Em artigo de 15 de dezembro no Expresso
(acesso pago), a jornalista Ângela
Silva regista “o silêncio incomodado de Marcelo Rebelo de Sousa, que tem
espantado quem o tem visto, há anos, “a fazer política na rua”, comentando tudo
e todos (governo, ministros e secretários de Estado, leis e regulamentos, casos
e questões de justiça), muitas vezes, dizendo que não comenta.
A expectativa no Palácio de Belém é que o Presidente da República (PR)
mantenha o registo politicamente mais recatado até às eleições de 10 de março. Contudo,
sem se calar, ainda no dia 14, disse publicamente que “preferia” António Costa
a qualquer um dos candidatos à sua sucessão (Luís Montenegro agradecer-lhe-á a
referência) e que o ainda primeiro-ministro (PM) daria um bom candidato
presidencial, “se antes não chegar a presidente do Conselho Europeu” (António
Costa a agradece-lhe, em vez de se enervar).
Porém, se o PM tem tantas qualidades, é de questionar por que motivo
aceitou, de imediato o seu pedido de demissão e não incitou a continuar até as
coisas ficarem mais esclarecidas. Além disso, se lhe merece tanto crédito, por
que não aceitou a formação de um novo governo com o Partido Socialista (PS)?
Crê-se que o PR gerirá a reta final do costismo sem responder aos ataques
do PM, que o acusa de ser ‘o mau da fita’ desta crise política. Aliás, não é o
único: Rui Rio que liderou o Partido Social Democrata (PSD) também não concorda
com a dissolução da Assembleia da República (AR) como solução para esta crise
política.
O PR declarou-se não responsável pela saída do PM. Insistiu: “Foi ele que
se quis ir embora. Não fui eu que disse: vá-se embora.” Foi a resposta indireta
aos que o acusam de ter criado a rutura.
Apontam, na Presidência da República, duas razões para esta gestão contida
em que o chefe de Estado tenta evitar ser puxado para a “luta na lama”: quer
manter a normalidade institucional mínima, porque tem de trabalhar com António
Costa até março; e “responder ao PM teria sido entrar na campanha do PS”.
Numa das suas, agora mais raras, saídas – condicionadas pelas perguntas a
que sabe ter de se sujeitar sobre o caso das gémeas, o PR recusou-se a comentar
a entrevista de António Costa à TVI,
em que o PM o culpou pela decisão errada de dissolver a AR, como libertou a
frase ambígua: “O primeiro-ministro vai estar em funções ainda uns meses, diz o
que pensa, e o Presidente respeita o pensamento do primeiro-ministro, mas não
comenta.”
Este dito é entendido, no Palácio de Belém, do seguinte modo: António Costa
sai daqui a quatro meses, o PR tem dois anos e meio pela frente e, a partir de
março, trabalhará com o próximo PM. Em outras palavras: António Costa é passado,
o seu ciclo como chefe de governo acabou, e Marcelo reserva-se para o novo
ciclo. Nestes termos, o ambiente de disputa e de ressentimento do par que,
durante anos, porfiou juras de coabitação desembocou na seguinte verificação:
António Costa sonhava durar mais do que Marcelo, mas é Marcelo que durará mais
do que Costa.
“Há aqui um separar de responsabilidades”, vincam fontes da Presidência da
República, sendo que as responsabilidades do PM de gestão estão a acabar e as
do PR continuarão, numa legislatura que ninguém sabe como será. António Costa desafiou-o
a encontrar, no resultado das eleições antecipadas de março, uma solução estável,
e o PR sabe que são grandes os riscos de isso não acontecer. Porém, a teoria do
PM de gestão, segundo a qual o país teria a ganhar em ver a legislatura
cumprir-se com Mário Centeno, é considerada absurda: “Um governo liderado por Centeno
após a demissão de António Costa, sem eleições, e com Pedro Nuno Santos à
solta, durava seis meses. E quem defendeu que a saída de um primeiro-ministro
deve dar eleições foi o PS, quando Durão saiu e Santana o substituiu”,
sublinham no Palácio, onde não é poupada a instabilidade desta maioria absoluta
socialista que se demite ao fim de um ano e meio.
Ora, esta é a maioria absoluta de um só partido, o que não acontecia com Durão
e com Santana; e é de duvidosa licitude (não digo “legalidade”, nem “legitimidade”)
a dissolução da AR em que há uma maioria de coligação.
O futuro é incerto, mas o chefe de Estado não tem alimentado tremendismos.
Defensor de uma coligação pré-eleitoral PSD/IL/CDS para enfrentar o PS, considera
irresponsável a decisão da Iniciativa Liberal (IL) de ir sozinha a votos e
partilha com influentes vozes do PSD a convicção de que Luís Montenegro tem de
jogar tudo no voto útil. Para tanto, é de lançar no debate público uma questão
prática: se o PSD não tiver mais um voto do que o PS, o PR terá de indigitar
Pedro Nuno Santos como primeiro-ministro (é ele que a direita conta encontrar
no ringue). Assim, as pessoas têm de perceber que, se dispersarem o voto, até
podem ter uma maioria de direita mas o indigitado será o outro, alerta um
‘barão’ do PSD. Ora, Marcelo não pensa diferente.
Numa disputa entre os dois maiores partidos que todas as sondagens dizem
estar, para já, à pele, um único deputado chega para fazer a diferença e a
convicção do PR é que, se o PSD ganhar e sendo a direita maioritária, não
precisará de fazer nenhum acordo com André Ventura, bastando o Chega viabilizar
que o PSD governe em minoria. E embora este ‘basta o Chega viabilizar’ seja um ponto
de interrogação (Ventura ameaça exigir ministros), a convicção do Marcelo
Rebelo de Sousa é que Montenegro não cederá e o Chega nunca votará ao lado do
BE e do PCP contra um governo de direita. Olhando para a esquerda, o PR antevia
Pedro Nuno como sucessor de António Costa, o que se confirmou, e acha-o
vantajoso para o PSD, por poder afastar eleitorado mais moderado. Todavia, num
cenário em que o PS ganhe, mas sem maioria, o PR poderia contar com a maioria
de direita para derrubar o governo do PS. Só que Montenegro diz que, nesse caso,
se demitiria e a direita voltaria a entrar em crise.
Até março, o chefe de Estado jogará sobretudo nos bastidores e antevê que o
PM deixe de monopolizar a boca de cena, como tem feito, após a demissão. “Este
protagonismo de agora não terá grande impacto nas eleições de 10 de março”,
antecipava um dos mais próximos conselheiros de Marcelo, que apontava o dia 18,
quando já se saberia (e soube) quem ganhou o PS, como o início do ciclo novo em
que tudo se jogará entre Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro.
Quanto à coabitação sobrante entre o PR e o PM de gestão, Belém não prevê
grandes perturbações. Andar António Costa em campanha é visto como normal, dada
a necessidade de jogar a sua defesa pessoal, e não se anteveem tentativas de o
PM pisar o risco da gestão. “Se o governo já decidia pouco, agora por maioria
de razão...”, ironizam. O ciclo da dupla deslaçada está quase a acabar.
***
Como era expectável, o PR não para de comentar. Se não o faz por si próprio,
fá-lo através de megafones travestidos de heterónimos, como insinuou António
Costa, ou de pseudónimos como diz Vital Moreira. Por mim, hesito em aplicar aos
atores do presente fenómeno político o termo “heterónimo” ou o termo “pseudónimo”.
Ao heterónimo corresponde outro nome, que significa uma personalidade diferente,
com vida (conceção, gestação, nascimento, crescimento, atividade e falecimento)
autónoma; o pseudónimo traduz uma personalidade que se oculta sobre um outro
nome, mas conservando todas as caraterísticas da personalidade originária.
Todavia, são vários os intervenientes no comentário em nome do PR: o Palácio
de Belém; um sujeito indeterminado (subentendido em verbos, como “crê-se”, “apontam”,
“sublinham”, “ironizam”, etc.); Presidência da República; fontes da Presidência
da República; a voz passiva, como em “é considerada” e em “não é poupada”;
Palácio; e Belém. Por outro lado, sem interveniente expresso, fica espelhado o
pensamento do PR, inconsistente no que toca às hipóteses de formação de um
governo após as eleições, consoante os seus resultados. Com efeito, nada
garante que o PSD não se coligue com o Chega (as pressões internas são muitas) ou
que Luís Montenegro se demita, se não tiver hipótese de formar governo só com o
PSD ou se perder as eleições, mas a direita obtiver a maioria parlamentar.
Por tudo isto, parecendo que todas as declarações atribuíveis ao PR e espelhadas
no artigo de Ângela Silva revelam o que se sabe do pensamento e da postura do
chefe de Estado, e não qualquer desdobramento de personalidade, as que não atribuídas
diretamente cabem na categoria do pseudónimo.
***
O constitucionalista Vital Moreira (blogue “Causa nossa”) sublinha que Marcelo
Rebelo de Sousa bate, “de longe, todos os recordes de declarações públicas de
todos os PR precedentes”. E, não satisfeito com isso, usa “outros canais menos
ortodoxos de comunicação com o público”. Tal é o caso de jornalistas que
funcionam como seus “ventríloquos”, atribuindo as suas declarações, citadas
entre aspas, para não ficarem dúvidas, a “fontes de Belém”, à “Presidência”,
a “assessores” ou a
“conselheiros” anónimos e,
mesmo, aos “corredores” do
Palácio. É de dizer: “Rabo escondido com o gato de fora!”
Ninguém fica bem na fotografia: o PR, por dar “tratamento privilegiado aos
jornalistas e aos jornais que se prestam a tal jogo” e por não assumir a
responsabilidade pessoal pelas opiniões veiculadas por tais pseudónimos; os
jornalistas em causa, por se deixarem instrumentalizar como megafones de Belém
e por violarem “um dos mais importantes deveres deontológicos do
jornalismo, que é a identificação das fontes de opiniões”. Neste segundo
aspeto, não estou certo de concordar com Vital Moreira. Efetivamente, servir de
simples megafone de Belém ou do PR, sobretudo se houver contrapartidas, é
indigno. Porém, no atinente aos deveres deontológicos, parece que o jornalista
não deve ser obrigado a revelar as suas fontes, mormente se elas pedem o
anonimato. É certo que esses pseudónimos agem mal, quando se dispõem a ser
megafones do PR para os jornalistas. O temor reverencial e os intentos políticos
não justificam tudo.
Acresce que,
sob tais pseudónimos, o PR leva ao exterior “comentários políticos que
dificilmente ele poderia fazer em nome próprio, como é o caso da peça citada,
incluindo a denúncia de uma suposta ‘campanha
do PS’ contra ele, juízos sobre o Primeiro-Ministro ainda em
funções ou sobre o novo líder do PS, ou opiniões sobre a estratégia eleitoral
mais desejável para a oposição”.
E Vital
Moreira sustenta: “Nada disso é compatível com o estatuto de neutralidade
político-partidária que é inerente ao ‘poder moderador’ que a Constituição lhe
confere, não sendo por acaso que Constant, o inventor desse ‘quarto poder, há
dois séculos, o designou justamente como poder neutro. Se, entre nós, o PR
não é eleito para governar ou cogovernar, nem para exercer tutela sobre o governo, tampouco
é eleito para se imiscuir no combate político-partidário, muito menos em
período eleitoral, o que torna ilegítima qualquer tomada de partido por parte
de Belém.”
A quem perguntou se era a estas situações que o PM se queria referir,
quando “mencionou os ‘heterónimos’
de Marcelo [Rebelo de Sousa]”, o constitucionalista admitiu que sim, mas julga
(eu concordo) que “essa noção pessoana não convém a esta situação, pois
os heterónimos têm personalidade própria, independente do seu criador,
enquanto aqui os tais jornalistas não passam de veículos, arautos, da ‘voz
do dono’.”
***
Não precisávamos de filmes destes!
2023.12.20 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário