Na sequência
das críticas surgidas à Operação Influencer, que levou à demissão do
primeiro-ministro (PM) e à marcação de eleições legislativas antecipadas, a procuradora-geral
da República disse, a 11 de dezembro, estar “bem ciente da responsabilidade” do
Ministério Público (MP). E, mais do que isso, denunciou ataques ao MP,
garantindo que esta magistratura vai continuar “inquebrantável e incólume” às
críticas que surgiram após a Operação Influencer, que levou à queda do governo.
“Estão, hoje, bem patentes as profundas e entrecortadas raízes dos
ataques desferidos a uma magistratura com provas dadas e que permanecerá
inquebrantável e incólume a críticas desferidas por quem a visa menorizar,
descredibilizar ou mesmo, ainda que em surdina ou subliminarmente, destruir”,
afirmou Lucília Gago, em discurso na
sede da Polícia Judiciária (PJ), em Lisboa.
E acrescentou: “É de lamentar e refutar abordagens bipolares que tanto
parecem enaltecê-lo como, quando fustigado por vendavais que incidem e
impacientam certos alvos de investigações, o passam a considerar altamente
questionável e inoperante, clamando por redobradas explicações, nunca
suscetíveis, desse ponto de vista, de atingir o limiar da suficiência.”
Estas declarações ocorreram no dia em que o PM reiterou a
sua indisposição contra o parágrafo do comunicado da Procuradoria-Geral da
República (PGR), de 7 de novembro, que o visou na investigação conexa com a Operação
Influencer. “O que se pode é perguntar a quem fez o comunicado, a quem tomou a
decisão posterior de dissolver a Assembleia da República [AR], se fariam o mesmo
perante aquilo que sabem hoje”, disse o PM à CNN Portugal, na residência
oficial de São Bento, antes de participar no debate parlamentar que antecede a
próxima cimeira europeia.
***
Esta
(in)oportuna troca de galhardetes obnubilou a relevância da conferência “A
defesa da integridade e da transparência no desporto”, com que se pretendeu
assinalar o Dia Internacional de Combate à Corrupção, que se comemora a 9 de
dezembro.
Na
abertura da conferência, Lucília Gago, vincava que o 9 de dezembro de 2003 “ficará
para a História como o momento em que a Humanidade deu mais um passo importante
no caminho de construção de uma comunidade global, assente na dignidade da
pessoa humana, na qual o desenvolvimento individual deverá ocorrer no seio de
instituições justas”. Referia-se à Convenção das Nações Unidas contra a
Corrupção, aberta à assinatura de todos os Estados, nessa data, representando
um avanço civilizacional, porque vai muito além de instrumento de luta contra
um determinado fenómeno criminal.
No
seu preâmbulo, ressalta que “a gravidade dos problemas e das ameaças que a
corrupção coloca à estabilidade e segurança das sociedades […] mina as
instituições e os valores da democracia, os valores éticos e a justiça e
compromete o desenvolvimento sustentável e o Estado de direito”. Por isso, é “um
instrumento de proteção dos princípios e valores fundamentais, entroncando, na
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), promulgada a 10 de dezembro
de 1948, que trouxe uma luz de dignidade e humanidade a um tempo em que a
escuridão das atrocidades da guerra estava ainda muito presente”. Porém, “esses
tempos sombrios parecem querer voltar”.
Aplaudiu
o tema escolhido para a celebração deste Dia Internacional contra a Corrupção,
ao invés de quem pensa que seria mais avisado refletir sobre problemas de
integridade e de infiltração de fenómenos corruptivos no sistema financeiro, na
administração do Estado, nas autarquias locais, na justiça e no setor privado.
Porém, como diz, nenhum setor é alheio ou imune à corrupção, pelo que é necessário
abordar esta temática no desporto. Com efeito, é preciso criar “uma comunidade
global de pessoas norteadas pelos princípios e valores fundamentais”.
A
respeito do desporto, lembrou as palavras do Prémio Nobel da Paz Nelson
Mandela, quando referia: “O desporto tem o poder de mudar o Mundo. Tem o poder
de inspirar. Tem o poder de unir as pessoas de uma forma que poucas outras
coisas conseguem. Fala para os jovens numa linguagem que eles entendem. O
desporto consegue criar esperança onde antes existia apenas desânimo. É mais
poderoso que os governos em quebrar barreiras raciais.”
Os
valores associados ao desporto possuem conteúdo jurídico, de fonte normativa,
nas suas diversas dimensões. A Carta Europeia do Desporto revista, adotada a 13
de outubro de 2021 pelo Conselho da Europa, é exemplo paradigmático de um
instrumento que reconhece os valores associados ao desporto como elemento
integrante da concretização de direitos humanos (por exemplo, pelo combate à
discriminação, pela proteção de pessoas vulneráveis, pelo combate à
arbitrariedade e a outros abusos violadores do sentido de justiça) e de
promoção dos valores da ética no desporto e da integridade. O artigo 8.º da
Carta Europeia do Desporto (revista) merece destaque “nesta dialética com a
Convenção de Mérida, na lógica de convocação da integridade pessoal,
competitiva e organizacional que tem na corrupção a sua maior ameaça”.
Na
verdade, a corrupção, aniquilando a integridade do desporto, “impede o
contributo deste para o desenvolvimento humano”, pelo “estímulo dos valores éticos
e morais associados à dignidade da pessoa e à proteção de todos os envolvidos
contra qualquer prática abusiva”.
A
noção de integridade assume diversas variações, mas, na ótica dos que têm a
responsabilidade de intervir no contexto da ação penal, a integridade no
desporto é enquadrada em três pilares fundamentais: o da integridade das
pessoas envolvidas, designadamente no domínio das garantias de proteção contra
qualquer forma de abuso ou violência e de proteção da sua segurança; o da
integridade das competições, com especial enfoque na manipulação do resultado
desportivo, da utilização de doping ou
qualquer ato ou omissão intencional que vise uma alteração irregular do
resultado desportivo; e o da integridade das organizações e entidades que
intervêm no desporto e da necessidade de pautarem a conduta por padrões de boas
práticas eticamente orientadas. Nesta variedade de setores potencialmente
abrangidos pelo conceito de integridade no desporto, sobressai o pilar
associado à integridade das competições, designadamente no respeitante à manipulação
do resultado desportivo. Por isso, as instituições de Justiça têm de
compreender que os tempos mudam e, com eles, os fenómenos criminais. Assim, cumpre
aos operadores judiciários, sobretudo ao MP e à PJ, constante atualização, nomeadamente
pelo desenvolvimento de atuação que permita considerar os fenómenos contemplados
na Convenção de Macolin (Convenção do Conselho da Europa sobre a Manipulação de
Competições Desportivas).
Os
fenómenos criminais associados ao financiamento das organizações desportivas,
às apostas nas competições desportivas e ao branqueamento das vantagens de
infrações penais relativas à manipulação de competições desportivas são
domínios onde se exige o aperfeiçoamento dos mecanismos de deteção e de
investigação especialmente orientados e adaptados.
Neste
âmbito, é de assinalar que Portugal, através da PGR, é membro fundador da Rede
MARS, uma rede de Magistrados do Ministério Público criada sob a autoridade do
Acordo Parcial Alargado sobre o Desporto (EPAS) do Conselho da Europa, para
reforçar a cooperação internacional e o intercâmbio de informações para a
proteção da integridade do desporto. E a PGR, reconhecendo o especial papel do
MP neste domínio, continuará a colaborar com a plataforma nacional, nos termos
oportunamente protocolados ou nos que venham a ser legalmente definidos. Porém,
defende Lucília Gago, “só uma atuação estratégica, especialmente vocacionada
para intervir diretamente nas causas da corrupção no desporto poderá […], contribuir
decisivamente para alcançar a desejada eficácia neste domínio”.
Entretanto,
a líder do MP seleciona, como principais causas da corrupção associada ao desporto,
a intenção de obter vantagem desportiva ilegítima e a intenção de obter vantagem
económica indevida. Assim, intervir, de forma decisiva, nas causas destes
fenómenos criminais implica garantir que a investigação conduzida pelo MP,
enquanto titular da ação penal, permite extrair todas as consequências
jurídicas do crime no âmbito da responsabilização penal e na responsabilização
patrimonial dos agentes do crime.
Quando
as motivações dos agentes do crime são norteadas pela intenção de manipulação
dos resultados desportivos, para, assim, obter benefícios ilegítimos na competição
desportiva, a intervenção do sistema formal de Justiça, designadamente no
domínio do exercício da ação penal, deve passar pela necessidade de, a nível
cautelar e da pena aplicada, estimular consequências legalmente previstas,
designadamente no âmbito da suspensão de participação em competições
desportivas. Esta resposta exige, no domínio da violação da integridade
desportiva, adequada articulação com as demais entidades que intervêm no âmbito
da aplicação das sanções por infrações disciplinares desportivas.
Já
quando a motivação dos agentes do crime tem por base a intenção de obter
benefício económico, o exercício da ação penal só ficará totalmente realizado
quando for possível garantir que o crime não compensa. Tal objetivo alcança-se
pela investigação patrimonial e financeira que permita confiscar todas as
vantagens económicas obtidas pelos agentes do crime. Esta necessidade de
aplicar os mecanismos de recuperação de ativos é crucial no âmbito dos ilícitos
penais praticados no contexto das apostas desportivas ilegais. Eliminar o lucro
obtido por estes agentes do crime é a única forma não ingénua de combater tais
ilícitos.
***
Foi
quase no término da sua intervenção que a procuradora-geral da República enviou
os fogachos ao poder político stricto
sensu, afirmando-se “bem ciente da responsabilidade” do MP “enquanto
magistratura a quem foi confiado um conjunto muito alargado de atribuições em
diferentes domínios, especialmente no que concerne à defesa da integridade,
designadamente da desportiva, mas não só”. Tal responsabilidade, sustentou, “será
sempre exercida com objetividade e assumida num quadro de permanente empenho em
assegurar a criação de uma sociedade livre, justa e solidária, assente na
dignidade da pessoa humana, em cumprimento dos valores essenciais previstos no
artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa [CRP]”.
Também,
de forma tímida, a oradora fez um certo mea
culpa, tímido e tardio. Sublinhou que o modelo constitucional, “conferindo-lhe
autonomia”, atribui ao MP “a direção da investigação criminal, norteada pelo
princípio da legalidade”. Este “perfila-se como absolutamente idóneo e apto à
cabal realização da Justiça”. Porém, esta verdade não dispensa, antes consente
e reclama “permanente reflexão, responsável e sem tabus, visando com seriedade
o aprimoramento do modelo”. Aqui a oradora parece alinhar na onda dos que
pensam que fazer voltar o MP ao enquadramento constitucional é atacá-lo, como
acima se descreveu.
Por
fim, equacionou a relação do MP com a PJ. Esta, em especial no combate à
corrupção e na criminalidade afim, assume “inegável centralidade”, face ao conhecimento
e à grande experiência que detém, aos meios técnicos e humanos alocados, que se
propõe reforçar, e aos resultados que alcança, bem como à circunstância de “constituir
o órgão de polícia criminal ao qual está conferida competência reservada para a
investigação”. Resta saber, então, por que motivo a PGR deixou a PJ fora da
Operação Influencer e chamou a Polícia de Segurança Pública (PSP).
É,
pois, irónico dizer que o MP tem, “no combate a este fenómeno criminal, um
parceiro de eleição, absolutamente preferencial e cuja experiência e ‘know how’
não são, nem poderiam ser nunca, desconsiderados”.
Oxalá
o diretor nacional da PJ não esteja equivocado, ao pensar que a sua corporação jamais
ficará fora da investigação à corrupção (incluindo o fenómeno corruptivo no desporto)
e, ao mesmo tempo, ao admitir, que o MP, como líder da ação penal, pode
escolher quem lhe aprouver para cooperar. Em que ficamos? Estamos a menorizar o
MP ou a querê-lo no seu lugar?
2023.12.12 – Louro de Carvalho
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