Com a
declaração “Fiducia supplicans”, do Dicastério para a Doutrina da Fé, aprovada
pelo Papa, a 18 de dezembro, até será possível abençoar casais formados por
pessoas do mesmo sexo, mas fora de qualquer ritualização e imitação do
matrimónio, pois não se muda a doutrina sobre o matrimónio e a bênção não
significa aprovação da união. O Vatican
News, portal da Santa Sé, presta o devido esclarecimento.
Ante o
pedido de duas pessoas para serem abençoadas, mesmo que a sua condição de casal
seja “irregular”, será possível o ministro ordenado consentir, embora tal gesto
de proximidade pastoral não possa conter elementos minimamente semelhantes a um
rito matrimonial.
O documento
aprofunda o tema das bênçãos, distinguindo entre as bênçãos rituais e
litúrgicas e as bênçãos espontâneas, que se assemelham mais a gestos de devoção
popular. É nesta segunda categoria que se enquadra a possibilidade de acolher
também aqueles que não vivem de acordo com as normas da doutrina moral cristã,
mas pedem humildemente para serem abençoados. Desde agosto, de há 23 anos, o
antigo Santo Ofício não publicava uma declaração (a última foi “Dominus Jesus”,
em 2000), um documento de alto valor doutrinário.
A “Fiducia
supplicans” começa com uma introdução do prefeito, cardeal Victor Fernandez,
que explica que a declaração aprofunda o “significado pastoral das bênçãos”,
permitindo que a “sua compreensão clássica seja ampliada e enriquecida” por uma
reflexão teológica “baseada na visão pastoral do Papa Francisco”, uma reflexão
que “implica um verdadeiro desenvolvimento em relação ao que foi dito sobre as
bênçãos” até agora, incluindo a possibilidade “de abençoar casais em situação
irregular e casais do mesmo sexo, sem validar oficialmente o seu status ou,
de qualquer forma, modificar o ensino perene da Igreja sobre o casamento”.
Após os
primeiros parágrafos (1-3), em que é lembrado e agora ampliado o pronunciamento
anterior de 2021, a declaração apresenta a bênção no sacramento do matrimónio
(parágrafos 4-6), declarando “inadmissíveis ritos e orações que possam criar
confusão entre o que é constitutivo do matrimónio” e “o que o contradiz”, para
evitar reconhecer, de alguma forma, “como matrimónio algo que o não é”. Reitera-se
que, de acordo com a “doutrina católica perene”, somente as relações sexuais
dentro do casamento entre um homem e uma mulher são consideradas lícitas.
Um segundo
capítulo (parágrafos 7-30) analisa o significado das várias bênçãos, que têm
como destino pessoas, objetos de devoção, lugares de vida. Do ponto de vista “estritamente
litúrgico”, a bênção exige que o que é abençoado “esteja em conformidade com a
vontade de Deus expressa nos ensinamentos da Igreja”. Assim, quando, com um
rito litúrgico específico, “se invoca uma bênção sobre certas relações
humanas”, é necessário que “o que é abençoado possa corresponder aos desígnios
de Deus inscritos na Criação”. Por isso, a Igreja não tem o poder de conferir
uma bênção litúrgica a casais irregulares ou do mesmo sexo. Contudo, é preciso
evitar o risco de reduzir o significado das bênçãos apenas a esse ponto de
vista, exigindo, para a simples bênção, “as mesmas condições morais que são
exigidas para a receção dos sacramentos”. Depois de analisar as bênçãos nas
Escrituras, a declaração oferece um entendimento teológico-pastoral. Quem pede
uma bênção “mostra-se necessitado da presença salvadora de Deus na sua
história”, porque expressa “um pedido de ajuda de Deus, uma súplica por uma
vida melhor”. Por isso, o pedido deve ser acolhido e valorizado “fora de uma
estrutura litúrgica”, quando se encontra “numa esfera de maior espontaneidade e
liberdade”. Olhando para elas da perspetiva da piedade popular, “as bênçãos
devem ser valorizadas como atos de devoção”. Assim, para as conferir, não há necessidade
de exigir “perfeição moral prévia” como pré-condição.
Aprofundando
essa distinção, com base na resposta do Papa às dubia dos
cardeais, publicada em outubro passado, que pedia um discernimento sobre a possibilidade
de “formas de bênção, solicitadas por uma ou mais pessoas, que não transmitam
uma conceção errónea do matrimónio”, o documento afirma que esse tipo de bênção
“é oferecido a todos, sem pedir nada, fazendo com que as pessoas sintam que
continuam abençoadas, apesar dos seus erros”, e que “o Pai celeste continua a
querer o seu bem e a esperar que elas, finalmente, se abram ao bem”.
Há várias
ocasiões em que as pessoas pedem, espontaneamente, a bênção, seja em
peregrinações, em santuários, ou mesmo na rua, quando encontram um sacerdote”.
Ora, tais bênçãos “são dirigidas a todos, ninguém pode ser excluído”. Portanto,
permanecendo proibido ativar “procedimentos ou ritos” para esses casos, o
ministro ordenado pode unir-se à oração daquelas pessoas que, “embora numa
união que, de modo nenhum pode ser comparada ao matrimónio, desejam confiar-se
ao Senhor e à sua misericórdia, invocar a sua ajuda, ser guiadas para uma maior
compreensão do seu plano de amor e de verdade”.
O terceiro
capítulo (parágrafos 31-41) abre a possibilidade dessas bênçãos, que
representam um gesto para aqueles que, “reconhecendo-se indigentes e
necessitados da sua ajuda, não reivindicam a legitimidade do seu próprio status,
mas imploram que tudo o que é verdadeiro, bom e humanamente válido em suas
vidas e relacionamentos seja investido, curado e elevado pela presença do
Espírito Santo”.
Essas
bênçãos não devem ser normalizadas, mas confiadas ao “discernimento prático numa
situação particular”. Embora o casal seja abençoado, mas não a união, a
declaração inclui, entre o que é abençoado, o relacionamento legítimo entre as
duas pessoas: na “breve oração que pode preceder essa bênção espontânea, o
ministro ordenado pode pedir paz, saúde, espírito de paciência, diálogo e ajuda
mútua, bem como a luz e a força de Deus para poder cumprir plenamente a sua
vontade”. Também é esclarecido que, para evitar “qualquer forma de confusão e
escândalo”, quando um casal irregular ou do mesmo sexo pede uma bênção, “ela
nunca será realizada ao mesmo tempo que os ritos civis de união ou mesmo em
conexão com eles […], nem mesmo com as roupas, os gestos ou as palavras
próprias de casamento”. Esse tipo de bênção “pode encontrar o seu lugar em
outros contextos, como a visita a um santuário, um encontro com o sacerdote,
uma oração recitada num grupo ou durante uma peregrinação”.
Por fim, o
quarto capítulo (parágrafos 42-45) lembra que, “mesmo quando o relacionamento
com Deus está obscurecido pelo pecado, sempre é possível pedir uma bênção,
estendendo-Lhe a mão”. E desejá-la “pode ser o melhor possível em algumas
situações”.
***
No mesmo dia,
Andrea Tornielli, jornalista e escritor italiano, relaciona o documento com o
magistério de Francisco.
“Nemo venit
nisi tractus”, ninguém se aproxima de Jesus se não for atraído, escreveu Santo
Agostinho, bispo de Hipona, parafraseando as palavras do Nazareno: “Ninguém vem
a mim se meu Pai não o atrai”. Na origem da atração por Jesus – de que falava
Bento XVI, lembrando como a fé se difunde – está sempre a ação da graça. Deus
sempre nos precede, nos chama, nos atrai, nos faz dar um passo em direção a Ele
ou, pelo menos, acende em nós o desejo de dar esse passo, ainda que pareçamos
não ter forças e nos sintamos paralisados.
O coração de
pastor não pode ficar indiferente às pessoas que se aproximam pedindo para
serem abençoadas, seja qual for sua condição, história ou trajetória de vida. Não
apaga o brilho ardente daqueles que sentem a sua própria incompletude, cônscios
que precisam de misericórdia e ajuda do Alto. Antes, vislumbra, no pedido de
bênção, uma brecha no muro, uma pequena fenda pela qual a graça já poderia
estar agindo. Assim, a sua primeira preocupação não é fechar a pequena fenda,
mas acolher e implorar bênçãos e misericórdia, para que as pessoas possam
começar a entender o plano de Deus para as suas vidas.
Essa consciência
básica transparece na “Fiducia supplicans”, sobre o significado das bênçãos,
que abre a possibilidade de abençoar casais irregulares, mesmo casais do mesmo
sexo, esclarecendo que a bênção, nesse caso, não significa aprovar as suas
escolhas de vida e reiterando a necessidade de evitar ritualização ou outros
elementos que possam, mesmo remotamente, imitar um casamento. Aprofunda-se a
doutrina sobre as bênçãos, distinguindo entre as rituais e litúrgicas e as espontâneas,
que se caraterizam mais como atos de devoção ligados à piedade popular. O texto
concretiza, dez anos depois, as palavras de Francisco na “Evangelii gaudium”: “A
Igreja não é uma alfândega, é a casa paterna onde há lugar para cada pessoa com
a sua própria vida fadigosa.”
A origem da
Declaração é evangélica. Em quase todas as páginas do Evangelho, Jesus quebra
as tradições e prescrições religiosas, conformismos e convenções sociais. E faz
gestos que escandalizam os bem-pensantes, os autodenominados “puros”, os que se
fazem escudo de normas e regras para afastar, fechar portas. Os doutores da Lei
tentam pôr o Mestre em xeque com perguntas tendenciosas, para murmurarem
indignados diante da sua liberdade transbordante de misericórdia: “Ele acolhe
os pecadores e come com eles!”
Jesus estava
pronto para correr até à casa do centurião de Cafarnaum, para curar o seu amado
servo, sem a preocupação de se contaminar ao entrar em casa de pagão. Deixou
que a pecadora lhe lavasse os pés, ante os olhares de julgamento e de desprezo
dos convidados, incapazes de entender por que Ele não a rejeitou. Observou e
chamou o publicano Zaqueu enquanto ele se agarrava aos galhos do sicómoro, sem
esperar que se convertesse e mudasse de vida antes de receber aquele olhar
misericordioso. Não condenou a adúltera que estava sujeita a ser apedrejada,
segundo a lei, mas desarmou as mãos dos seus carrascos, recordando-lhes que
eles – como toda a gente – eram pecadores. Disse que viera para os doentes e
não para os saudáveis, e comparou-se à figura singular do pastor disposto a
deixar 99 ovelhas sem vigilância, para ir em busca da que se havia perdido.
Tocou o leproso, curando-o da doença e do estigma de ser um pária “intocável”.
Os rejeitados encontraram o seu olhar e sentiram-se amados, destinatários do
abraço de misericórdia que lhes foi dado, sem qualquer condição prévia. Ao descobrirem-se
amados e perdoados, perceberam o que eram: pobres pecadores como toda a gente,
necessitados de conversão, mendicantes de tudo.
Francisco
disse aos novos cardeais, em fevereiro de 2015: “Para Jesus, o que conta, acima
de tudo, é alcançar e salvar os distantes, curar as feridas dos doentes,
reintegrar todos na família de Deus. Isso escandaliza alguns, mas Jesus não tem
medo desse tipo de escândalo, não pensa em pessoas fechadas que se escandalizam
até com uma cura, que se escandalizam com qualquer abertura, com qualquer passo
que não se encaixe nos seus esquemas mentais e espirituais, com qualquer
carícia ou ternura que não corresponda aos seus hábitos de pensamento e à sua
pureza ritualística.” A “perene doutrina católica sobre o matrimónio”, vinca a
Declaração, não muda: somente no contexto do casamento entre um homem e uma
mulher é que “as relações sexuais encontram o seu significado natural, adequado
e plenamente humano”. Porém, numa perspetiva pastoral e missionária, não é hora
de fechar a porta para um casal “irregular” que peça uma simples bênção, por
exemplo numa visita a um santuário ou durante uma peregrinação.
O estudioso
judeu Claude Montefiore identificou o diferencial do cristianismo exatamente
nisto: “Enquanto outras religiões descrevem o homem buscando Deus, o
cristianismo proclama um Deus que busca o homem. Jesus ensinou que Deus não
espera pelo arrependimento do pecador, mas vai à sua procura para o chamar para
si.” A porta aberta de uma oração e de uma pequena bênção podem ser começo,
oportunidade, ajuda.
***
Sem
escândalo, sem renúncia à doutrina, concretiza-se o desígnio: “Igreja para
todos, todos, todos”, embora não para tudo. “Não podemos transformar-nos em
juízes que apenas negam, recusam, excluem”, dizia o Papa, a 1 de outubro.
2023.12.18 – Louro de Carvalho
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