O padre Francisco Rodrigues da Cruz – o
popular Santo Padre Cruz, cujo processo de canonização está em curso – é uma das
figuras mais populares do catolicismo português do século XX.
A 17 de dezembro de 2020, pelas 15 horas, o Cardeal D. Manuel
Clemente, então patriarca de Lisboa, presidiu à sessão de clausura do processo
diocesano para a causa de canonização do jesuíta Francisco Rodrigues da Cruz,
conhecido como o Santo Padre Cruz, pela sua dedicação aos mais frágeis da
sociedade. “Apesar dos problemas de saúde que teve, a vontade de servir o
próximo nunca atenuou o fulgor do seu apostolado, caraterizado pela entrega aos
mais pobres”, anotava, na ocasião, o Ponto SJ, portal dos jesuítas em Portugal.
A cerimónia,
que pôde ser acompanhada em direto na página oficial e nas redes sociais do
Patriarcado de Lisboa e dos Jesuítas em Portugal, decorreu na igreja de São Vicente
de Fora, em Lisboa, aberta à participação dos interessados, apenas na condição
do respeito pelas medidas sanitárias em vigor, por força da pandemia de
covid-19.
Decidido pelo
cardeal-patriarca, após a audição do Tribunal constituído para a causa e do vice-postulador,
padre Dário Pedroso, SJ, o encerramento do processo fora anunciado a 19 de novembro
daquele ano,
Iniciado em
1951, o processo teve a fase diocesana, que decorreu até 1965. Contudo, mais
tarde, foi necessário completar o processo com elementos requeridos pelas novas
normas para a instrução dos processos de canonização. Depois de, entre outros
elementos, terem sido ouvidas várias testemunhas acerca das “virtudes heroicas”
do já reconhecido como “servo de Deus”, a terceira Comissão Histórica do
processo, nomeada por D. Manuel Clemente, a 11 de dezembro de 2018, entregou, a
1 de outubro de 2019, os documentos, com a sua análise crítica.
Entretanto, o processo seguiu para a Congregação para as
Causas dos Santos, o atual Dicastério para as Causas dos Santos, onde foi
apresentado pelo postulador da Companhia de Jesus, padre Pascual Cebollada. O
postulador e o vice-postulador redigiram, depois, a Positio, que resume
a vida do Padre Cruz, e apresentaram os documentos e testemunhos que pretendem
atestar a sua vida de santidade.
Francisco Rodrigues
da Cruz nasceu a 29 de julho de 1859 e faleceu a 1 de outubro de 1948. Foi
admitido na Companhia de Jesus (SI), a 2 de Setembro de 1940, e proferiu, a 3
de dezembro do mesmo ano, os seus últimos votos. “Num tempo como aquele que vivemos,
a vida do padre Cruz pode e deve servir-nos de inspiração”, escrevia o padre
Miguel Almeida, provincial dos jesuítas portugueses, quando o patriarca
anunciou a conclusão da fase diocesana do processo.
“Aprofundar e divulgar o conhecimento que dela temos é um
contributo importante para que a sua ‘santidade’ possa tocar um maior número de
pessoas.”
Rapaz frágil nascido em
Alcochete, tornou-se sacerdote jesuíta e dedicou a vida aos pobres, aos presos
e aos doentes, percorrendo dezenas de quilómetros para pregar, confessar e
ajudar quem dele precisava, aceitando as esmolas dos mais ricos para entregar a
quem nada tinha e batendo à porta de pessoas influentes e poderosas, como o
presidente do Conselho de Ministros, Oliveira Salazar, e o Presidente da
República, Óscar Carmona, a interceder pelos desprotegidos.
Por esse seu ministério da
mendicidade em prol dos mais pobres, cedo ganhou a fama de santo. A par desse ministério
caritativo, teve papel decisivo na credibilização dos acontecimentos de Fátima
e foi confessor da Irmã Lúcia, uma das videntes. São muitos os milagres que lhe
são atribuídos. Mais de sete décadas passadas sobre a sua morte, fiéis de todo
o país continuam a acorrer ao seu túmulo, em Lisboa, onde fazem fila para
rezar.
É o retrato dessa figura
que é feito no livro “Padre Cruz.
O Santo do Povo”, de Ana Catarina André e Sara Capelo (Oficina
do Livro, 2023, 240 pp.), que chegou às
livrarias em abril.
Ana Catarina André é
jornalista da Rádio Renascença (RR), depois de ter trabalhado em
vários órgãos de comunicação social. Venceu, em 2022, um prémio do Observatório
de Ciberjornalismo e é autora de “Os Pombos da
Senhora Alice – Envelhecer em Portugal” (2020)
e “Confrarias de Portugal” (2019).
Sara Capelo é consultora de comunicação, depois de ter estagiado no Público e
trabalhado numa rádio universitária, num jornal local e na revista Sábado.
Ganhou, em 2013, o Prémio de Jornalismo Económico Santander/Nova, é autora
de “Os Estrangeiros que Mandaram em Portugal” (2014). Ambas escreveram, também em
coautoria, “Peregrinos” (2017).
Um excerto do livro que o 7Margens
publicou relata as vicissitudes do Padre Cruz com Afonso Costa, o líder republicano
e ministro da Justiça. Daí se respigam alguns dados interessantes.
Padre Cruz, apesar de querido
e muito protegido, nem sempre
escapou incólume.
Estando a pregar perto de Torres Novas e o regedor da freguesia intimou o
pároco a suspender, de imediato, o sermão e a mandá-lo embora. Os protestos da população
não surtiram efeito e o pregador foi preso e enviado para Lisboa, escoltado por
um guarda. Chegados à capital, de noite, dormiu no governo civil, mas garantiu que
o polícia que o trouxera o “tratou muito bem”.
O patriarca de Lisboa, D. António Mendes Belo, que dizia que o Padre Cruz
era “o para-raios de Portugal”, informado do que se passava, mandou um advogado
da sua família falar com o ministro da Justiça. Na conversa, o jurista assegurou
ao governante que o Padre Cruz “fora àquela paróquia ao serviço da Igreja, por
mandato [do bispo]” e que o prelado garantia “que tudo quanto [o sacerdote]
houvesse de sofrer o tomava como se a si próprio fosse feito”.
Na manhã seguinte, o Padre Cruz foi recebido por Afonso Costa, que tinha
prometido acabar com a religião católica em duas ou três gerações e que tinha
sido um dos impulsionadores da “Lei da Separação do Estado das Igrejas”, de 20
de abril de 1911, que ditou o fim do catolicismo como religião do Estado –
medidas salutares em si, mas tomadas em clima de hostilidade à Igreja.
Quando o ministro lhe perguntou se era doutor de Coimbra ou de Roma e
percebeu que ambos se tinham formado na cidade dos estudantes, em Portugal,
deixou-o inesperadamente ir-se embora, mas não sem lhe deixar um aviso: “Não
volta àquela freguesia sem minha ordem.”
Numa das visitas à cadeia do Limoeiro, bateu à porta da cela onde estava o
seu amigo Fiel Viterbo, matemático, arquiteto e decorador que, por ser
considerado monárquico e capitalista, fora detido. “Doutor, precisa de alguma
coisa?”, perguntou-lhe, como fazia às vezes. Um carbonário, vendo que Francisco
da Cruz se aproximara do recluso, denunciou-o ao Ministério da Justiça, “que
repreendeu o diretor [da prisão] por permitir andar um padre a falar com os
conspiradores”.
Da vez seguinte em que ali esteve, o Padre Cruz foi avisado de que não
poderia regressar à rua, sem antes falar com o responsável do estabelecimento.
Assim, teve de esperar até à noite, continuando no dia seguinte e por mais oito
noites. Ficou tão isolado numa cela imunda, de modo que, excetuando as irmãs do
Convento do Desagravo, que lhe mandaram alguma comida, ninguém sabia onde
estava. A família, nomeadamente a irmã Isabel, que regularmente contactava com
ele, através de postais, chegou a temer que o identificassem entre os corpos
dos padres que, entretanto, tinham aparecido mortos no Tejo.
Também o patriarca, D. António Mendes Belo, sabendo que o Padre Cruz estava
desaparecido, pediu a um advogado que averiguasse, junto do Ministério da
Justiça, se ele tinha sido preso, como sucedia a tantos sacerdotes. Quando foi
informado, Afonso Costa mandou procurá-lo.
Ao fim de nove noites, o Padre Cruz foi libertado. Mais tarde, revelou que,
no dia em que saiu da cadeia, fora chamado à secretaria da instituição. Contou
a pergunta que tinha feito a Fiel Viterbo e que faria a qualquer pessoa, muito
mais a um amigo. O diretor mandou-o embora, dizendo que não pagava carceragem,
nem ficava lá o seu nome. O advogado que o acompanhava, Mário Monteiro, quis
abrir um processo judicial, pois, legalmente, nada justificava que o sacerdote
tivesse sido preso, mas este não lho permitiu. Só lamentava não ter estado,
durante aquele período, com outros reclusos, para “fazer propaganda religiosa”.
E, com a família, partilhou a inquietação de não ter celebrado missa todos os
dias, ainda mais coincidindo o tempo com três festas importantes: Sagrado
Coração de Jesus, São João Baptista e o aniversário da Missa Nova.
Para se certificar de que o episódio não se repetiria, o ministro da
Justiça, que já o tinha ilibado anteriormente, escreveu com o próprio punho um
“salvo-conduto”, que o autorizava a circular livremente. A partir de então, mostrava-o
a polícias e a carbonários, dizendo: “Deixem-me passar, deixem-me passar! Tenho
ordem do Sr. Afonso Costa. Leiam!” Com os mais próximos, chegou a comentar o
episódio, afirmando com assertividade: “Há males que acontecem para bem.”
O Padre Cruz não queria ser nada mais do que um simples clérigo. A 27 de
março, escreveu ao patriarca de Lisboa, D. António Mendes Belo, pedindo-lhe que
o dispensasse da nomeação de cónego da Sé, a que tinha procedido, para continuar
a dedicar-se aos mais frágeis. E explicava: “Há muitos anos que me sinto
atraído […] para ajudar espiritualmente os presos das cadeias, os doentes dos
hospitais, os pobrezinhos e abandonados e tantos pecadores e almas
desamparadas. Tenho também grande consolação em ajudar os reverendos párocos
nos exercícios de piedade e [em] mais encargos.” Invocando estes motivos,
sublinhava que, no seu entendimento, seria “mais da glória de Deus e bem das
almas a vida de missionário do que a de cónego da Sé”. Agradecia “a desmerecida
honra” que o patriarca lhe queria atribuir. Entendendo o seu desejo e o serviço
que já prestava à Igreja, D. António Mendes Belo acedeu ao pedido e o Padre
Cruz não chegou a fazer parte do cabido da sé patriarcal.
Consta que, um dia, depois de ter cumprido um programa de pregação numa
paróquia, no percurso que fez, a pé, para apanhar o comboio, lhe saíra ao encontro
um pobre a pedir uma esmola. Sem mais, pegou no envelope com o dinheiro com que
o compensaram do serviço prestado na missão paroquial e deu-o ao pobre. Por
conseguinte, ao pegar o comboio, não tinha dinheiro para a viagem. Instado a abandonar
o comboio, obedeceu sem reclamação.
Por mais que fizessem e sem que se vislumbrasse causa para tanto, o comboio
não conseguia arrancar. Por isso, alguém teve a ideia de mandar chamar o clérigo
impedido de viajar e convidaram-no a tomar o seu lugar. Inexplicavelmente, o
comboio cumpriu o seu percurso sem qualquer sobressalto. O ter acontecido “depois”
não significa ter acontecido “por causa de” (“post hoc non significat propter
hoc”), mas que há coincidências, há.
***
“Louvemos os homens ilustres, nossos antepassados, segundo as
suas gerações. O Senhor deu-lhes grande glória e magnificência, desde
o princípio do Mundo. Foram guias do povo, pelos seus conselhos, chefes do povo, pela sagacidade, sábios narradores, pelo seu ensino, criadores de melodias musicais e cantores de poemas escritos. Entre eles, há quem deixou um nome que continua a narrar as suas
glórias” (Sir 1,1-2.4-5.7).
O Padre Cruz faz parte daqueles que, além disto, “foram homens de
misericórdia,
cujas obras de piedade não são esquecidas”
(Sir 1,10), pelo que é merecedor do vaticínio
“os povos proclamarão a sua sabedoria e a assembleia cantará os seus louvores”
(Sir 1,15). Venha lá de Roma a canonização,
que já não é sem tempo!
2023.12.02 – Louro de Carvalho
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