O 37.º Prémio Pessoa, ou seja, o Prémio Pessoa 2023, vai ser entregue a
José Tolentino de Mendonça, o cardeal ainda com “muito caminho a percorrer”,
como reza a ata do galardão, anunciado a 14 de dezembro.
Na
véspera, à noite, o telefone tocou várias vezes no bolso do purpurado. Presente
no Palácio de São Bento, em Lisboa, para a inauguração da exposição “Os
caminhos da liberdade religiosa em Portugal”, o prefeito do Dicastério para a
Educação e a Cultura debateu com o presidente da Assembleia da República sobre
as religiões como património da Humanidade”.
Foi só
mais tarde, quando entrou no carro que o ilustre membro da Cúria Romana
conseguiu atender a chamada de Francisco Pinto Balsemão, a anunciar que fora
escolhido como o Prémio Pessoa de 2023 o padre Tolentino – designativo por que era
conhecido o cardeal antes de ser feito arcebispo
titular de Suava, para ocupar os cargos de Arquivista e Bibliotecário da Santa
Sé.
Tímido, agradeceu, recordando a “longa relação de amizade e
de vida” com o Expresso. “Antes de
conhecer qualquer pessoa [na redação], conheci o jornal, com quem aprendi a me
fazer leitor”, afirmou, em breve conversa, em reação à premiação, na manhã do
dia 14.
A relação aprofundou-se, com o tempo, como cronista e com a
aceitação em participar em múltiplas iniciativas marcantes, com destaque para o
debate, em 2009, com José Saramago, sobre o livro “Caim”, de autoria do Prémio
Nobel da Literatura, mediado por José Pedro Castanheira.
O cardeal Tolentino de Mendonça revelou que a totalidade do
prémio, 60 mil euros, será entregue a uma instituição de solidariedade social
portuguesa, cujo anonimato preferiu manter.
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José
Tolentino de Mendonça, o mais novo de cinco irmãos, nasceu na ilha da
Madeira (Portugal), a 15 de dezembro de 1965. Viveu os primeiros anos da
infância em Angola, em zonas costeiras onde o pai era pescador. Deixou África aos
9 anos, aquando da independência das colónias portuguesas. Em 1989,
licenciou-se em Teologia na Universidade Católica Portuguesa
(UCP). Em 1990, foi ordenado sacerdote para a Diocese do Funchal e publicou
a sua primeira recolha de poemas, Os Dias Contados. Em 1992, recebeu
o título de Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico e,
em 2004, o de Doutor em Teologia Bíblica pela UCP.
Como padre,
exerceu as suas funções pastorais na Paróquia de Nossa Senhora do Livramento,
no Funchal, entre 1992 e 1995; depois, em Lisboa, foi
capelão, durante cinco anos, na UCP; serviu pastoralmente na paróquia de Santa
Isabel; e, desde 2010, foi reitor da Capela de Nossa Senhora da Bonanza, mais
conhecida por Capela do Rato.
A 4 de Agosto
de 2021, o Cardeal D. José Tolentino de Mendonça ingressou como membro das
Fraternidades Sacerdotais de São Domingos, em cerimónia que ocorreu no Convento
de São Domingos, em Lisboa.
Os primeiros
anos da sua vida sacerdotal foram também académicos. Foi professor no Seminário
do Funchal, reitor do Pontifício Colégio Português, em Roma, docente
na UCP e professor convidado no Brasil, pela Universidade
Católica de Pernambuco (Unicap), pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro e pela Faculdade de Filosofia e Teologia (FAJE) em
Belo Horizonte. Em Lisboa, integrou a UCP como assistente
(1996-1999), professor auxiliar (2005-2015) e professor associado. Em 2012, a
UCP nomeou-o vice-reitor e, em 2018, diretor da Faculdade de Teologia. Foi
Straus Fellow na Universidade de Nova Iorque, durante um ano, fazendo
parte de uma equipa de investigadores convidados, empenhados no estudo do tema
“Religião e Espaço Público”.
Próximo do mundo
cultural, pela sua vasta obra, pelas publicações e intervenções frequentes nos
meios de comunicação social, Tolentino de Mendonça foi nomeado, em 2004, o
primeiro diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (SNPC), então
criado pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), para promover o
diálogo entre a Igreja e o meio cultural nacional, cargo que assumiu durante 10
anos. A 21 de novembro de 2009, depois de ter assistido a uma reunião do
Papa Bento XVI com uma assembleia de artistas, confidenciou que o gesto
de hospitalidade do Papa foi bastante apreciado e que o Papa assinala que, “no
seio da Igreja, no seio do espaço cristão, [os artistas] têm uma casa, podem
sentir-se como se estivessem em casa”. Em 2011, Bento XVI nomeou-o
consultor do Pontifício Conselho para a Cultura, cargo para que foi
reconduzido pelo Papa Francisco, em 2016.
Em 2018, José
Tolentino de Mendonça foi convidado por Francisco para orientar os
Exercícios Espirituais do retiro da Quaresma do Papa e dos membros da Cúria
Romana, entre 18 e 23 de fevereiro. Para lá da Bíblia, recorreu a escritos
de Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Françoise Dolto, Etty
Hillessum ou Blaise Pascal, pois “os escritores são muitas vezes
importantes guias espirituais”. As suas reflexões, sob o título Elogio
da Sede, são prefaciadas pelo Papa.
Ainda em 2018 foi nomeado arcebispo e, como tal, indicado para os cargos de
Arquivista e Bibliotecário da Santa Sé. Em 2019, foi elevado a cardeal,
tendo-lhe sido atribuída a igreja romana dos Santos Domingos e Sisto. Em 2022,
o Papa escolheu-o como o primeiro Prefeito do Dicastério para a
Cultura e a Educação.
Em janeiro de
2020, integrou comissão científica dos 700 anos da morte de Dante
Alighieri (1265-1321) presidida pelo cardeal Gianfranco Ravasi, uma
iniciativa do Pontifício Conselho para a Cultura. E, em junho desse ano,
Francisco nomeou-o membro do Pontifício Conselho para a Cultura,
presidido pelo cardeal Gianfranco Ravasi, tendo sido seu consultor entre
2011 e 2018.
Ainda em junho
de 2020, recebeu o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, devido à “capacidade que
demonstra, ao divulgar a beleza e a poesia como parte do património cultural
intangível da Europa e do Mundo”. E, sob a sua liderança, no âmbito
do 50.º aniversário da inauguração da Coleção de Arte Moderna dos Museus do
Vaticano, o Dicastério da Cultura e Educação foi o principal organizador de um
encontro entre o Papa e cerca de duzentos representantes do mundo cultural,
artistas, escritores, compositores, músicos, acores, arquitetos, etc. de todo o
Mundo. Este evento teve lugar a 23 de junho de 2023, na Capela Sistina.
Considerado
uma das vozes do catolicismo contemporâneo, Tolentino de Mendonça, poeta
e especialista em Estudos Bíblicos, tem publicados ensaios, textos espirituais,
poemas e sermões, onde aborda os temas maiores do cânone cristão,
relacionando-os e fazendo-os dialogar com a vida e com o quotidiano. A relação
entre o cristianismo e a cultura constitui o foco central dos seus
textos, procurando, enquanto teólogo e pensador religioso, descobrir
a vida espiritual nos locais mais esquecidos, incentivando, ao mesmo tempo, a
Igreja a ser mais presente e mais pertinente. As suas obras são muito bem-sucedidas
em Portugal e cada vez mais traduzidas e publicadas no estrangeiro.
Recebeu já inúmeros prémios literários, que contribuem para enaltecer a sua
carreira enquanto escritor e sublinham o seu papel no mundo cultural.
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Mais do que “que coisa são as nuvens”, importa saber o que é uma Pessoa, não
só quem foi o poeta Fernando Pessoa, mas quem é o ser humano. E é a esta
peregrinação para o outro que Tolentino de Mendonça tem dedicado a vida: a
pescar identidades, como em África, quando via o pai pescar. Quem como este
sacerdote poeta se pergunta “Que coisa são as nuvens” – título das crónicas que,
durante anos, escreveu para o Expresso
– gostará de saber sobre o que é uma pessoa.
Criado para homenagear, em vida, Portugueses com contributos relevantes para o país, tendo como referência
Fernando Pessoa, o prémio é atribuído pelo Expresso
e pela Caixa Geral de Depósitos a individualidades com percursos marcantes. É o maior e mais prestigiado galardão nacional,
que destaca, para a sociedade, uma obra que, no ano em causa, tenha alcançado
particular destaque nos campos da Arte, da Cultura, da Literatura, das Ciências
ou da Arquitetura.
Desta vez, é atribuído ao padre, escritor e poeta, académico, mas,
sobretudo, jovem madeirense, que chegou a arcebispo e a cardeal, que se tornou
romano, sem deixar de ser português
É de recordar que, em 2020, na pandemia, em cerimónia simbólica no Mosteiro
dos Jerónimos, fez ver aos Portugueses, no Dia de Portugal, que era no diálogo
geracional que encontrariam a saída para a angústia daquele contexto.
Em 2009, em entrevista ao Expresso,
disse que, antes de ser padre, queria ser jornalista. Afinal, a propensão para
a escrita esteve sempre com ele. Foi com a vertente de escritor e de poeta que
se fez próximo de muitos Portugueses, mesmo de não crentes, encantados com a
sua narrativa poética, mesmo quando o registo era, por exemplo, de crónicas.
Nessa conversa, confessou uma oração iluminada pelas palavras de Pessoa: “Gosto
muito de um poema do Fernando Pessoa, que para mim é uma oração. É um bocado
heterodoxo, mas eu rezo muito: ‘Ave, passa, e ensina-me a passar.’ Essa
passagem silenciosa ensina-me a não deixar rasto.”
As jornalistas da entrevista provocaram-no: “No entanto, escreve. Vai
deixar rasto.” Tolentino de Mendonça resistiu: “Tudo isso vai ser esquecido.”
“Na sua vida, ainda com muito caminho a percorrer, Tolentino de Mendonça
tem-se mantido fiel ao lema contido no título do seu mais recente livro. Tem
sido um humilde e generoso Peregrino da Esperança”, lê-se na ata do júri,
citada pelo comunicado emitido, no dia 14, pela organização.
Sentado entre o crítico de arte, José Luís Porfírio, e o musicólogo Rui
Vieira Nery, o fundador do Expresso, Francisco
Pinto Balsemão, presidente do júri, anunciou o vencedor, destacando ser José Tolentino
de Mendonça “uma das vozes fundamentais da poesia portuguesa” e vincando o
“banho de cultura” que marca o debate que caracteriza o processo de seleção.
Para os jurados, “em todos os domínios da notável e diversificada atividade
intelectual, José Tolentino de Mendonça projeta uma visão do Mundo norteada por
uma espiritualidade que pretende acolher, compreender e transcender as
dilacerações, conflitos e sofrimentos da Humanidade”. Alguém que, pode ler-se,
“protagoniza uma conceção integradora, unificadora e universal da força
espiritual da literatura, que lhe serve de guia desde sempre”. Sublinha-se
ainda, no comunicado, que, “foi neste sentido que introduziu a poesia de
Fernando Pessoa, entre outros escritores, nos Exercícios Espirituais do Retiro
de Quaresma do Papa e da Cúria Romana”.
***
José Tolentino de Mendonça é o segundo cardeal a receber este
prémio. O primeiro foi D. Manuel Clemente, então bispo do Porto, premiado em
2009. O 37.º galardoado com o Prémio Pessoa é escolhido no ano em que o Expresso decidiu, em escolha coletiva,
que o título de Personalidade do Ano de 2023 deveria ser atribuído às vítimas
de abusos sexuais da Igreja católica em Portugal, o mesmo ano em que se
realizou em Lisboa a Jornada Mundial para a Juventude.
A CEP
congratula-se pela atribuição do Prémio Pessoa 2023 ao cardeal José Tolentino
de Mendonça e elogia a sua “cultura de busca de sentido e de convergência”. “Bem
haja, D. José Tolentino, pelo seu precioso contributo para uma cultura de busca
de sentido e de convergência, no Mundo complexo e diversificado em que vivemos,
alimentando o sonho de um futuro de dignidade, justiça e paz para toda a Humanidade,
próprias do tempo de Natal que estamos a preparar”, referem os bispos, em comunicado
enviado à Rádio Renascença.
A CEP
destaca a forma como Tolentino de Mendonça comunica, com o “rigor académico” e
a “veia poética que caraterizam as suas obras literárias e a sua atuação”. “Revela
um pensamento claro, interrogante e desafiador dos grandes temas da
contemporaneidade, à luz de um humanismo celebrativo e inquieto, onde se
reflete a sapiência do Evangelho”, assinalam os bispos.
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Uma voz
escutada e acolhida merece ser celebrada e ecoar pelos corações de boa vontade!
2023.12.14
– Louro de Carvalho
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