O cardeal Giovanni Angelo
Becciu, antigo superpoderoso número três da Santa Sé, no
final do “julgamento do século”, por gestão danosa dos fundos da Secretaria de
Estado e por venda de um imóvel de Londres, foi condenado a cinco anos e seis
meses de reclusão, com interdição perpétua de exercer cargos públicos, mais
oito mil euros de multa. O cardeal foi considerado culpado de dois peculatos –
pelo investimento inicial no imóvel da Sloane Avenue, pelos 125 mil euros
enviados à cooperativa Spes, de Ozieri, do seu irmão Antonino,
e de uma fraude agravada.
Os advogados do prelado reiteram “a
sua inocência” e anunciam: “Vamos recorrer”. Porém, o promotor de justiça Alessandro Diddi diz-se
“finalmente sereno”, porque a sentença lhe dá razão.
Depois de um total surpreendente de
30 meses, 85 audiências que se estenderam por cerca de 600 horas de tribunal,
69 testemunhas e quase 150 mil páginas de documentação, o ““julgamento do
século” do Vaticano atingiu um crescendo no dia 16 de dezembro,
à noite, com vereditos de culpa contra o cardeal Angelo Becciu e contra
oito dos outros nove réus. De certo modo, os resultados marcaram um presente de
aniversário antecipado para o Papa, cujo 87.º aniversário ocorreu a 17 de
dezembro. Com efeito, Francisco deu início a tudo isto em abril de 2021, ao
alterar a lei do Estado da Cidade do Vaticano, permitindo ao
seu tribunal civil julgar os casos de cardeais e de bispos que trabalham
no Vaticano.
Contudo, essa longa jornada não
acabou, tão rápido, de um dia para a noite. Na verdade, não há apenas um, mas
vários sapatos a abandonar, sugerindo que as consequências podem levar ainda
mais tempo para acontecer do que o julgamento em si.
Desde logo, há a considerar o
processo de apelação. Um advogado de Becciu já anunciou
planos para recurso e é provável que, pelo menos, alguns dos outros réus que
foram condenados no processo lhe sigam o exemplo. Não teremos de esperar muito
para descobrir: segundo as regras processuais do Vaticano,
alguém condenado por um crime pelo tribunal civil tem só três dias para decidir
se vai interpor recurso, e o domingo conta. Por isso, o prazo vai até ao dia
19. Como brincou um observador, o domingo pode ser o Dia do Senhor em
qualquer outro lugar da cristandade, mas, aparentemente, não, no sistema
jurídico do Vaticano.
Presumivelmente, qualquer recurso
que Becciu e os outros interponham será ouvido pelo Tribunal de Apelações do
Estado da Cidade do Vaticano, composto por seis juízes, três clérigos e três
leigos. O presidente é o arcebispo espanhol Alejandro Arellano Cedillo,
enquanto o promotor de justiça é o jurista leigo italiano Raffaele Coppola.
Se os tribunais chegarem a conclusões
diferentes, também é possível que o “supremo tribunal” do Estado da Cidade do
Vaticano, conhecido como Tribunal da Cassação, seja
chamado a julgar o conflito. Esse tribunal é atualmente liderado pelo cardeal
americano Kevin Farrel e inclui os cardeais Matteo Zuppi, de Bolonha, Paolo Lojudice, de Siena, e Mauro
Gambetti, vigário geral do Estado da Cidade do Vaticano,
juntamente com dois juristas leigos.
Além disso, há também a questão de
manter os veredictos, para a qual o Vaticano pode precisar de ajuda
internacional. Além das penas de prisão proferidas na noite do dia 16, o
tribunal também ordenou o confisco de cerca de 180 milhões de dólares em bens e
o pagamento de cerca de 220 milhões de dólares em danos. Se realmente quiser reaver
algum desse dinheiro, presumivelmente o Vaticano precisará de solicitar
que os seus vereditos sejam reconhecidos por outros Estados onde os fundos são
realmente depositados, como a Suíça e o Reino Unido.
O histórico do Vaticano em
tribunais estrangeiros sobre o acordo de Londres é misto. Em
janeiro de 2022, um tribunal suíço rejeitou um apelo do financista Raffaele
Mincione para desbloquear ativos no valor de cerca de 70 milhões de
dólares, que tinham sido congelados, em 2021, a pedido do Vaticano,
rejeitando a alegação de Mincione de que não conseguiria um
julgamento justo no Vaticano. Por outro lado, os tribunais do Reino Unido deram,
por duas vezes, retrocesso aos pedidos de cooperação do Vaticano.
Em março de 2021, o juiz Tony Baumgartner do Tribunal da Coroa de
Southwark reverteu a apreensão de bens pertencentes a
outro financista e réu italiano, Gianluigi Torzi, concluindo que os
arquivos do Vaticano, no caso, estavam cheios de “não
divulgações e declarações falsas” que Baumgartner chamou de
“terríveis”. Mais recentemente, um tribunal britânico diferente confirmou o
pedido de Mincione de acesso a textos e e-mails confidenciais entre o cardeal italiano Pietro Parolin e
o arcebispo venezuelano Edgar Peña Parra, os dois principais funcionários da Secretaria de
Estado, como parte de uma reconvenção de Mincione, por violação de reputação. Assim, se o Vaticano procurar
o reconhecimento das sentenças em tribunais estrangeiros, diferentes juízes
analisarão as mesmas provas, podendo tirar conclusões diferentes.
Há também a questão de saber se,
esgotados todos os recursos, alguém irá realmente para a cadeia. No passado, as
pessoas condenadas por crimes pelo tribunal do Vaticano e
sentenciadas à prisão não passavam tempo real atrás das grades. Em dezembro de
2012, por exemplo, Bento XVI perdoou Paolo Gabriele, seu antigo
mordomo, condenado a 18 meses de prisão, por passar documentos confidenciais no
primeiro escândalo “Vatileaks”.
Em 2016, Francisco concedeu
clemência ao monsenhor espanhol Lucio Ángel Vallejo Balda, condenado, no
segundo escândalo “Vatileaks”, a 18 meses de prisão, dando-lhe liberdade
condicional, embora sem extinguir a pena. A corré de Balda, Francesca Chaouqui,
uma ex-funcionária de relações públicas, foi condenada a 10 meses, mas o
tribunal suspendeu a pena.
Assim, mesmo que todas as penas de
prisão atribuídas pelo tribunal se
mantenham, não é automático que sejam efetivamente cumpridas. As incertezas
seriam ainda mais agravadas se, entretanto, houvesse transição no papado,
pois um novo papa poderia ter uma visão diferente.
Parece, pois, claro que, embora as
decisões do tribunal do Vaticano estejam agora registadas, o caso ainda não foi analisado pelo
tribunal mais amplo da opinião pública.
O legado contestado do julgamento
ficou imediatamente claro a 16 de dezembro. Poucas horas após a divulgação dos
veredictos, o diretor editorial do Vaticano, Andrea Tornielli,
publicou um ensaio no site Vatican News sob o título “Um
julgamento que garantiu os direitos de todos”, insistindo que foi um
“julgamento justo” marcado por “pleno respeito pelos direitos dos réus”. “A génese
deste processo mostrou que a Santa Sé e o Estado da Cidade do
Vaticano possuem os ‘anticorpos’ necessários para
identificar alegados abusos ou impropriedades”, escreveu Tornielli.
“O processo de julgamento atesta que a justiça é administrada sem atalhos,
seguindo o código processual, respeitando os direitos de cada pessoa e a
presunção de inocência.”
Tornielli sentiu a necessidade de dizer tudo
isso claramente, porque sabe que muitos observadores têm dúvidas. Desde o
início, os críticos afirmaram que o julgamento foi fatalmente falho, porque
alguns consideraram as provas pouco convincentes e porque não há separação de
poderes entre o executivo e o judiciário no sistema do Vaticano,
tendo o Papa usado, repetidamente, a sua autoridade de modos que os
críticos dizem que empilhou as cartas a favor da acusação.
Essa foi a essência, por exemplo, de
um comentário postado, apenas 20 minutos depois do ensaio de Tornielli, por Luis Badilla,
um veterano jornalista chileno residente em Roma, que
administra o blogue amplamente lido Il Sismografo. Badilla chamou abertamente o julgamento de “completamente não
confiável”. “Esta engenhoca é um drama roteirizado pelo soberano e nada mais”,
zombou Badilla.
“Tudo é feito de papel machê [massa feita com
papel picado embebido na água, coado e depois misturado com cola e gesso],
e cada elemento foi criado com arte, mesmo com efeito retroativo, para um único
propósito: servir a narrativa do Papa Francisco sobre a luta
contra a corrupção.”
“A condenação de Becciu não
é a verdadeira questão central”, escreveu Badilla. “O problema é um
tribunal subjugado ao soberano.”
Este debate sobre a legitimidade do
sistema de justiça civil do Vaticano continuará, certamente, considerando
que Francisco parece comprometido com o que foi
apelidado de vaticanização
da Santa
Sé, ou seja, sujeitar o governo universal da Igreja e o seu
pessoal, às leis e julgamentos do Estado da Cidade do Vaticano. O resultado
prático é que, doravante, sempre que for alegada má conduta por parte de um
potentado da Cúria, provavelmente será aguardado um dia no tribunal ou,
como neste caso, cerca de dois anos e meio, o que muitos não querem.
***
Becciu, ex-substituto para Assuntos
Gerais e ex-prefeito para as Causas dos Santos, é o primeiro cardeal da
história da Igreja Romana a ser condenado criminalmente
no Vaticano por
um órgão judiciário composto por leigos. O Tribunal do Vaticano
presidido por Giuseppe Pignatone, com Venerando Marano e Carlo Bonzano,
emitiu sentenças totalizando 37 anos e um mês de reclusão. O único acusado
absolvido, entre os dez, foi monsenhor Mauro Carlino. Três anos e
nove meses de prisão foram impostos à ex-gerente Cecilia Marogna. A
mulher, suposta especialista em inteligência, originalmente acusada de peculato
pelos 575 mil euros obtidos da Secretaria de Estado, por meio de Becciu, para
supostas finalidades humanitárias, que acabaram por ir, em boa parte, para a
sua empresa eslovena Logsic em despesas pessoais, foi condenada por
fraude agravada, em cumplicidade com Becciu: a motivação de que o
dinheiro seria usado para favorecer a libertação de uma freira colombiana
sequestrada no Mali foi considerada “não correspondente à verdade”.
Entre os demais condenados, o
consultor Enrico Crasso apanhou sete anos de prisão; o corretor Raffaele Mincione cinco
anos e seis meses; o funcionário do Vaticano Fabrizio Tirabassi,
sete anos e seis meses; o advogado Nicola Squillace, um ano e 10
meses (suspensos); o outro corretor Gianluigi, seis anos. Para René Bruelhart e Tommaso
Di Ruzza, respetivamente ex-presidente e ex-diretor da Autoridade de Informação Financeira (AIF), a
autoridade antilavagem de dinheiro do Vaticano, o Tribunal
determinou uma multa de 1750 euros.
Além disso, foi ordenado o confisco
das quantias que constituem o corpo dos delitos contestados num total superior
a 166 milhões de euros. Os réus foram, por fim, condenados, solidariamente,
à indemnização por
danos em favor das partes civis – Secretaria de Estado, Administração do Património da Sé Apostólica (Apsa), Instituto
para as Obras de Religião (IOR) e Autoridade de
Supervisão e Informação Financeira (ASIF) – calculados, no total, em mais de 200 milhões de euros. Todos
preveem recurso para o Tribunal de Apelações e até para o Tribunal de Cassação.
“Reiteramos a inocência do cardeal
Becciu e iremos recorrer”, declarou o defensor, o advogado Fabio Viglione.
“Respeitamos a sentença, mas certamente recorreremos”. Depois, numa nota, com a
colega Maria
Concetta Marzo, escreveu: “Há uma profunda amargura, depois de
86 audiências, em constatar que a inocência do cardeal Becciu não foi
proclamada pela sentença, apesar de todas as acusações se terem revelado
completamente infundadas. As provas que surgiram no julgamento, a génese das
acusações contra o cardeal, resultado de uma demonstrada maquinação contra ele
e a sua inocência, permitem-nos olhar para o recurso com inalterada confiança”.
Por seu turno, o procurador-geral Diddi afirma: “Acredito que a
abordagem foi consistente e isso para mim é o mais importante. Nesses processos
nunca se deve festejar o resultado, um ministério público nunca pode ficar
feliz pelas condenações. O que me satisfaz é que o longo e meticuloso trabalho
foi consistente, apesar das objeções que foram levantadas contra nós nos
últimos anos: disseram que somos incompetentes, ignorantes, mas, na realidade o
resultado dá-nos razão. Agora estou sereno.”
Foi “um processo que garantiu os direitos
de todos”, refere o portal da Santa Sé, Vatican News.
***
Enfim, os homens e mulheres da Igreja
não estão imunes. Haja a justiça adequada!
2023.12.18 – Louro de Carvalho
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