Na sequência de reunião de 7 de março de 2023, a pedido do Conselho Geral
da Ordem dos Advogados (OA), entre a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a
congénere portuguesa, representadas pelos bastonários, para
discutirem a revisão do acordo de reciprocidade, o Conselho Geral da OA deliberou, por unanimidade, fazer cessar o regime de reciprocidade com a congénere brasileira, tomada
de posição com efeitos a partir de a
5 de julho, mas sem afetar os processos
de inscrição de advogados que se encontrassem em curso, à data. Entre os
motivos apontados, estão a diferença na prática jurídica
em Portugal e no Brasil e as queixas recebidas.
“Sem embargo
do espírito de cooperação e amizade que pontifica nas relações entre as duas
ordens profissionais, perante a gravidade das questões
identificadas e amplamente conhecidas, bem como pela especial repercussão
social que delas decorre, designadamente, no que se refere à garantia de uma
efetiva proteção dos interesses legítimos dos cidadãos de ambos os países,
deliberou o Conselho Geral da OA, reunido em sessão plenária do dia 3 de julho
de 2023, por unanimidade dos presentes, fazer cessar o regime de reciprocidade
de inscrição de advogados atualmente em vigor”, lia-se no site oficial.
O regime de reciprocidade permitia a inscrição na OA em Portugal de um
advogado brasileiro, sem que este tivesse de realizar um estágio ou a prova de
agregação, e vice-versa.
Embora haja uma matriz de base comum aos ordenamentos jurídicos de ambos os
países, em Portugal têm sido adotadas opções legislativas muito distintas
das implementadas no Brasil, até por força da aplicabilidade e da transposição
para o direito interno português do direito da União Europeia (UE), o que tem
contribuído para que “ambos os ordenamentos jurídicos se afastem e tenham
evoluído em sentidos totalmente diferentes”. Assim, a OA considerou que as
normas jurídicas atualmente em vigor em alguns ramos do Direito num e noutro
ordenamento jurídico “já não são sequer equiparáveis”.
“É do conhecimento geral que existe uma diferença notória na prática
jurídica em Portugal e no Brasil, e bem assim dos formalismos e
plataformas digitais judiciais, sendo efetivo o seu desconhecimento por parte
dos advogados brasileiros e portugueses quando iniciam a sua atividade em
Portugal ou no Brasil, verificando-se que ocorre, por isso mesmo, a prática de
atos próprios de advogado de elevada complexidade técnica, por quem não dispõe
da necessária formação académica e profissional, no âmbito dos ordenamentos
jurídicos português e brasileiro”, justifica a OA, que sublinha
as “sérias” e “notórias” dificuldades na adaptação dos advogados brasileiros ao
regime jurídico português, à legislação substantiva e
processual e às plataformas jurídicas em uso corrente, “o que faz
perigar os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos portugueses e, de
forma recíproca os dos cidadãos brasileiros”.
Sobressaem, segundo a OA, as inúmeras queixas que, recentemente,
lhe foram transmitidas atinentes à utilização indevida do regime de
reciprocidade em vigor, o qual só deverá produzir efeitos no âmbito da
inscrição como advogado nas respetivas ordens profissionais e não para a
obtenção de registo ou inscrição junto de outras OA ou associações profissionais
equiparadas de outros Estados-membros da UE, que não são, nem nunca foram,
parte deste acordo.
A OAB reagiu, de imediato, e mostrou-se “surpreendida” com a decisão. Em
declarações ao jornal “O Globo” apontou “discriminação” e
“mentalidade colonial”, admitindo que iria lutar pelos direitos dos
brasileiros. “Estava em curso um processo de diálogo iniciado há vários
meses com o objetivo de aperfeiçoar o acordo. A OAB, durante toda a negociação,
opôs-se a qualquer mudança que validasse textos imbuídos de discriminação e
preconceito contra advogadas e advogados brasileiros. A mentalidade
colonial já foi derrotada e só encontra lugar nos livros de História, não mais
no dia a dia das duas nações”, referiu a OAB.
Porém, logo a 5 de julho, em
declarações à Lusa, Fernanda de
Almeida Pinheiro, bastonária da OA lamentou os “comentários infelizes” de Beto
Simonetti, bastonário da OAB, que sustentou que “a mentalidade colonial já foi
derrotada e só encontra lugar nos livros de história”, falando em discriminação
e preconceito contra profissionais brasileiros na revisão do acordo de
reciprocidade. “Não há aqui nenhum colonialismo, arbitrariedade ou xenofobia”,
afirmou a bastonária, justificando a quebra unilateral: “A legislação
brasileira e a legislação portuguesa são completamente diferentes. Há muitos
anos que vimos sentindo essa preocupação. Não é correto nem pode ser política
de uma Ordem permitir que possam estar a exercer a profissão pessoas que não
estejam técnica e juridicamente qualificadas para o efeito.”
Almeida Pinheiro referiu que “o
acordo estava a ser utilizado de forma distorcida” por advogados brasileiros,
que, detentores de cédula profissional portuguesa, procuravam outros países da
UE para exercer advocacia: “Em momento algum, este acordo, que é de
reciprocidade entre Portugal e Brasil, pode ser usado para exercer na UE.”
A bastonária negou que o homólogo
brasileiro se tivesse oposto a qualquer mudança no acordo de reciprocidade, ao
longo das conversações efetuadas nos últimos meses. “Essa comunicação da OAB
não corresponde à verdade. Nunca o presidente da OAB disse que era contra a
alteração do regime. Vir dizer publicamente que sempre foram contra isto é
completamente falso”, frisou, criticando a postura de Simonetti, que, tendo uma
reunião agendada com a OA para o dia 26 de junho, segundo Almeida Pinheiro,
avisou, à meia-noite desse dia, que não poderia vir e alegou, dois dias depois,
que não poderia assinar um entendimento já estabelecido em maio.
Recusando ser conivente com um acordo
que entende não estar a respeitar os direitos, liberdades e garantias dos
cidadãos e empresas e a “dignidade da advocacia” nos dois países, a bastonária
assegurou que a denúncia do acordo não tem efeitos retroativos. “A única coisa
que vai deixar de acontecer é esta exceção absoluta para os advogados
brasileiros. Passa a ser uma regra igual para toda a gente”, concluiu. Ganha
mais uns pontos o corporativismo interno!
***
As conversações entre as instituições decorreram entre o mês fevereiro e o
mês de junho de 2023. Apesar de admitir que têm mantido um diálogo aberto com a
Ordem brasileira, a OA diz que, segundo informação que lhe foi remetida por e-mail, a 28 de junho de 2023, a OAB afirmou “não dispor de condições para poder proceder às alterações
do atual regime de reciprocidade [e que mereceram o acordo de ambas as
instituições a 23 de maio], nem no imediato, nem dentro de um prazo considerado
por este como razoável”.
Cerca de 10% dos advogados registados em Portugal são brasileiros.
Dados avançados, em dezembro de 2022, pela OA revelam que, de cerca de 34 mil
profissionais inscritos, 3173 são brasileiros. Desses, quase 60% estão
concentrados na região de Lisboa. Um aumento de quase 482%, já que, em 2017,
eram apenas 536 os advogados brasileiros em Portugal. Em 2019, estavam
inscritos 2270 brasileiros no total.
O acordo que existia entre a OA e a OAB favorecia a migração destes
profissionais para Portugal, relativamente a outros. A reciprocidade entre
Portugal e Brasil passou a constar no estatuto da OA, em dezembro de
2015. Atualmente, existem quase dois mil advogados nascidos em Portugal
e que estão a exercer a profissão na Justiça brasileira.
***
Entretanto, cinco meses
depois, a Associação dos Advogados Estrangeiros em Portugal (AEEP) avançou com
mais de 50 ações judiciais (53 ao todo) contra a OA – e o número continuará a
crescer –, para exigir a nulidade da decisão.
Questionada pela Advocatus (secção do jornal ECO online),
Jennifer Dallegrave, presidente da AEEP frisou que o número de ações judiciais
intentadas contra a OA vai crescer. “Fui levantar o número atualizado.
São 53 e a crescer… no tribunal administrativo e fiscal de Lisboa”
referiu.
As ações visam o reconhecimento, pelos tribunais portugueses, da
ilegalidade da revogação do acordo que, segundo a vice-presidente
da AEEP, Kissila Valle, só podia acontecer por vontade legislativa da
Assembleia da República (AR), e não por decisão unilateral de uma das partes.
Por sua vez, a OA diz que a decisão é legítima e irá
defender-se em tribunal. “Realçamos que atualmente nenhum advogado
brasileiro se encontra impedido de se inscrever na OA, podendo fazê-lo nos
mesmos termos que qualquer outro advogado estrangeiro oriundo de país fora da
UE, sendo totalmente bem-vindo pela OA, desde que cumpra os requisitos
necessários”, refere.
João Massano, presidente do Conselho Regional de Lisboa da OA, explicou
que a estrutura a que preside segue a decisão do Conselho
Geral e não aceita advogados brasileiros. “Quanto aos outros Conselhos
Regionais não sei o procedimento, mas o Conselho Regional de
Lisboa não está aceitar inscrições, pois tal só criaria falsas
expectativas, uma vez que o Conselho Geral, de acordo com o comunicado,
indeferirá”, justificou.
Para a AEEP, a decisão em relação à inscrição de cerca de 100 advogados
brasileiros “vem sendo arrastada pelos Conselhos Distritais da Ordem dos
Advogados portugueses, violando assim direitos fundamentais destes advogados
brasileiros”, e “o protelar destes processos” explica-se com a vontade de
aguardar pelo novo enquadramento jurídico das ordens profissionais.
O ponto final do regime de reciprocidade entre as duas ordens levanta a
dúvida se a OA terá legitimidade para fazer cessar o acordo. Os
advogados contactados pela Advocatus dizem
que não. “Sendo a matéria de Associações Públicas reserva relativa de
competência legislativa da Assembleia da República, nos termos do artigo 165.º,
n.º 1, alínea s) da Constituição da República Portuguesa, apenas a Assembleia da República poderá pôr fim ao regime de
reciprocidade entre os advogados brasileiros e os advogados portugueses”,
explicou Jane Kirkby, sócia da Antas da Cunha Ecija. Porém, o governo pode
legislar sobre a matéria sob autorização da AR.
A advogada referiu que as competências da OA, neste âmbito, se
limitam a elaborar proposta de regulamento de registo e inscrição dos advogados
provindos de outros Estados. Esta regulamentação consta dos artigos 17.º
e seguintes do Regulamento de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários
aprovado em Assembleia Geral da OA de 21 de dezembro de 2015.
Apesar de a OA ter competência para alterar o Regulamento de Inscrição de
Advogados e Advogados Estagiários, no atinente à inscrição de advogados brasileiros,
e até alterar ou fazer cessar o Acordo de Reciprocidade, tais competências são “meramente regulamentares”. “O que
significa que está vedado a quaisquer dos seus órgãos cessar ou esvaziar o
regime de reciprocidade imposto pelo n.º 1 do artigo 201.º dos Estatutos da
Ordem dos Advogados, seja pela alteração ao Regulamento de Inscrição de
Advogados e Advogados Estagiários, seja pela alteração ou cessação do Acordo de
Reciprocidade”, esclareceu a advogada.
Convenhamos que esta argumentação é equívoca: ou a OA tem competência ou
não tem. E, se a competência inscrita nos regulamentos contraria o Estatuto, é
ilegal.
Também António Sarmento de Oliveira, da SPCB LEGAL, sustenta que a cessação deste regime de reciprocidade só pode ser estipulada
por ato legislativo, por envolver alteração dos Estatutos.
“Coisa diversa será a alteração das condições dessa reciprocidade, maxime as previstas no artigo 17.º do ‘Regulamento
de Inscrição de Advogados e Advogados Estagiários’, que estabelece que os
advogados brasileiros que tenham formação superior realizada no Brasil ou em
Portugal possam inscrever-se, com dispensa da realização de estágio e da
obrigatoriedade de realizar prova de agregação na OA Portuguesa”, explicitou.
***
O regime de
reciprocidade em causa não foi revisto, mas eliminado ou esvaziado de sentido.
Aliás, está subjacente o intuito da OA, como insinua a AEEP, de alterar os
Estatutos dos Advogados. Porém, terá sido essa a causa do veto presidencial do
diploma? Parece que as causas têm que ver mais com a definição dos atos próprios
e com a formação. Guerrilhas de nada!
2023.12.26 – Louro de Carvalho
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