Se
Dionísio, o moço, não se tivesse enganado na contagem dos anos, não podíamos dizer
que o primeiro Natal, o de Jesus de Nazaré, tinha ocorrido há 2023 anos. Assim,
Jesus Cristo terá nascido pelo ano 6.º ou 5.º da Era Cristã, ou seja, nasceu
antes de Ele próprio.
Continuamos
a dizer, por simplificação, que o Nazareno nasceu há 2023 anos. E daí não vem
qualquer mal à Humanidade. Aliás, o Cristianismo não é História, mas Vida que
também faz a História e permite escrevê-la e reescrevê-la todos os dias. Por
isso, o importante é assumir o espírito do Natal.
Todas
as pessoas percebem e assumem que a esta quadra natalícia está inerente a
partilha, que assenta na fraternidade universal e postula a proximidade das
pessoas, pelo que se fazem as deslocações necessárias para a reunião de família,
para o encontro de amigos, para a convivência de colegas de trabalho ou de
clube.
Porém,
não há muito tempo, começou a aproveitar-se esta época, de alguma pausa no
trabalho, para férias e para turismo. Sobrepôs-se à partilha, à reunião e à
proximidade o consumismo, expresso no afastamento dos amigos, da família e dos
colegas. Muita gente quer viver a vida ao seu bel-prazer, a sós, longe de tudo
e de todos, o que é legítimo, em caso de stresse, não de fuga.
Esta
pode ser a forma mais severa do consumismo, mas este enxameou a sociedade e
penetrou-a até aos rins e à medula dos ossos. É o negócio dos enfeites, das luzes,
dos brinquedos, das promoções comerciais, das viagens. O comércio natalício pontifica
e impõe-se, logo desde meados de outubro. Multiplicam-se os presépios como
instrumentos de adorno, mesmo onde não há fé, nem ponta de religião. Nesse
aspeto, o comércio, em nome do respeito pela tradição, vai travando alguma
pretensão de alguns decisores políticos de tirar da ribalta social importantes
motivos religiosos e culturais.
Toda
a gente dá prendas e pode zangar-se, caso não as receba. As prendas, mais do
que um brinde ou uma recordação, tornam-se uma acumulação de presentes, uma
moeda de troca, uma mostra de riqueza, um meio de reconhecimento (quando não de
subserviência).
Ora,
as prendas, em minha modesta opinião, só valem se forem expressão de partilha
em família, na roda de amigos, na teia do companheirismo. E serão altamente meritórias
se a elas for intimamente acoplada a solidariedade para com aqueles e aquelas
que precisam.
Na
verdade, famílias que não partilham, amigos que voltam as costas, uns aos outros,
colegas de trabalho ou de clube que rivalizam ou se tramam não fazem Natal. E
não há Natal, quando os pobres não têm casa, não têm comida, não têm roupa, não
têm companhia. É que o dinamismo desta época impõe a proximidade na forma de
generosidade, de afeição e de entrega.
O
Natal é a festa da liberdade. Porém, só há liberdade, se a dignidade de todas
as pessoas é reconhecida, promovida e defendida. E a dignidade de cada pessoa
só se realiza com a satisfação das necessidades básicas da alimentação, do
vestuário, da habitação, do trabalho, da educação, da saúde e da proteção na
doença, na velhice e no desemprego. Só a partir daí vale a pena solicitar a participação
expressa de todos na vida pública.
Dir-se-á
que isto deve observar-se independentemente de haver Natal ou não. Claro que
sim. Todavia, bem sabemos como isso falha nas nossas sociedades. Cresce o
número de pobres e aumenta a sua pobreza, enquanto a riqueza de uns poucos
engrossa, mormente quando as crises assolam os povos. A habitação, a saúde e a educação
andam pelas ruas da amargura. E, no meio de tudo isto, enquanto surgem falsos
pobres que se aproveitam indevidamente dos auxílios devidos aos pobres, os
ricos acusam os pobres de serem culpados da sua indigência ou lhes prestam o
favor da assistência caridosa, que os humilha e torna dependentes. Isso não é
caridade, pois a caridade tem de conter em si a justiça: a ninguém pode faltar
nada daquilo que realmente precisa. Não se pode esquecer a função social da propriedade,
nem o destino universal dos bens. Não se pode dar a alguém, por caridade, o que
lhe é devido por justiça. Não se deve ficar pelo assistencialismo, a não ser em
situação de emergência mas tender à promoção da pessoa humana pela educação e
pelo trabalho.
Estes
valores devem ser cultivados no Natal, não para que fiquem encurralados na
quadra natalícia, cessando quando o Natal passar, mas para que norteiem a vida
de todos ao longo do ano inteiro. Por isso, é que o Natal é quando os homens
quiserem. E eles (nós) devem querer que seja todos os dias, todas as semanas,
todo o ano e todos os anos.
Todo
este dinamismo implica a assunção permanente de um estilo de vida marcado pela simplicidade
serena e pela humildade.
A
simplicidade postula o reconhecimento de todos como pessoas usando, com
parcimónia, dos recursos de que se dispõe e acautelando, sábia e equilibradamente,
o futuro. É inimiga do discurso complicado, da acumulação desordenada ou
ilegítima de recursos, da criação de factos desnecessários e da invenção de problemas
onde esses não existem.
A
humildade não consiste em negar as qualidades de que sejamos dotados ou ações meritórias
a que tenhamos posto as mãos. Isso é falsa humidade. É a atitude de gato: este
faz-se pequeno diante de quem o quer afagar, mas, à medida que se lhe passa a
mão pelo lombo e pelo dorso, torna-se mais volumoso, alto e satisfeito.
A
verdadeira humildade consiste em perceber que uns não mais do que os outros; em
reconhecer as qualidades que temos, pondo-as ao serviço da comunidade; em
reconhecer os nossos erros, tentando corrigi-los; e em agir como membros da
comunidade a que pertencemos ou naquelas que nos acolhem. Dela é inimiga a prepotência,
o excesso de protagonismo, a intriga, a soberba, a maledicência, o domínio, bem
como a sujeição acrítica, a obediência cega e a subserviência.
São
a simplicidade e a humildade que nos capacitam para a partilha e para a
proximidade. E a partilha e a proximidade são fonte, fator e fautor de alegria.
Assim,
o homem cônscio da sua dignidade é simples, humilde e alegre. A simplicidade
não é artificial, a humildade é verdadeira e a alegria é genuína.
***
Ao
Natal está associada a paz que, é a consequência da fraternidade. Infelizmente,
a fraternidade é negada e britada pela guerra, que está a funcionar em vários
palcos – uma terceira guerra mundial aos pedaços, no dizer do Papa Francisco. E
a guerra é antinomia da paz. Chega-se à guerra através da negação da partilha,
do abandono da proximidade solidária, da recusa da reunião dialogal.
A
guerra disputa territórios, mata pessoas, destrói património, vandaliza a
Natureza, trata os outros como seres não humanos, escraviza, tolhe a liberdade.
Educa-se,
não para a convivência, mas para a competitividade, que dá em sobranceria, descamba
em violência, acumula recursos, não olha a meios para atingir os fins. Praticamos
a imposição, em vez do diálogo; criamos autómatos, em vez de pessoas verdadeiramente
livres; somos caciques, em vez de políticos; servimo-nos, em vez de servir.
***
Contudo,
o Mundo dispõe de muitos alfobres de pessoas simples, humildes e alegres, que
lutam pela paz, através do diálogo, fazendo jus à fraternidade. Muitas agremiações
são arautos e paladinos dos direitos humanos e da boa consciência. O que faz
falta é multiplicar estas pessoas e estas agremiações e assumir os seus
objetivos no quotidiano.
A
boa consciência leva à partilha solidária, leva ao diálogo, leva à paz.
Os
cristãos têm motivos de sobra para serem simples – a simplicidade dá serenidade
à alma –, humildes e alegres. O Filho de Deus que Se fez homem, passou a
existir no tempo e veio ao Mundo, como exemplo da simplicidade, da humildade,
da serenidade. O presépio fala por si. E é da serenidade, da paz e da
parcimónia de vida, que resulta a genuína alegria.
Efetivamente,
Jesus Cristo, antes de o ser (homem), já o era (Deus). Pouco importa que tenha
ou não havido erro no calendário gregoriano; o que interessa é o espírito do
Natal.
Em
tempos de guerra, de crises políticas e económico-sociais e de alterações climáticas,
acompanhadas de catástrofes naturais, parece não haver razões para a esperança.
Perdem-se os valore de vida. Todavia, quem usa da boa consciência, quem crê tem
motivos para sorrir e para ousar na porfia da esperança. É a esperança que nos
mantém vivos.
É
neste sentido que desejo a todos os familiares, amigos e cúmplices no trabalho
ou no lazer um Natal de simplicidade serena, de humildade verdadeira e de genuína
alegria para todos os dias.
Humildade
e alegria são, no dizer do meu conterrâneo Adriano Batista, as qualidades que
mais faltam nas pessoas e que são o mais importante na vida. De acordo.
Boas
Festas! Feliz Natal! Próspero Ano Novo!
2023.12.23 – Louro de Carvalho
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