A irmã Seli Thomas, religiosa indiana das Irmãs
Catequistas de Maria Imaculada Auxiliadora, da Família Salesiana, no encontro
da AMRAT – Talitha Kum, aliança internacional de religiosas contra o tráfico, que
decorreu, na Índia, no último fim de semana de novembro, considerou: “Mais de
100 mil religiosas estão na Índia. […] Se todas trabalhássemos, juntas, no
combate ao tráfico, através do nosso próprio ministério, poderíamos salvar
muitas vidas.”.
A situação é grave. O Índice Global de Escravatura estima
que, só naquele país asiático, haja onze milhões de pessoas, incluindo crianças
e adolescentes, sujeitas a formas de escravatura moderna. E, ao mesmo tempo, é
neste país que existe o maior número de freiras do Mundo, tendo estado
presentes no encontro 170 religiosas, em representação de 80 congregações
diferentes.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU),
há quase 28 milhões de pessoas em situação de escravatura, em todo o Mundo – a maioria das
situações acontece em alguns dos países mais ricos – e, destes,
mais de três milhões são crianças. E a Organização Internacional do Trabalho
(OIT) assegura que o número de pessoas forçadas a trabalhar aumentou significativamente, ao longo dos
últimos anos, tendo o acréscimo sido de 10%, nos
últimos quatro anos. Destes milhões de pessoas que são forçadas
a trabalhar sem qualquer dignidade, 3,3 milhões são crianças.
Estes números, que são alarmantes, levantam sérias
preocupações entre as entidades mundiais, que apontam a pobreza extrema, a
falta de oportunidades económicas, a desigualdade social, a migração forçada, a
corrupção, a impunidade dos exploradores, a demanda de produtos e serviços
baratos, as guerras, as alterações climáticas e as pandemias, como as principais
causas deste flagelo global.
“Sabemos que temos de proteger as
pessoas contra as vulnerabilidades que estão no cerne do trabalho forçado.
Temos de melhorar as práticas de recrutamento, que têm de ser justas e éticas.
Temos de reforçar a inspeção do trabalho e a aplicação da lei. Todas estas
coisas, sabemos o que funciona, só não o estamos a fazer o suficiente”, afirmou
Guy Ryder, diretor-geral da OIT.
Segundo esta organização,
a grande maioria das situações que se verificam atualmente acontece nos países mais
ricos do planeta, tais como o Dubai
e a China. O país da península arábica tem sido alvo de intenso
escrutínio, devido às situações reportadas por vários trabalhadores envolvidos nos
trabalhos de construção dos estádios utilizados no Mundial de futebol. Já na
China, as situações apontadas estão relacionadas com o trabalho forçado de
milhares de pessoas que se encontram detidas, por motivos religiosos e étnicos.
A escravatura trabalhista moderna assenta em práticas de
trabalho forçado e de exploração laboral que se assemelham à escravidão
histórica: salários de miséria (injustos), que geram condições de vida
precárias e dificuldades financeiras; jornada de trabalho excessiva (longas
horas sem descanso adequado, sem folgas regulares e sem compensação adicional);
condições de trabalho perigosas (risco para a saúde e para a segurança: falta de
equipamento de proteção adequado, exposição a substâncias tóxicas, ausência de
medidas de segurança); restrição da liberdade de movimento (com ameaça,
violência ou confisco de documentos de identidade); trabalho infantil (sobrecarga
e fuga à educação); e discriminação e abuso (tratamento discriminatório com
base em etnia, género, religião ou política; e abuso físico, sexual ou
psicológico).
Todavia, nem só de escravatura trabalhista se trata. Junta-se-lhe,
por exemplo o casamento forçado. Assim, os dados da ONU revelam que cinquenta
milhões de pessoas foram forçadas a trabalhar ou a casar em 2021.
As principais formas de escravatura moderna, além do
trabalho forçado, são: a utilização de crianças em conflitos
armados, como escudo humano ou como combatentes (crianças-soldado); o tráfico
de pessoas; a exploração sexual e a prostituição forçada; a venda de crianças; e a servidão
por dívidas.
A ONU quer erradicar o flagelo até 2030, mas, em 2022,
havia, em situação de escravatura moderna, mais 10 milhões de pessoas do que as
estimativas de 2016. Cerca de 28
milhões eram pessoas submetidas a trabalhos forçados e 22 milhões casadas
contra sua vontade. Mulheres
e meninas representam mais de dois terços das pessoas forçadas ao casamento e quase
quatro em cada cinco estavam em situação de exploração sexual comercial. No total, representam 54% dos casos de escravidão
moderna.
A pandemia – que proporcionou a deterioração das
condições de trabalho e o aumento do endividamento dos trabalhadores –
fortaleceu as fontes da escravidão moderna em todas as suas formas. Nos últimos
anos, a multiplicação das crises – além da pandemia, os conflitos armados e as
alterações climáticas – provocaram perturbações sem precedentes, em termos de
emprego e de educação, o agravamento da pobreza extrema, o aumento de migrações
forçadas e perigosas, a explosão de casos de violência de género.
Em todo o mundo, quase uma em cada 150 pessoas é
considerada um escravo moderno.
O diretor-geral da OIT, considerando “chocante que a situação da escravatura moderna não esteja a
melhorar”, vem apelando aos governos, aos sindicatos, às organizações
patronais, à sociedade civil e ao cidadão comum para que combatam “esta
violação fundamental dos direitos humanos”.
A OIT propõe uma série de ações, incluindo melhorar e
fazer cumprir as leis e inspeções laborais, acabar com o trabalho forçado
imposto pelo Estado, expandir as proteções sociais e fortalecer as proteções
legais, aumentando a idade legal do casamento para 18 anos, sem exceção.
Reduzir a vulnerabilidade
dos migrantes ao trabalho forçado e ao tráfico de pessoas depende, acima de
tudo, de políticas nacionais e estruturas legais que respeitem, protejam e
cumpram os direitos humanos e liberdades fundamentais de todos os migrantes.
As mulheres e as crianças permanecem
desproporcionalmente vulneráveis. Assim, quase um em cada oito trabalhadores
forçados é uma criança e mais da metade deles são vítimas de exploração sexual
comercial. Também os trabalhadores migrantes têm mais de três vezes
mais probabilidades de serem submetidos a trabalho forçado do que
os adultos não migrantes.
António Vitorino, antigo diretor-geral da Obra
Internacional das Migrações (OIM) apelava a que toda a migração “seja segura,
ordenada e regular”.
A Ásia e o Pacífico têm mais de metade do total de
trabalhadores forçados do mundo. A Coreia do Norte,
a Eritreia e a Mauritânia são os países mais afetados pela escravatura moderna,
segundo o Índice Global de Escravidão. A Coreia do Norte
tem a taxa mais alta, com 104,6 pessoas em situação de escravidão moderna por
mil habitantes. A seguir, vêm a Eritreia (90,3) e a Mauritânia (32), que foi o
último país, em 1981, a tornar ilegal a escravidão hereditária.
Portugal
surge referenciado com 3,8 pessoas por mil habitantes – de acordo com dados do Instituto
Nacional de Estatística (INE), de 2021, a população residente foi estimada em 10.421.117
habitantes – o que, feitas as contas, indica que haverá, na condição de
escravatura moderna, 39,6 mil pessoas no país, número superior aos do Burkina
Faso, Togo, Essuatíni ou Serra Leoa, entre outros.
O
relatório, realizado pela associação Walk Free, define a escravidão moderna
como “trabalho forçado, casamento forçado, servidão por dívida, exploração
sexual” ou ainda “venda e exploração de crianças”. Muitos dos países mais
afetados estão em regiões consideradas voláteis, passando por conflitos ou
instabilidade política, com grandes populações vulneráveis, como refugiados ou
trabalhadores migrantes.
Também
entre os 10 países mais afetados estão a Arábia Saudita e os Emirados Árabes
Unidos, onde a “kafala”, sistema de tutela dos empregados, limita os direitos
dos trabalhadores migrantes. Nestas posições de destaque, estão também a
Turquia, “que acolhe milhões de refugiados sírios”, o Tajiquistão, a Rússia e o
Afeganistão.
Embora
o trabalho forçado seja mais comum em países pobres, tem vínculos profundos com
as necessidades dos países mais ricos, estando dois terços dos casos de
trabalho forçado ligados a cadeias internacionais de fornecimento de produtos.
Assim, os países do G20 importam 468 mil milhões de dólares (434 mil milhões de
euros) de bens que podem ter sido produzidos com trabalho forçado, um valor
acima dos 354 mil milhões (328 mil milhões) assinalados pelo relatório
anterior. Os produtos eletrónicos continuam a ser os de maior risco, seguidos
por roupas, óleo de palma e painéis solares.
“A
escravidão moderna permeia todos os aspetos da nossa sociedade. Está presente
nas nossas roupas, nos nossos aparelhos eletrónicos e tempera a nossa comida”,
disse a diretora da associação Walk Free, Grace Forrest, que sublinhou: “Fundamentalmente,
a escravidão moderna é uma manifestação de extrema desigualdade. É um espelho
erguido ao poder, que reflete quem, numa dada sociedade, tem e quem não tem
este poder.”
***
É no sentido do apelo da OIT à cooperação da sociedade
civil, do exercício da cidadania ativa, da solidariedade ditada pelo serviço
evangélico e da virtualidade do trabalho em rede, adotado e promovido pela AMRAT
– Talitha Kum, que a irmã Seli quis motivar as cem mil religiosas da Índia a
abraçar o desafiante ministério da luta contra a exploração de pessoas, dando a
conhecer o projeto que implementou em Krishnagar, Bengala Ocidental, e que visa
resolver as principais causas da exploração: a pobreza e o desemprego.
A religiosa partilhou o modo como ela e as restantes
irmãs da comunidade começam por entrar nos bairros de prostituição, onde
aconselham e ajudam as mulheres que ali são exploradas a enviar os filhos para
a escola. Depois, nas escolas, a congregação – que pertence à família Salesiana
– tem um programa de capacitação e um espaço onde as crianças podem conversar
com as irmãs, “porque muitas vezes as crianças não estão seguras nem em casa”,
alertou. Além disso, como é formada em Direito, a irmã Seli presta assistência
jurídica gratuita e dinamiza seminários e oficinas sobre a migração segura e o
tráfico de seres humanos nas aldeias, para os professores e para os estudantes.
Vencedora do galardão “Bem Comum” na primeira edição dos Prémios Antitráfico às Irmãs (SATA, na sigla inglesa), há um mês, Seli Thomas viu reconhecida a sua “coragem e criatividade” no combate à exploração de pessoas. Só através do programa que implementou em Krishnagar, já terá “salvado a vida” a, pelo menos, 500 mulheres, como indica a organização dos prémios.
Questionada sobre a razão de ter abraçado esta missão,
aquando da atribuição do prémio, a irmã Seli respondeu com a pergunta: “Quando
vejo sofrimento à minha volta… como posso permanecer numa zona de conforto?” E
partilhou a história de uma das vítimas que conseguiu salvar: uma mulher de
cerca de 30 anos que veio vê-la em lágrimas. “Irmã, onde é que esteve todos
estes anos?”, perguntou-lhe. “Se eu a tivesse conhecido antes, nunca me teria
tornado uma profissional do sexo, não teria sido vítima de traficantes, vendida
e revendida por homens repetidamente desde os 12 anos de idade.” Para a irmã
Seli, foi um testemunho “destruidor e doloroso” de ouvir: “Tudo o que pude
fazer foi confortá-la, mas a dor dela levou-me a continuar.”
Agora, assegura, é isto que quer fazer “pelo resto da
vida”: “Eu sei que não posso mudar o Mundo inteiro. O que posso fazer é
provocar alguma mudança e dar esperança àqueles que se desesperam, e salvar
algumas vidas do tráfico, uma pessoa de cada vez.” Foi por isso que deixou o
apelo às restantes religiosas do país: para que, juntas, possam salvar muitas
mais pessoas.
É um desafio premente lançado aos cristãos, aos demais
cidadãos, aos Estados, aos empregadores, aos sindicatos e às outras organizações.
2023.12.02 – Louro de Carvalho
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