agilização da entrada em várias profissões, tem
sido exigência de Bruxelas, desde 2018, nas recomendações específicas
direcionadas a Portugal, e foi incluída nas reformas que Portugal tem de
cumprir para assegurar as tranches do PRR; por outro é uma vontade política
inscrita no programa eleitoral do PS, que defendia “a liberdade de escolha e acesso à profissão” e se comprometia a evitar
as “restrições desproporcionais que impeçam o seu exercício”.
Contudo, a vontade de maior liberalização das
profissões reguladas encalhou, primeiro, nas Ordens e, agora, no PR. Em alguns dos vetos conhecidos, o Presidente
da República escreveu que os diplomas põem em xeque “o interesse público”, cada
um à sua maneira.
No veto ao estatuto da Ordem dos Advogados (OA), o PR
argumenta contra a redução do
estágio de 18 para 12 meses e contra o facto de o diploma não
prever o cofinanciamento público da remuneração dos advogados estagiários. Contudo, o ponto mais importante em que o
chefe de Estado colide com o governo e com a bancada do PS é o novo regime dos atos próprios.
Escreveu o PR que a possibilidade de outros profissionais praticarem alguns
atos que eram possíveis de fazer, por exemplo, só por advogados, “parece
introduzir uma possibilidade de concorrência
desleal”, por não estarem sujeitos aos “deveres disciplinares, a ter de
pagar quotas para a Ordem e às obrigações de independência, de proibição de
conflitos de interesses e de publicidade que impendem sobre os advogados”.
Esta frase antecipava que podia cair o Regime Jurídico dos Atos de Advogados e Solicitadores,
que foi acoplado aos estatutos das ordens, e os consequentes estatutos da Ordem
dos Solicitadores, aumentando a dimensão do veto presidencial.
No caso dos médicos, o PR alerta para a definição do “ato médico”, dado que
“parecem existir
sobreposições de competências dos vários profissionais de saúde, com inerente
risco para a prestação dos cuidados de saúde aos doentes”. Por outro lado, o PS na AR retirava poder de
iniciativa à Ordem dos Médicos (OM) para definir a formação da especialidade, mudança
contrária ao que teria ficado acordado com entre o governo e a Ordem. E Marcelo
aceita os argumentos da OM e escreve no veto que, ao afastar a OM de “uma
intervenção essencial no que respeita ao reconhecimento de idoneidade e
respetiva capacidade formativa dos serviços, bem como à definição dos conteúdos
formativos para cada especialidade, aspetos de natureza puramente técnica
médica, se compromete a qualidade da formação destes profissionais no futuro e,
consequentemente, a qualidade dos cuidados médicos e a segurança dos doentes,
bem como a própria organização e estabilidade do SNS [Serviço Nacional de Saúde]”.
No caso dos arquitetos, o PR diz que o “regime conjugado dos atos próprios da profissão e dos
atos partilhados (com outras profissões) gera ambiguidades e revela-se pouco consentâneo com a prática
profissional da arquitetura”. A mesma leitura repete-se na apreciação ao estatuto da Ordem dos
Engenheiros (OE), em que o Presidente assinala a forma como são definidos
“os atos de engenharia e respetiva
graduação”, escrevendo: “Não basta ser-se licenciado em engenharia para se
estar habilitado a assumir a direção técnica de uma obra de maior complexidade,
pelo que a graduação de atos de
engenharia, de acordo com a experiência profissional, é fundamental para a confiança
dos destinatários dos serviços de engenharia.”
Já no veto do estatuto da Ordem dos
Enfermeiros, o PR não se foca neste aspeto, mas refere que o diploma “não
assegura a desejável complementaridade funcional das profissões de saúde” e, por
isso, “não parece salvaguardar o interesse público, nem contribuir para o bom
funcionamento das instituições e, de forma particular, do Serviço Nacional de
Saúde”.
Na nota sobre o decreto que altera o Estatuto da Ordem dos
Arquitetos, o chefe de Estado afirma que decidiu vetá-lo, depois de ouvido o
respetivo bastonário, por considerar que “o regime conjugado dos atos próprios
da profissão e dos atos partilhados (com outras profissões) gera ambiguidades e
revela-se pouco consentâneo com a prática profissional da arquitetura”. A
redação do decreto deixa “dúvidas sobre se os atos próprios da profissão
(elaboração e apreciação de projetos, estudos e planos de arquitetura) poderão
vir a ser praticados por pessoas sem prévio estágio profissional e que não
estão sujeitas à jurisdição disciplinar da Ordem”. “Mais grave, algumas das
normas parecem contradizer as políticas públicas mais recentes que valorizam a
prática arquitetónica enquanto transformadora do património público e capaz de
satisfazer as necessidades crescentes da nossa sociedade”, critica Marcelo
Rebelo de Sousa, na carta dirigida ao presidente da Assembleia da República.
Para o chefe de Estado, “esta solução parece configurar uma
intromissão excessiva da tutela na autonomia das ordens e ser menos compaginável
com o interesse público”.
Na fundamentação de alguns vetos, o PR ressalva que decidiu “sem
prejuízo do cumprimento das obrigações do Estado português perante a União
Europeia (UE), no quadro do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR), as
quais não são postas em causa, e tendo em conta as dificuldades inerentes ao processo
legislativo” que levou à aprovação destes decretos.
***
Com a próxima tranche
do PRR à porta, o PS entra, de novo, em contrarrelógio para confirmar os
diplomas das ordens profissionais até que a AR seja dissolvida, a 15 de
janeiro. Para garantir que o dossiê fica fechado e o dinheiro recebido, o PS confirmará
os diplomas vetados. Porém, o caudal de vetos pode engrossar e tornar essa
reconfirmação mais complexa. Em risco estão ainda os estatutos da OA e da OM,
que criou problemas entre a bancada do PS e o governo. O grupo parlamentar
decidiu, por exemplo, dar mais poderes ao governo para decidir sobre a formação
dos médicos e a alteração apanhou de surpresa a OM que tinha um acordo com o ministro
da Saúde, Manuel Pizarro.
Entretanto, o PR promulgou, nos últimos dias, vários diplomas
de estatutos como os das ordens dos farmacêuticos, economistas, biólogos,
fisioterapeutas, engenheiros técnicos, médicos dentistas, psicólogos,
despachantes oficiais, contabilistas e notários.
Apesar da dimensão do veto, foi o próprio PR a afirmar que,
mesmo que vetasse, dava tempo até à dissolução da AR, a 15 de janeiro, para que
os diplomas sejam aprovados pelos deputados e assim não ficasse em causa a
verba do PRR. Contudo, ao PS colocam-se vários problemas, mas sobretudo se o
tempo até à dissolução dá para fazer alterações cirúrgicas ou se, dada a
urgência de enviar para Bruxelas o cumprimento desta meta do PRR, se faz a
confirmação direta. A direção do PS estuda as opções, mas tudo depende do que
vier a concluir da fundamentação do Presidente para os vetos e da necessidade
de o país receber as verbas do PRR.
Com efeito se o PS, que tem maioria na AR, confirmar os
decretos, o PR é obrigado a promulgá-los, mas, se houver alterações, o
Presidente pode vetá-los de novo ou enviá-los para o Tribunal Constitucional.
Certo é que nenhum dos intervenientes quer ficar com o ónus de pôr em causa verbas
do PRR. Aliás, foi também por isso que o Presidente adiou a dissolução da AR,
ficando sujeito a críticas da direita. Porém, sujeita a AR a contrarrelógio exclusivo
para estas matérias, como se não pudesse haver outras matérias relevantes a
debater.
Enfim,
o Presidente da República, regra geral, alinhou com os interesses
corporativistas das diferentes ordens, designadamente em termos do monopólio da
prática de determinados atos, ditos próprios, mas pretensamente exclusivos. Não
há motivo científico e técnico para impedir alguns profissionais de praticar determinados
atos que algumas Ordens querem exclusivas dos seus membros, longe de qualquer
concorrência. Embora as Ordens não devam ser excluídas da formação dos seus
membros, não lhes deve caber nem o exclusivo, nem a direção dessa formação. O
acesso às profissões não deve ser tão dificultado que impeça a existência suficiente
de profissionais para responder às necessidades da sociedade. E é de duvidosa
legalidade ser o erário público a pagar os estágios (os não integrados na formação
académica) dos profissionais de uma profissão liberal.
Porém,
sobrepõem-se os interesses ao poder político e talvez ao interesse geral.
2023.12.13 – Louro de Carvalho
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