A
19 de dezembro, foi apresentado o estudo “A Fiscalidade em Portugal”, do
economista Alexandre Mergulhão, professor do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL
ou ISCTE), que sustenta que o país “tem uma carga fiscal
abaixo da média europeia, mas a sua composição penaliza trabalhadores e outros grupos
de menores rendimentos”, contrapondo que a ideia de que os
impostos são muito elevados não encontra sustentação
empírica.
O
estudo ora tornado público, com apresentação no Sindicato dos Professores da
Grande Lisboa (SPGL), foi promovido pela associação cívica Causa Pública,
dedicada à produção de propostas de políticas públicas. Na direção da
associação, além do ex-governante socialista Paulo Pedroso, que preside,
encontram-se Alexandra Leitão, deputada do Partido Socialista (PS), e Ana Drago,
antiga dirigente do Bloco de Esquerda (BE).
Para o referido economista, a discussão sobre a fiscalidade tende a
centrar-se na ideia de que Portugal deve baixar os impostos, por serem
demasiado elevados – ideia
aliciante, pois ninguém gosta de pagar impostos, embora compreenda que “os
impostos são o preço que pagamos para vivermos numa sociedade decente”. Porém,
apesar de aliciante, a ideia não passa disso.
Questionado
sobre a razão por que vários partidos apontam que a carga fiscal é demasiado
pesada, o economista contrapõe que isso se deve à falta de “programa político”,
pois, segundo o Eurostat, em 2022, a carga fiscal, em Portugal (35,8%), foi inferior
à média da União Europeia (UE) (40,0%) e da Zona Euro (40,6%). Diz o autor: “Apesar de ter aumentado
nos últimos anos, a carga fiscal, em Portugal, é, e sempre foi, inferior à
média europeia. Isto é especialmente preocupante dadas as nossas caraterísticas
socioeconómicas: um dos países mais envelhecidos do mundo e com obrigações
constitucionais de provisão de saúde e educação. Penso que esta
ideia prolifera no nosso país, porque vários partidos ficaram sem programa
político e, por isso, adotaram a estratégia fácil de alimentar esta ideia
aliciante, mas falsa.”
O
estudo aponta que o imposto sobre o valor acrescentado (IVA) e outros impostos indiretos
são regressivos (maior peso nos rendimentos dos pobres), para lá de serem “a
maior fonte de receita do sistema fiscal”. “De facto, em Portugal, a fiscalidade
incide demasiado em impostos indiretos (43% da receita fiscal, enquanto, na UE,
é de 34%) e em impostos sobre o consumo. Estes são os únicos tipos de imposto
em que temos carga fiscal acima da média da UE. E essas diferenças têm
aumentado nos últimos anos.
Estes
impostos são pagos por todos os residentes e resultam numa taxa efetiva mais
elevada para os mais pobres, porque representam maior proporção do seu
rendimento. Assim, aumentando os impostos indiretos e baixando os diretos, como
tem acontecido nos últimos anos, reduzimos a progressividade do sistema fiscal
global. Por isso, o economista preconiza: “Devemos inverter esta tendência e
caminhar no sentido de reduzir os impostos sobre o consumo e contrabalançar com
impostos diretos e sobre o capital.” Entre outras opções, uma forma de
reequilibrar a fiscalidade Portuguesa é reintroduzir o imposto sobre as
sucessões e doações (abolido em 2003), aplicando-o só às grandes fortunas. A maioria dos países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico] e todos os países da UE,
exceto a Áustria e a Suécia, têm o imposto sobre as heranças e doações. “Dada a
elevada desigualdade de riqueza e a ausência de ferramentas para a atenuar, em
Portugal, deveríamos equacionar um imposto sobre as heranças milionárias (valor
patrimonial tributário acima de um milhão de euros, líquidos de dívidas), sem
afetar as poupanças de todos os outros residentes.”
A
ideia é apoiada por Paulo Pedroso. Vincando que é a sua perspetiva pessoal, lembra
que “haveria uma margem para repor impostos sobre a transmissão de património,
portanto sobre as grandes heranças, que poderiam ter um efeito económico”, permitindo
compensar a eventual redução da receita em impostos indiretos, com a caraterística
adicional de que seria um imposto sobre riqueza não ganha pelos beneficiários,
porque é um imposto sobre a transmissão, em vez de sobre o que a pessoa paga ou
sobre os recursos que ela própria obtém do seu esforço. E defende que é justo “não
taxar as pequenas poupanças ou heranças de pequena dimensão”, tal como acontece,
devendo este reforço fiscal ser aplicado a “heranças de valor patrimonial de
milhões de euros”, que, segundo a legislação vigente, “são tratadas como
heranças meramente simbólicas” e provocam distorção, ao permitirem a “transmissão
de privilégio”.
Enfim,
o estudo sublinha “que Portugal tem um sistema
fiscal com baixa taxação sobre a riqueza, face ao trabalho e ao consumo”,
contradizendo a narrativa de vários partidos. Além disto, questionado sobre o
motivo que levou o Partido Social Democrata (PSD) a propor um programa de
reforma fiscal centrado no imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS)
e não nos impostos indiretos, como o IVA, o economista aponta uma ideia de “tradição”,
estendendo ao governo a crítica para esta tendência. Os partidos de direita
preconizam o aumento dos impostos indiretos e a redução dos diretos. Não seria,
pois, de esperar uma alteração desta tradição. “O que acontece é que o governo
tem seguido essa estratégia, para esvaziar ainda mais o programa da oposição de
direita e para aumentar o rendimento líquido das classes médias”, lembrou.
“A
questão é que as ideias políticas das pessoas, muitas vezes, não correspondem
às posições que derivariam dos seus interesses diretos”, explicou. De facto, em
inquérito e sondagem, muitas das pessoas que não pagam IRS respondem que este
imposto é demasiado elevado. Ora, isso acontece devido ao poder das ideias e à
forma como se colocam as questões. Por exemplo, segundo um estudo da OCDE de
2019, Portugal é o país onde mais pessoas (80% dos inquiridos) concordam em
aumentar impostos sobre os mais ricos para apoiar os mais pobres. A maioria
aceita o aumento da carga fiscal, se isso permitir ao Estado dar a todos os
cidadãos melhores serviços públicos na Saúde, na Educação, na Habitação e nos Transportes.
Assim,
o poder da ideia (falsa) de que a carga fiscal é demasiado elevada leva pessoas
que nem pagam IRS a considerar que o imposto é demasiado alto, apesar de ser a
ferramenta redistributiva mais eficaz no nosso sistema fiscal e de as pessoas defenderem
mais redistribuição. Como sempre, cabe aos partidos clarificar estas
contradições, mostrando como é que as suas propostas de política melhoram as
condições de vida dos que vivem em Portugal.
***
Em
síntese, o estudo “refere que Portugal registou uma carga fiscal de
35,8% no ano passado, 4,2 pontos percentuais (pp) abaixo da média da UE e 5,1
pp inferiores à da Zona Euro. Porém, os impostos
indiretos, como o IVA, “são particularmente altos” e têm maior peso nos
rendimentos dos mais pobres, constituindo-se como “a maior fonte de receita
do sistema fiscal”.
O
IRS tende a dominar a discussão pública, mas não
é nesse imposto que se destaca pela elevada carga fiscal, mas nos impostos
sobre o consumo. Apesar de mais de 40% das declarações de
IRS não implicarem o pagamento desse imposto (devido aos baixos rendimentos),
impostos como o IVA recaem sobre todos e com maior força sobre os que têm
menores rendimentos. Portugal tem, assim, um sistema fiscal “com
baixa taxação sobre a riqueza, face ao trabalho e consumo”, sendo o terceiro
país da OCDE com a maior diferença entre a tributação de salários e de
dividendos.
Os impostos sobre a propriedade correspondem a 4,2% do total
da receita, contrastando com países como a Austrália, o Canadá, a Coreia do
Sul, o Luxemburgo, o Reino Unido e os Estados Unidos da América (EUA), que
recolhem mais de 10% de receita, com este tipo de impostos.
Até 2004, Portugal dispunha do imposto sobre as heranças, que
foi substituído por um imposto de selo (IS) de 10% (de que estão isentos os
descendentes, ascendentes e cônjuges).
As diferenças
entre a taxação do capital e do trabalho têm-se aprofundado. Entre 2000 e 2022,
os principais impostos sobre o trabalho aumentaram 4 pp do Produto Interno
Bruto (PIB), apesar de o peso dos rendimentos do trabalho sobre o produto “ter
caído significativamente”. E o IVA e o IRS aumentaram 1,7 pp do PIB, enquanto
os principais impostos sobre o capital subiram 0,2 pp, apesar do crescimento de
rendimentos de capital.
A
complexidade do nosso IRS torna-o um sistema fiscal menos progressivo. A progressividade
“é reduzida pelas várias opções de não englobamento e pelos mais de 140
benefícios fiscais existentes”, pelo que o sistema fiscal deve ser “reequilibrado,
descomplexificado e mais justo”.
O estudo propõe a eliminação paulatina das várias
opções de não englobamento, defendendo que o fim das benesses aos rendimentos
de capitais, às mais-valias e às rendas aumentaria a taxa efetivamente paga
pelos 10% mais ricos e não alteraria o IRS pago por 99,5% dos agregados. E, “se
também aplicássemos
esta medida aos agregados que atingem o penúltimo escalão de IRS, a proposta
continuaria a não alterar o IRS pago por mais de 95% dos agregados, criando
mais folga para diminuir as taxas dos escalões do IRS”, sugere o estudo.
***
Em meados de setembro, o instituto alemão Ifo (Information e Forschung) concluía que a classe média, em Portugal, suporta
uma carga fiscal – impostos e contribuições para a segurança social – mais
baixa do que a média da UE, mas evidenciava que, em termos de rendimento
disponível andamos, igualmente, pelos patamares inferiores. Outra conclusão é a
existência de disparidade no tratamento fiscal nos rendimentos auferidos pelos
solteiros – por toda a Europa há a tendência de oneração significativa dos
contribuintes que não são casados. Os dados são de 2019, pré-pandemia, mas
fornecem um retrato europeu sobre os níveis de carga fiscal praticados nas 27
economias que compõem a UE e permitem aferir quais são os diferentes
rendimentos em cada país. A intenção foi dar uma visão geral da situação da classe
média na Europa, comparando os rendimentos e a carga fiscal em todos os
Estados-membros da UE.
Em Portugal, um casal de classe média, em que ambos
declaram salários idênticos, com dois filhos, entrega ao Estado uma
contribuição fiscal média de 10,5% do rendimento, indica o Ifo (é a quarta
carga fiscal mais baixa entre os 27 Estados-membros); e também fica bastante
abaixo da média da União, que se situou, naquele ano, em torno dos 17%. Uma família portuguesa idêntica, mas com ganhos
mais baixos, a carga fiscal fica nos 3%, enquanto, no patamar classificado como
classe média-alta, a fatura dos impostos e da Segurança Social come quase 21%
dos rendimentos.
Já do lado de um agregado de classe média em que só um
dos membros do casal tem salário, igualmente com dois dependentes a cargo, o
peso dos impostos e contribuições sociais já sobe para os 14%, a terceira mais
baixa e que compara com a média europeia de quase 23%, enquanto a uma família
de classe baixa paga um pouco mais de 3% e um casal de rendimentos mais
elevados suporta quase 24%.
O peso da carga fiscal é particularmente expressivo no
caso dos solteiros, uma realidade transversal na Europa, em que a tendência dos
governos tem sido de beneficiar os contribuintes com filhos. Em Portugal, um
solteiro de classe média suporta uma fatura fiscal na ordem dos 28%, o que
coloca o país com a 10.ª carga fiscal mais baixa.
A classe média na Dinamarca, Bélgica, Alemanha, Finlândia,
Lituânia, Eslovénia e Holanda é a mais tributada. A França, a Polónia, a Itália,
o Luxemburgo, a Suécia e a Áustria impõem impostos médios às suas classes
médias. E estas famílias, em Espanha, Grécia, Estónia, Portugal, Chipre,
Bulgária e Roménia têm carga fiscal inferior à da média da UE.
***
Ao invés, Portugal pontua entre os países onde se ganha pior: está em 11.º
lugar do ranking dos 27 com os rendimentos mais baixos. Portanto,
a reviravolta não deve passar pela diminuição da carga fiscal, mas pela subida
do rendimento e pela baixa dos custos de produção.
Uma classe média forte é importante para a
estabilidade política nas democracias e será a âncora contra o extremismo
político. Com impostos e com outros contributos, os contribuintes com
rendimentos médios engrossam as receitas e, logo, os orçamentos dos governos e o
respetivo financiamento do Estado-providência da UE.
2023.12.20 – Louro de Carvalho
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