Uma das figuras humanas de relevo no 3.º domingo do
Advento, no Ano B, o Domingo Gaudete (porque o antigo introito da Missa
começava com a exortação “Gaudete in Domino”: “Alegrai-vos no Senhor), é João
Batista, a voz que vem preparar os homens para acolherem Jesus, Luz do Mundo. O
objetivo do Batista não é centrar sobre si a atenção pública; apenas está interessado
em levar os seus interlocutores ao acolhimento e ao conhecimento de Jesus,
Aquele que o Pai enviou com um projeto de vida e de liberdade para os homens,
que passarão, assim, das trevas para a luz. Uma Boa Nova que enche de alegria o
coração de todos os filhos e filhas de Deus!
***
O Evangelho de João (Jo 1,6-8.19-28) inicia-se com um prólogo
(cf Jo 1,1-18), que é um hino cristão
primitivo, conhecido da comunidade joânica, onde se expressa a fé da comunidade
em Cristo, Palavra viva de Deus. Os primeiros três versículos do trecho ora proclamado
(Jo 1,6-8) pertencem ao prólogo.
Depois, o evangelista desenvolve, em várias etapas, a catequese sobre Jesus. Na
secção introdutória, subsequente ao prólogo, diz quem é Jesus e define a sua
missão, fazendo entrar sucessivamente em cena várias personagens cuja função é
apresentar a pessoa de Jesus aos destinatários. De entre estas personagens,
sobressai a figura de João Batista, o “apresentador” oficial de Jesus.
Os líderes religiosos judaicos não gostavam de ouvir
falar na chegada do Messias. De facto, para a conceção corrente, um dos
objetivos do Messias seria a reforma das instituições, o que afetaria a
estrutura religiosa judaica e mexeria com os privilégios da hierarquia
sacerdotal. Portanto, é normal que as autoridades se inquietassem diante da
atividade de João.
Na primeira parte do trecho em causa (vv 6-8), surge João, de quem se diz que
é um homem e que foi enviado por Deus. Foi Deus quem o escolheu e o enviou com uma
missão concreta. Este é o método habitual de Deus: chama homens, confia-lhes
uma missão e, através deles, intervém no Mundo. A missão de João, que não é a
luz, é dar testemunho da luz, ser a sua candeia. A luz, no 4.º
Evangelho, representa a realidade que vem de Deus e com a qual Deus se
propõe construir para os homens um mundo novo de vida definitiva e de
felicidade total. João não atua por sua iniciativa, mas em resposta à vocação
divina e para concretizar a missão que Deus lhe confiou.
Assim, este enviado de Deus não é a luz, pois não tem
capacidade para eliminar as trevas que escurecem e desfeiam a vida dos homens,
porque não tem a capacidade de dar vida aos homens. João é a testemunha que
prepara os homens para acolher Aquele que vai chegar e que será a luz.
Na 2.ª parte (vv
19-28), temos o testemunho de João, perante uma comissão, enviada de Jerusalém
para o investigar, constituída por sacerdotes e levitas, encarregados de vigiar
a ortodoxia e a fidelidade à ordem religiosa judaica. No ambiente de
messianismo exacerbado da época, a figura de João e o seu testemunho são
inquietantes para os líderes religiosos judeus.
Os inquiridores fazem a João uma pergunta
aparentemente inócua: “Quem és tu?”. Não tomam posição. Limitam-se a esperar
que João declare a sua posição e as suas intenções. João descarta totalmente a
hipótese de ser o Messias, não aceita identificar-se com Elias (que devia vir
preparar o “dia de Javé”, o dia da vinda do Messias libertador, enviado por
Deus para construir um Mundo novo), nem aceita assumir o título de “o profeta”
(título alusivo a Dt 18,15, significando, na época de Jesus, um segundo Moisés
que deveria aparecer nos últimos tempos). Enfim, não aceita que lhe atribuam
nenhuma função que possa centrar a atenção na sua própria pessoa. Ele é o
precursor: o que vem à frente do verdadeiro Messias As suas três respostas são
negativas categóricas. Não busca a sua glória ou a sua afirmação, nem vem em nome
próprio; a sua missão é meramente dar testemunho da luz e é para a luz que devem
ser apontados os holofotes.
É neste enquadramento que se entende a resposta de
João, com os interlocutores a convidá-lo a definir-se: “Eu sou uma voz”. Voz é
termo relacional que supõe ouvintes a quem é comunicada uma mensagem. A voz não
tem rosto, é anónima e passa despercebida; o importante é o conteúdo da
mensagem, a palavra. E João não é a Palavra, mas simplesmente a voz, o eco, a
ressonância. A Palavra (o Cristo, o Messias) virá a seguir e passará á frente
do Batista, pois existia antes dele.
João é, pois, uma voz pela qual Deus passa aos homens
uma mensagem. É à mensagem e não à voz que os homens devem dar atenção. A
mensagem que a voz veicula é: “Endireitai o caminho do Senhor”. A expressão é
tomada de Is 40,3, em versão livre. Em Isaías, a expressão é usada no contexto
da intervenção salvadora de Deus para fazer regressar à Terra da Liberdade os Judeus
cativos na Babilónia. Pedia que o Povo, acomodado, desanimado e frustrado, se
esforçasse para acolher os desafios de Deus e aceitasse pôr-se a caminho com
Deus rumo ao futuro novo de vida e de esperança. É essa realidade que João é
chamado a acordar no coração do seu Povo.
As respostas negativas de João desconcertam a
comissão. Se não reivindica nenhum dos títulos tradicionais – “Messias”,
“Elias”, “o profeta” – a que título é que ele batiza? Porém, João evita
responder diretamente à objeção que os fariseus lhe colocam. Prefere
desvalorizar o seu batismo com água e apontar para Aquele que vem e a quem não
é digno “de desatar as correias das sandálias”. Esse é que é a Luz, a Palavra, o
Messias, que vai libertar o homem da escuridão, da cegueira, da mentira, do
egoísmo, do pecado.
A indicação de que os líderes não conhecem Aquele que
já chegou e de quem João apenas é a voz é a denúncia da situação da classe
dirigente judaica, instalada nos seus privilégios, certezas e preconceitos e
pouco aberta à novidade e aos desafios de Deus.
***
Na segunda leitura (Is 61,1-2a.10-11), a Liturgia da Palavra, mostra-nos
o profeta a identificar a vocação de Deus e a missão que Deus lhe confiou. Ele
apresenta-se como o “ungido” do Senhor, sobre quem repousa o Espírito; e é esse
Espírito que o move e o impele para a missão – como acontecia com os juízes e com
os antigos profetas. Embora não se mencione o termo “profeta”, essa missão
apresenta-se como eminentemente profética: esse ungido é enviado por Deus e a
sua missão tem a ver com o serviço da Palavra. A missão do profeta consiste em
anunciar uma “boa notícia” (“evangelho”), em curar os corações feridos, em
proclamar a libertação aos prisioneiros, em promulgar “o ano da graça do
Senhor” (cf Lc 4,17-19). O anúncio do “ano da graça” alude aos anos jubilares,
celebrados de 50 em 50 anos (cf Lv
25,10-17), e aos anos sabáticos, de sete em sete anos). De acordo com a Lei de
Deus, como eram anos destinados a restaurar a situação original de justiça,
implicavam a libertação dos escravos, o perdão das dívidas e a restituição dos
bens e propriedades alienados durante esse período.
Os destinatários dessa mensagem de esperança são os
“pobres”. Os pobres são os carentes de bens, de dignidade, de liberdade e de
direitos, mas que, pela sua especial situação de miséria e de necessidade, são
considerados os preferidos de Deus e o objeto de especial proteção e ternura de
Deus. Por isso, são olhados com simpatia e até, numa visão simplista e
idealista, são retratados como pacíficos, humildes, simples, piedosos, cheios
de “temor de Deus”, ou seja, estão diante de Javé com serena confiança, em
total obediência e entrega. Representam a parte do Povo de Deus maltratada e
oprimida pelos poderosos, mas que se entrega com fé, humildade e confiança nas
mãos de Deus e que Deus ama de forma especial. Portanto, a missão do “profeta”
de que fala o Tritoisaías é anunciar um tempo novo, de vida plena e de
felicidade sem fim, um tempo de salvação que Deus vai oferecer aos “pobres”. É a
missão de Jesus (cf Lc 4,17-19; 21).
Percebe-se, então, que o Batista não se assuma como o
profeta, a luz, a palavra. O ungido – Messias, em Hebraico, Cristo, em Grego – de
que fala Isaías é a figura veterotestamentária de Jesus, o Cristo, que há de
vir. Este é o verdadeiro profeta, enviado, ungido; é a luz, é a palavra, por
excelência.
***
A este propósito, vem o comentário de Santo Agostinho,
bispo de Hipona (Sermo 293, 3: PL 38, 1328-1329) (Séc. V), que se leu no Ofício
das Leituras desta dominga.
“João era a voz, mas o Senhor, no princípio, era a Palavra (Jo 1,1). João era a voz passageira, Cristo, a Palavra eterna desde
o princípio. Suprimi a palavra, o que se torna a voz? Esvaziada de sentido, é
apenas ruído. A voz sem palavras ressoa ao ouvido, mas não alimenta o coração.
“Entretanto, mesmo quando se trata de alimentar os nossos corações, vejamos
a ordem das coisas. Se penso no que vou dizer, a palavra já está no meu coração.
Se quero, porém, falar contigo, procuro o modo de fazer chegar ao teu coração o
que já está no meu.
“Procurando então como fazer chegar a ti e penetrar no teu coração o que já
está no meu, recorro à voz e, por ela, falo contigo. O som da voz faz-te entender
a palavra; e, quando te fez entendê-la, o som desaparece, mas a palavra que ele
te transmitiu permanece no teu coração, sem haver deixado o meu. Não te parece
que esse som, depois de haver transmitido minha palavra, está a dizer: ‘É necessário que ele cresça e eu diminua?’ (Jo 3,30). A voz ressoou, cumprindo a sua função, e desapareceu,
como se dissesse: ‘Esta é a minha alegria, e ela é
completa’ (Jo 3,29). Guardemos a palavra; não
percamos a palavra concebida no nosso íntimo.
“Queres ver como a voz passa e a palavra divina permanece? Que foi feito do
batismo de João? Cumpriu a sua missão e desapareceu; agora, é o batismo de
Cristo que está em vigor. Todos cremos em Cristo e esperamos d’Ele a salvação:
foi o que a voz anunciou.
“Porque é difícil não confundir a voz com a palavra, julgaram que João era
o Cristo. Confundiram a voz com a palavra. Mas a voz reconheceu o que era, para
não prejudicar a palavra. ‘Eu não sou o Cristo’ (Jo 1,20), disse João, nem Elias nem o
Profeta. Perguntaram-lhe então: ‘Quem és tu?’ ‘Eu sou’, respondeu
ele, ‘a voz que grita no deserto: Aplainai o caminho do Senhor’ (Jo 1,19.23). É a voz do que grita no
deserto, do que rompe o silêncio. Aplainai o caminho do Senhor,
como se dissesse: “Sou a voz que se faz ouvir apenas para levar o Senhor aos
vossos corações. Mas Ele não se dignará vir aonde o quero levar, se não
preparardes o caminho”.
“O que significa: ‘Aplainai o caminho’, senão: Orai como se deve
orar? O que significa ainda: ‘Aplainai o caminho’, senão: Tende pensamentos
humildes? Imitai o exemplo de João. Julgam que é o Cristo e ele diz não ser o
que julgam; não se aproveita do erro alheio para afirmação pessoal. Se tivesse
dito: ‘Eu sou o Cristo’, facilmente teriam acreditado nele, pois já era
considerado como tal antes que o dissesse. Mas não disse; ao invés, reconheceu
o que era, disse o que não era, foi humilde. Viu de onde lhe vinha a salvação;
compreendeu que era uma lâmpada e temeu que o vento do orgulho pudesse
apagá-la.”
***
A segunda parte do trecho de Isaías (vv 10-11) é a parte final de um oráculo.
Após o anúncio de salvação, a cidade de Jerusalém manifesta o seu regozijo e
contentamento, porque Deus a vai revestir de salvação e de justiça, como o
noivo que cinge o diadema ou a noiva que se adorna com suas joias. A última
imagem – “como a terra faz brotar os gérmenes e o jardim germinar as sementes”
– sugere a vida e a fecundidade que resultarão da ação libertadora de Deus.
É, pois, com o hino do regozijo de Maria que
respondemos à vocação do profeta e ao oráculo:
“A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se
alegra em Deus, meu Salvador, porque
pôs os olhos na humildade da sua serva: de hoje em diante todas as gerações Me
chamarão bem-aventurada.
O Todo-poderoso
fez, em Mim, maravilhas: Santo é o seu nome. A sua misericórdia se estende de
geração em geração sobre aqueles que O temem. Aos famintos encheu de bens e aos
ricos despediu de mãos vazias. Acolheu a Israel, seu servo, lembrado da sua
misericórdia.
***
Por fim, é de anotar que a primeira
leitura (1Ts 5,16-24) nos mostra
Paulo sem grandes desenvolvimentos ou
reflexões muito elaboradas acerca do modo como os cristãos devem viver o tempo
da espera do Senhor. Não obstante, apresenta sugestões relevantes para a vida
cristã e para a construção da comunidade.
O apóstolo pede aos Tessalonicenses que vivam alegres
e que pautem a vida por intensa oração, sobretudo de ação de graças. O cristão
é a pessoa livre e feliz, cônscia da presença salvadora e libertadora de Deus
ao seu lado, que contempla permanentemente o horizonte último da vida eterna e
da felicidade que Deus lhe reserva e que, por isso, agradece ao seu Senhor e O louva.
Depois, o apóstolo quer a abertura do coração ao
Espírito e a valorização dos seus dons. De facto, as experiências carismáticas
começavam a criar problemas na comunidade. Nem todos entendiam e estavam
abertos às interpelações do Espírito através de alguns membros da comunidade. O
novo, o criativo, chocava com o rotineiro, o pré-fixado. Paulo recomenda aos
cristãos de Tessalónica que saibam analisar tudo com cuidado e discernimento,
sem preconceitos, de coração aberto à novidade de Deus, guardando “o que é bom”
e afastando-se de “toda a espécie de mal”.
Uma comunidade construída de acordo com estes
princípios – que vive a sua existência histórica com alegria e serenidade, que
louva o seu Senhor e que está permanentemente atenta para discernir e aceitar
os dons do Espírito – é uma comunidade “santa” e irrepreensível, preparada para
acolher, em qualquer momento, o Senhor que vem.
***
Porém, é preciso centrar tudo em Cristo. Nenhum Papa, nenhum
bispo, nenhum padre, nenhum diácono, nenhum religioso, nenhum leigo pode
protagonizar o Evangelho. E muitos tentam fazer isso, retirando Cristo da cena,
mas falando no seu nome! É preciso que Aquele que batiza, já não só na água,
mas no Espírito Santo, no fogo e no sangue, cresça e cada um de nós diminua (cf Mt 3,11-12; Mc 10, 38-39; Jo 3,30).
Só assim seremos profetas, luzeiros, palavra e, de certo modo, Messias, mas com
Ele.
2023.12.17 – Louro de Carvalho
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