Para 2023 ficar na História como ano que deixa poucas
saudades, bastaria apontar a destruição e a mortandade da guerra na Ucrânia,
que originou migração forçada e tráfico de crianças para a Rússia, e que está,
agora, em situação de impasse. A esta inqualificável guerra adicionou-se, a
partir de 7 de outubro, a guerra entre Israel e o Hamas, com a eliminação do
Estado Palestiniano na mira, em que se vê todo o tipo de atrocidades bélicas e
humanas.
A par destes dramáticos acontecimentos, sobressaem as catástrofes
naturais, os alarmantes recordes nas temperaturas do planeta, a continuação dos
conflitos em países como a Síria, a República Centro-Africana e o Sudão, bem
como a chegada ao poder da extrema-direita eivada de anarcopopulismo (caso da
Argentina).
Em Portugal, destaca-se a crise política, por atuação
errática do Ministério Público (MP), de que resultou a demissão do governo e a
dissolução da Assembleia da República (AR). E, na Igreja Católica, ressalta o conhecimento
da dimensão dos abusos sexuais de menores.
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No entanto, nem tudo foi mau. A par de tantas coisas
más, são de registar muitas coisas boas que ajudam a atenuar os efeitos das más
notícias.
O Banco de Portugal (BdP) prevê que o Estado feche
2023 com um excedente orçamental de 1,1% do produto interno Bruto (PIB). É a
segunda vez que tal acontece em democracia. Mário Centeno, governador do BdP
recomendou cautela na utilização deste excedente. E o Orçamento do Estado prevê
a criação de um fundo para financiar futuros investimentos.
O ano de 2023 foi aquele em que avançaram os projetos-piloto
para testar a semana de quatro dias. Em Portugal, foram 39 empresas a
participar, abrangendo mil trabalhadores. A maioria das empresas envolvidas
considerou positiva a experiência, pois a reorganização do trabalho permitiu manter os níveis de produção
com o mesmo número de trabalhadores, usando menos tempo, e os trabalhadores sentiram-se
mais criativos e produtivos, menos cansados e ansiosos.
Completou-se, em 2023, o processo legislativo da
Agenda do Trabalho Digno e de Valorização dos Jovens no Mercado de Trabalho,
com o objetivo de melhorar as condições de trabalho e a conciliação entre a
vida pessoal, familiar e profissional.
Na reta final do ano, a AR aprovou a lei que garante o
direito à autodeterminação da identidade de género nas escolas, bem como a
lei que proíbe “quaisquer práticas
destinadas à conversão forçada da orientação sexual, identidade ou expressão de
género”. E as terapias de conversão estão na mira da União Europeia (UE). Em
novembro, um relatório do Parlamento Europeu (PE) defendeu que tais
práticas devem ser banidas do espaço comunitário.
De 1 a 6 de agosto, a Igreja Católica, as autarquias e
o governo realizaram a Jornada Mundial de Juventude (JMJ) em Lisboa, a mais bem
organizada de todas as JMJ.
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Há várias décadas que a taxa de pobreza internacional
tem vindo a cair. A crise pandémica inverteu a tendência, durante três anos,
mas 2023 marca o ano em que, globalmente, se regressou aos valores
pré-pandemia. Todavia, o Banco Mundial estima que 691 milhões de
pessoas vivem em pobreza extrema, ou seja, 8,6% da população, comparado com
9,74%, em 2020. E alerta que as taxas globais escondem graves clivagens entre
países, com o Médio Oriente, África (Norte e Subsaariana) e Sul da Ásia a ver
pouca ou nenhuma melhoria. Erradicar a pobreza extrema globalmente até 2030 – objetivo
da Organização das Nações Unidas (ONU) – permanece improvável sem atenção
adicional a estes países, segundo os especialistas.
Mais de três anos depois de a covid-19 ter entrado
para o léxico mundial, a Organização Mundial de Saúde (OMS), a 5 de maio, deu
por finda a emergência global da pandemia, que infetou mais de 772 milhões de
pessoas no Mundo, matando perto de sete milhões. Em Portugal, o vírus infetou
mais de metade da população (5,5 milhões) e vitimou 26 mil pessoas.
No início do ano, o Papa disse, em entrevista, que
as leis que criminalizam a homossexualidade são injustas. “Ser homossexual não
é crime [...], mas pecado”, esclareceu. Uma declaração da Igreja Católica neste
sentido era esperada desde 2019 e que é um progresso assinalável, face a 2008,
com o Vaticano a recusar a declaração da ONU que apelava à descriminalização da
homossexualidade. E o ano termina com Francisco a autorizar bênçãos a casais
que vivem em situação irregular, para a Igreja, incluindo casais de pessoas do
mesmo sexo. A Santa Sé foi mais longe do que temiam alguns e menos do que
esperavam outros.
Após quase duas décadas de negociações, o Mundo
alcançou um “acordo histórico” para proteger os oceanos. O Tratado do Mar Alto, adotado pelos 193 Estados-membros da ONU, cria
a “onda comum de conservação e sustentabilidade no alto mar, para lá das
fronteiras nacionais – cobrindo dois terços dos oceanos do planeta”. Entre os objetivos do documento, juridicamente
vinculativo, consta a proteção de 30% dos oceanos, até 2030. Portugal antecipou
a meta para 2026. E, no Algarve, foi criada uma nova Área Marinha Protegida, a
primeira aprovada neste século.
Em julho, Portugal juntou-se ao crescente número de
países que pedem “pausa precaucionária à mineração em mar profundo”, até que
haja conhecimento científico suficiente para perceber os riscos desta prática.
Isto, quando os Açores avançaram com a moratória que proíbe este tipo de
exploração na região, até 2050.
Em terra, entrou em vigor a Lei Europeia da
Desflorestação. Como vinca o PE, para defender o clima e a biodiversidade,
lei obriga, a partir de 2025, as empresas a garantir que os produtos vendidos
na UE não causaram desflorestação nem degradação florestal.
Embora a Lista Vermelha
das Espécies Ameaçadas, da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN) revele que há mais de 44 mil animais em risco,
2023 foi o ano da recuperação de espécies. É o caso do Onyx (dado como extinto
no estado selvagem, mas reintroduzido, com sucesso, no Chade) e da baleia azul
(foram, novamente, encontrados exemplares no Oceano Índico, após terem sido
dizimadas pela caça), entre outros.
No combate às alterações climáticas, o ano ficará
marcado com os passos históricos dados na Cimeira do Clima da ONU (COP28).
Reunidos no Dubai, os países estabeleceram um Fundo de Perdas e Danos. E, pela primeira vez, o texto final da
Cimeira do Clima da ONU inclui menção a “uma transição para o abandono” dos
combustíveis fósseis.
Embora as alterações climáticas continuem a inspirar
muitos alertas, estes não foram os únicos sinais positivos, nomeadamente na
redução de emissões de gases com efeito de estufa (GEE). Assim, a Califórnia
aprovou a lei que exige que grandes empresas (como a Exxon, Apple, Disney e
outras gigantes) divulguem informações sobre as suas emissões de carbono; o Equador votou, em referendo, contra
exploração de petróleo na Amazónia; e a Suíça aprovou, também em referendo, a
lei que estipula a neutralidade carbónica para 2050.
Voltaram a ser dados passos, em todo o Mundo, no
combate à desigualdade de género e para salvaguardar os direitos das mulheres. Assim,
a Austrália aprovou a lei de transparência sobre desigualdade salarial; a Espanha aprovou a criação
da licença menstrual e permite o aborto aos 16 anos, sem autorização
parental; a Índia criou uma quota que reserva 33% dos
assentos no Parlamento para mulheres; a primeira-ministra da
Islândia juntou-se à greve das mulheres contra as desigualdades;
o México descriminalizou o aborto; e a África
do Sul avançou com lei para se tornar o primeiro país a ter licença parental
totalmente partilhada.
Segundo a UNICEF, agora, há mais 50 milhões de
raparigas inscritas na escola do que em 2015. Apesar deste progresso, a ONU
adverte que a África Subsaariana e o Afeganistão são áreas de particular
preocupação para a exclusão das raparigas e jovens mulheres da educação, quando
16% das crianças e jovens de todo o Mundo ainda não vão à escola.
O ano de 2023 fica também para a História como o ano
do futebol feminino. Com quase dois milhões de adeptos nos estádios da
Austrália e Nova Zelândia, este Mundial bateu um recorde de público. Em média,
cada jogo teve 26 mil pessoas nas bancadas. Para Portugal, esta foi a estreia na competição mais importante da
modalidade. Telma Encarnação marcou o primeiro golo da seleção nacional a
competição. A Espanha saiu vitoriosa, tendo a celebração
ficado marcada pela polémica de o presidente da federação espanhola ter beijado
uma jogadora. A controvérsia arrastou-se durante meses, mas Luis Rubiales foi
afastado por três anos.
Na Europa, a explosão mediática da modalidade trouxe
mais investimento. A UEFA vai abrir uma segunda competição de clubes e expandir
a Champions, para incluir mais
equipas.
Fruto dos esforços para cortar as emissões de químicos
com efeitos prejudiciais, a ONU prevê que, se as atuais políticas permanecerem em
vigor, a camada de ozono recuperará para os valores de 1980 (antes do
aparecimento do buraco na camada de ozono), por volta de 2066, sobre a
Antártida, até 2045, sobre o Ártico, e até 2040, para o resto do Mundo. A recuperação terá impacto na mitigação das
alterações climáticas, evitando o aquecimento adicional de 0,5ºC.
Cientistas da Universidade de Edimburgo desenvolveram
uma bactéria geneticamente modificada que se alimenta de plástico e o transforma
numa matéria-prima utilizável no fabrico de outros produtos. O estudo divulgado
na ACS Central Science vê a descoberta como solução para o problema das
toneladas de resíduos de plástico que, todos os anos, acabam em aterros e no
mar.
O ano fica também marcado por vários avanços na Medicina.
No tratamento do cancro do colo do útero, os cientistas alcançaram o maior
desenvolvimento dos últimos 20 anos. Os resultados dos ensaios clínicos mostram
que a utilização de medicamentos já disponíveis e baratos antes da radioterapia
traduziu-se na redução de 35% na taxa de morte e de reincidência da doença. E, nos EUA, foi aprovado o primeiro
medicamento que desacelera os sintomas da Alzheimer. A avaliação da Agência
Europeia de Medicamentos (EMA) é esperada no início de 2024.
A OMS deu luz verde à vacina contra a malária, uma das
doenças mais mortíferas em África. Vista como “grande avanço para melhorar a
saúde infantil e a sobrevivência das crianças”, foi distribuída em 12 países (18
milhões de doses administradas a partir de 2024). Há que prevenir dezenas de
milhares de mortes futuras por ano. E a OMS já pré-qualificou uma segunda
vacina.
Pela primeira vez, uma equipa de médicos de Nova
Iorque transplantou um olho inteiro, para um paciente de 46 anos. Apesar de ainda não ser certo
se o homem recuperará a visão, o órgão “demonstrou sinais extraordinários de
saúde”. E o caso constituiu uma oportunidade única para estudar o olho humano e
um passo importante na procura por uma cura para a cegueira.
Não é fenómeno novo, mas, em 2023 a Inteligência
Artificial (IA) deu o salto para o grande público que a transformou na grande
tendência tecnológica. Com um ano de vida, o ChatGPT é exemplo disso. A startup,
avaliada em 80 mil milhões de dólares, superou os 100 milhões de utilizadores
semanais. Mas a idade de ouro da IA vai além
da ferramenta de bolso para responder a todas as perguntas. As possibilidades
são infinitas e têm impacto nas nossas vidas.
A 15 de outubro, a Polónia foi a votos. O resultado
foi uma geringonça de três partidos que fez retornar Donald Tusk ao poder e pôs
fim a oito anos de governo conservador de direita. A viragem ao centro e a
favor da UE foi aplaudida como sinal de esperança por toda a Europa,
contrariando a ideia de que a Europa Central está a tornar-se irremediavelmente
mais iliberal.
A greve dos atores e argumentistas congelou a máquina
de Hollywood, durante seis meses, causando centenas de milhares de dólares em
prejuízos para os estúdios e adiando inúmeras estreias. Os efeitos continuarão a sentir-se no início
de 2024, agora que a indústria apressou a retoma das produções. Mas, para os
mais de 11 mil argumentistas e cerca de 15 mil atores, a greve trouxe melhorias
significativas e assegurou pagamentos residuais pela exibição dos seus
conteúdos em plataformas de streaming e
garantias relativamente à utilização de IA.
Foi fenómeno cultural incontornável de 2023 a estreia,
num dia, dos dois filmes mais antecipados do ano, gerou frenesim mediático à
volta de Barbie e Oppenheimer, batendo recordes
de bilheteira e levando de volta o público às salas de cinema, após a
pandemia.
Cumprindo a
uma obrigação dos Tratados (TFUE, artigos 77.º-80.º), o PE e o Conselho Europeu
acordaram em aprovar um pacote legislativo sobre a política comum de imigração
e de asilo. Sem prejuízo do incentivo à imigração regular, que preenche
manifestas carências de mão-de-obra, e sem pôr em causa o direito ao asilo, um
direito constitucionalmente protegido na Carta de Direitos Fundamentais da
União, visa-se, entre outras coisas, melhorar o controlo à entrada, tornar mais
expedito o procedimento de decisão do asilo e operacionalizar o retorno dos
candidatos não admitidos, além de uma resposta mais eficaz a situações de
crise.
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Enfim, 2023
foi um ano de avanço na promoção e na defesa dos direitos humanos, na atenção
ao lado social e no progresso científico, mormente no que é útil à
Humanidade.
2023.12.28 – Louro de Carvalho
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