O chefe de Estado Maior da Armada (CEMA), almirante Gouveia e
Melo, há dois anos no cargo, afasta a hipótese de candidatura às eleições presidenciais,
pede mais proteção e meios para os militares, diz-se concentrado na Marinha, remete
para o poder político eventual recondução, em 2024, e alerta para “oportunistas
que gostariam de desestabilizar” a democracia.
O CEMA, em entrevista à agência Lusa, por ocasião do segundo ano do seu mandato, sustenta que a falta
de efetivos na Marinha vem criando grande “pressão psicológica interna” e
sugere ao poder político que olhe para as classes sem poder reivindicativo, em que
se incluem os militares. Na verdade, como discorre, “um sistema político
democrático equilibrado tem de conseguir perceber que quem não tem o direito a
manifestar-se deve ser protegido”, pois, se não o fizer, “pode causar uma
distorção tão grande que pode ser perigoso para o sistema”.
Continuando
nesta linha discursiva, considera que “esse desequilíbrio já causou
perturbações noutras sociedades”. Ora, vivendo “um momento crítico das
democracias, devemos estabilizar o que são os pilares da democracia”, que “devem
estar estáveis”. Com este pressuposto, alerta os poderes políticos para a existência
de “muitos oportunistas
que gostariam de desestabilizar esses pilares com falsas promessas, falsas
soluções, soluções rápidas que podem ser contagiosas em determinados cenários”.
Insistindo no seu
alerta, Gouveia e Melo admite que “a democracia na Europa pode ser colocada em causa no futuro”,
uma vez que, “dentro do bloco europeu, há sociedades com sintomas quase de
esquizofrenia não democrática”, pelo que urge a defesa dos pilares do sistema
democrático, nos quais as Forças Armadas se inserem.
Considera que “temos de defender a democracia e temos de a defender todos os dias”, com bom senso e com equilíbrio de
todos, mas tendo cuidado em “não deixar que uma parte da sociedade que não se
pode manifestar, estatutariamente, para proteção da própria sociedade, não
passe a ser um ‘underdog’ e a parte desfavorecida dessa sociedade, só porque
não se pode manifestar”.
Por
outro lado, salienta que a Marinha tem cerca de 1500 efetivos a menos, dos
aproximadamente oito mil de que deveria dispor, que “fazem muita falta”. Daí
resulta “um processo de saturação natural”. Ora, não se pode “estar
permanentemente a sacrificar as mesmas pessoas, exigir das mesmas pessoas”,
pois “uma coisa é exigir durante um período, outra coisa é exigir para sempre”,
diz o almirante, que afirma sentir “muito orgulho” no seu pessoal.
Refere que a
Marinha enfrentou os fogos, a pandemia e as operações, “tudo em simultâneo”, o
que gerou “pressão psicológica interna grande”, que o ramo tenta “aliviar e
mitigar”. Porém, lembra que “as Forças Armadas são profissionais e muito
qualificadas”, pelo que não podem recrutar recursos humanos não qualificados.
O CEMA
nem quer ouvir falar de candidaturas a Presidente da República e, quando a
questão lhe é colocada já à saciedade, deixa transparecer até alguma irritação.
“Parece que alguém quer ter um seguro de vida, fazendo a pergunta mil vezes”,
diz em entrevista, no fim do segundo dos três anos de mandato à frente da
Marinha, quando lhe falam das eleições presidenciais de 2026.
Nem as
sondagens, em que aparece invariavelmente como um dos preferidos para o Palácio
de Belém, o demovem da recusa em abordar o assunto, afirmando que lhe é
indiferente. “Estou concentrado no meu objetivo militar, que é conseguir
transformar a Marinha num verdadeiro instrumento útil, significativo,
abrangente e tecnologicamente avançado ao serviço do Estado português. Esse
trabalho é gigantesco. Ocupa 110% do meu cérebro. E, portanto, eu
não ando preocupado com outras coisas”, assegura.
Aos 63
anos de idade e com dois no topo da hierarquia da Armada, admite que as pessoas
podem gostar de si, pelo papel que desempenhou como coordenador do processo de
vacinação da covid-19, mas isso não o obriga a qualquer gesto em direção a uma
carreira política. “As pessoas podem gostar de mim, mas isso não significa que
eu tenha de fazer qualquer coisa, porque as pessoas gostam de mim, porque houve
um período histórico. Eu tive um papel, não fui eu sozinho, fui eu e outros. Há
esse registo histórico, agora estou preocupado em fazer e cumprir bem a minha
função”, esclareceu.
Sobre uma
eventual recondução no cargo de CEMA, o almirante remete a decisão para o poder
político. “Isso envolve o que o poder político quiser”, observou, sublinhando
contar com mais um ano de mandato, pois quer levar avante o que ainda não
conseguiu fazer nos dois primeiros anos.
O CEMA
adianta que vai propor ao próximo executivo a compra de mais dois submarinos,
que pretende modernizar duas fragatas, no prazo de três anos, e que intenta adquirir
dois navios reabastecedores. O próximo ano é altura de discutir, novamente, o
sistema de meios das Forças Armadas; e a compra de mais
dois submarinos, “daqui a seis anos”, está nos planos de Gouveia e Melo, que argumenta
que a área geográfica portuguesa “assim o exige”.
Dos submarinos, o
almirante submarinista diz que, além de outras vantagens, “permitem observar o
ambiente sem mexer com o ambiente, porque ninguém sabe que eles estão lá, e
isso é uma função muito útil para o Estado, que pretende controlar o seu mar,
também de forma discreta, e descobrir atividades que não consegue descobrir de
outra forma, porque não tem uma capacidade de superfície que consiga realmente
ocupar um espaço tão grande”.
Os dois novos
submarinos, pretensamente de menor dimensão, juntar-se-iam ao Tridente e ao
Arpão, os dois únicos submarinos de que a Marinha dispõe atualmente, o que
levanta dificuldades, quando um deles necessita de reparações. Quanto às
fragatas, Gouveia e Melo assinalou que a Lei de Programação Militar (LPM) prevê
verbas para a sua renovação e disse que pretende modernizar “mais duas no prazo
de três anos”.
Mais revelou o
CEMA que, em breve, será assinado o contrato para a aquisição de dois navios
reabastecedores, que serão, simultaneamente, “navios logísticos de transporte”,
o que “poupa investimento, mas dá mais capacidade” ao ramo. E destacou a
aquisição dos seis Navios Patrulha Oceânicos (NPO), cuja assinatura do contrato
foi, entretanto, marcada para 29 de dezembro, contando os NPO ao serviço da
Marinha “em princípio em 2030, 2031”.
Os
novos NPO terão uma capacidade de guerra antissubmarina que os quatro já
construídos não têm. “Estamos numa área crucial para os movimentos logísticos entre as Américas
e a Europa e isso é crucial para o movimento logístico da NATO [Organização
do Tratado do Atlântico Norte]. Se nós portugueses, que temos os Açores, não participarmos
ativamente na proteção dessas linhas de comunicação marítimas, sejam elas de
dados, de transporte de carga ou de pessoas, de alguma forma estamos a diminuir
o nosso valor estratégico dentro da própria coligação”, argumenta.
O
primeiro dos seis navios, que chegará em 2026, tinha entrega prevista para este
ano, mas o processo atrasou-se, porque o Tribunal de Contas (TdC) recusou, por duas
vezes, o visto do contrato que o Ministério da Defesa Nacional pretendia celebrar
com a IdD Portugal Defence – a ‘holding’ estatal que gere as participações
públicas nas empresas da Defesa – para a gestão do programa de aquisição.
No início de
2024, a Marinha iniciará “o projeto de patrulhas de média dimensão” que substituirão
patrulhas mais envelhecidos e têm “um desenho muito próprio” concebido pela
Armada. Estes patrulhas “podem certamente ser vendidos no Golfo da Guiné e
noutras regiões que precisam daquele tipo de navios para começar a construir
uma Marinha”, constituindo-se também como um “produto de exportação”, explica Henrique
Gouveia e Melo.
Interpelado sobre
a atual crise política e sobre as consequências que pode ter nos investimentos
da Armada, o almirante respondeu que “a instabilidade afeta sempre de alguma forma, mas afeta de forma
temporalmente curta” e que “o que é importante é a conceção de
um país que é marítimo”. “Estou convencido que todos os governos, mais à
esquerda ou mais à direita, com pequenas nuances, percebem esta necessidade. Portanto,
estou muito convencido de que, a longo prazo, a estratégia não será afetada”,
observou.
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A 24
de novembro passado, foi assinado o contrato para a construção de um navio
multifunções da Marinha, o Navio da República Portuguesa (NRP) D. João II, que
terá o custo de 132 milhões de euros, com verbas do Plano de Recuperação e
Resiliência (PRR) e do investimento estatal.
O primeiro-ministro (PM), na sua intervenção, respondeu aos chamados “frugais” da União Europeia (UE), apontando o retorno inerente a muitos dos investimentos do PRR, e realçou a ação do seu governo de planeamento após a emergência da covid-19.
A construção deste navio ficará a cargo dos estaleiros holandeses Damen e o contrato foi assinado no Museu de Marinha, em cerimónia com a presença das ministras da Presidência, Mariana Vieira da Silva, e da Defesa, Helena Carreiras, e do CEMA, almirante Henrique Gouveia e Melo.
António Costa vincou o facto de o contrato para a construção do navio ter sido assinado com uma empresa holandesa, de um Estado-membro que tradicionalmente se opõe a um crescimento das contribuições para a UE e que maiores dificuldades levantou à conclusão do acordo para a criação de um mecanismo de recuperação e resiliência. Sem nunca mencionar o euroceticismo crescente nos eleitores dos Países Baixos, o PM disse que lhe dá “particular gosto que o contrato tenha sido assinado com uma empresa holandesa, demonstrando, aliás, que a solidariedade europeia não é só unívoca”. “Uma parte importante do financiamento que a UE fornece aos diferentes países tem um retorno e uma distribuição múltipla para vários Estados-membros, designadamente para os que mais contribuem para o funcionamento da UE. […] Com esta solidariedade, potenciamos também o conjunto da UE”, declarou.
António Costa referiu o período da covid-19, em que Gouveia e Melo liderou a organização das primeiras vagas de vacinação em Portugal, e elogiou o CEMA por ter concebido o projeto de Plataforma Naval Multifuncional. “O navio D. João II é uma grande oportunidade para se alavancar o conhecimento e a investigação na área do mar, produzindo-se recursos que sejam valorizados através da economia azul”, disse, antes de acentuar que o PRR foi pensado em “momento muito difícil” em que o Mundo enfrentava a ameaça da pandemia.
“Ao mesmo tempo em que cada um estava empenhado em fazer o combate que a pandemia impunha, tínhamos de preparar e construir o futuro pós-pandemia. Foram tempos difíceis para fazer tudo ao mesmo tempo, pensar na emergência e, simultaneamente, planear o pós-emergência. Felizmente foi possível que assim acontecesse”, observou.
O PM realçou a importância da Marinha em missões de busca e salvamento, na atuação em situação de emergência, no apoio aos órgãos de polícia criminal, sendo “um grande centro produção de conhecimento, de investigação e de desenvolvimento tecnológico”. “A Marinha tem estado sempre na vanguarda”, vincou.
A Plataforma Naval Multifuncional, conceito desenvolvido pelo almirante, é financiada pelo PRR no valor de 94,5 milhões de euros e com verbas estatais correspondentes a 37,5 milhões, desenvolvendo-se o investimento por fases, até 2026.
E o NRP D. João II, que terá tecnologia de ponta para monitorização dos oceanos, investigação oceanográfica e acompanhamento da ecologia marinha, estará apto para operações de emergência, vigilância, investigação científica e tecnológica e monitorização ambiental e meteorológica, funcionando como ‘porta-drones’ aéreos, terrestres e submarinos.
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Enfim, a Marinha precisa de meios, de pessoas e de dedicação plena. Temos uma enorme fronteira marítima e uma grande zona económica exclusiva (ZEE) de espaço marítimo, para lá das nossas águas territoriais.
2023.12-27 – Louro de Carvalho
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