Há consenso quanto ao desafio transversal e global de
travar as alterações climáticas, mas as importantes divergências que sobressaem,
relativamente à calendarização desses desafios, podem alterar o rumo do que se
entende como “o estado da arte do clima”, com consequências diretas nas
políticas internas adotadas pelos diversos países.
Um dos grandes resultados expectáveis da cimeira de
2023 é a consolidação do primeiro relatório do Global Stocktake (GST),
estabelecido no Acordo de Paris (artigo 14.º), e que será uma síntese sobre o
progresso coletivo mundial, em relação aos targets climáticos
estabelecidos em 2015. À luz do conhecimento científico atualizado sobre o
tema, levantam-se questões de mitigação, de adaptação e de meios de
implementação para o cenário das alterações climáticas.
Porém, no meio de várias sessões e de reuniões
técnicas da primeira semana de COP28, nos palcos principais e paralelos do
Dubai, surgiu o primeiro rascunho do documento apelidado GST, datado de 5 de
dezembro, escrito por um High Level Committee. E, apesar de as negociações
ainda estarem em andamento e o documento não ser a versão final, a sua leitura
pode ser importante para sabermos o que está em jogo, em termos de consenso e de
dissenso entre os países.
Entre os muitos assuntos que primam pela indefinição e
pela importância estratégica, destacam-se: o conceito de financiamento climático,
considerando os pledges financeiros
(compromissos anunciados) e a operacionalização do fundo loss and damages; a objetiva limitação do aquecimento global – que
aparece com menções de 1,5 e 2 graus celsius (1,5ºC e 2ºC); e a estratégia
de phase down x phase out e como será a abordagem em
relação aos combustíveis fósseis, tanto os existentes como os resultantes de
novos projetos.
***
O termo “finance” aparece mais de 50 vezes na minuta
do GST (que tem 24 páginas) e as suas diversas menções refletem a importância
do assunto. Com efeito, para atingir os objetivos do Acordo de Paris e
calendarizar as mudanças de mitigação e adaptação discutidas, é urgente a
mobilização, em escala, de recursos financeiros.
Na minuta, há o expresso reconhecimento da não existência
de uma definição multilateralmente acordada de financiamento climático, o que
dificulta a implementação e a monitorização do fluxo de investimento para ações
efetivas de desenvolvimento sustentável. Assim, logo na primeira semana desta
cimeira climática, aflorou a agitação em torno de vários compromissos
anunciados pelos países. Mais de 700 milhões de dólares foram anunciados para
o loss and damages (fundo específico para os países em
desenvolvimento), mas vários milhares de milhões foram anunciados para outros green funds, em geral, tratamento de doenças tropicais,
etc. São valores importantes e para causas relevantes, mas, por não haver
definição ou governança global de financiamento climático, é difícil
compreender como serão aplicados os critérios dos investimentos anunciados,
como se fará a monitorização destes “pledges” e em que
medida eles endereçam os targets de
adaptação e mitigação. Isto sem falar da preocupação com a operacionalização
específica do fundo de loss and damages,
que precisa de valores na ordem dos biliões para a ajuda aos países em
desenvolvimento.
No entanto, é positiva a expressa menção da
necessidade de mudança na governança do sistema financeiro internacional –
público e privado, em conjunto e cooperação – que deve ser direcionado para
atividades de baixa emissão de gases de efeito estufa, destinadas ao
desenvolvimento da resiliência climática. Porém, a arquitetura desta governança
financeira não será linear ou igual para todos os países, visto que os pontos
de partida e status dos recursos são
diferentes. Neste aspeto, a minuta propõe que o sistema financeiro seja fit-for-purpose, que se evitem empréstimos ou medidas
que sobrecarreguem os países em desenvolvimento e que, em cada país, se evitem
medidas unilaterais que impactem negativamente ou contrariem os esforços
nacionais de desenvolvimento sustentável.
Ainda no âmbito do financiamento, é difícil a questão
do que priorizar: os custos e necessidades de adaptação estão entre 10 a 18
vezes mais do que o fluxo atual, porém a mitigação requererá bastante dinheiro.
O relatório “Adaptation Gap Report 2023”, publicado pelas Nações Unidas, estima
que os custos de adaptação até 2030 podem ser de 215 mil milhões de dólares por
ano.
Algumas expressões ainda sob definição (opção na
minuta do relatório) podem ser parte da solução para tornar tangíveis os
critérios do que se deve evitar no financiamento climático: atividades de
intensa emissão de gases com efeito de estufa (GEE), mal adaptadas ou não
correspondentes à adaptação climática, e atividades não resilientes do ângulo
climático. Neste ponto está em cima da mesa a inclusão de medidas de limitação,
como o desinvestimento e phase out (expressão
ainda não definitivamente admitida) de combustíveis fósseis.
***
O Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) alertou
que não são suficientes os esforços atuais para travar o aquecimento global e que
o cenário net zero depende de um mix de esforços que incluem a redução substancial
no uso de combustíveis fósseis, o uso mínimo de combustíveis fósseis aliado a
tecnologias CCS (de captura de carbono), além de sistemas de eletricidade que
não emitem CO2 (dióxido de carbono) líquidos; eletrificação generalizada; maior
conservação e eficiência de energia; e maior integração em todo o sistema
energético. Resta saber como será feita a redução substancial dos combustíveis
fósseis.
A minuta do relatório GST tem o tema em aberto e com
várias opções de expressões mencionadas, mas há uma menção ao hasing down e quatro menções a um suposto phase out. Sobre a expressão phase
down, o relatório inclui uma opção que orienta a aceleração dos
esforços para redução gradual da geração de energia que utilize o carvão sem tecnologias
de CCS, ação a aliar ao fim (phase out) dos
subsídios para “combustíveis fósseis ineficientes”, em paralelo com suporte
financeiro para os países mais vulneráveis conseguirem fazer este caminho.
Com o título de “Phase out”, há ainda quatro opções a
considerar: eliminação gradual, ordenada e justa dos combustíveis fósseis; aceleração
de esforços para o fim dos combustíveis fósseis que não tenham opção de CCS,
reduzindo rapidamente a sua utilização para alcançar o net zero nos sistemas energéticos até 2050; rápida ação, até 2030,
para fim dos combustíveis fósseis a carvão que não tenham CCS acoplado (phase out), incluindo o fim imediato do
licenciamento e da autorização de novas unidades de geração a partir destas
fontes de energia; e fim dos incentivos aos combustíveis fósseis ineficientes (Phasing out) no médio prazo.
As opções do phase
out remontam à redução gradual e contam com a inclusão de termos que podem
gerar margem de interpretação entre os países quanto à urgência e timings, dificultando a implementação de
uma estratégia clara. Ora, seja qual for a estratégia acordada entre os países,
os novos empreendimentos terão em conta objetivos ambiciosos já anunciados,
como: reduzir emissões de metano em 30%, até 2030, e 40%, até 2035, o
compromisso de mais de 120 países em triplicar as renováveis e duplicar a
eficiência energética, além da proteção e conservação dos ecossistemas e da
biodiversidade, o que depende de reverter a desflorestação até 2030.
***
Não menos importante, vem a definição dos limites para
o aumento da temperatura global, que guiam a urgência das diversas ações de
adaptação e mitigação aqui mencionadas.
O texto reconhece os níveis alarmantes indicados pelo
IPCC do status atual do aquecimento global (de 1,2°C,
sendo este 2023 o ano mais quente da história), mas alterna a menção, em
momentos diferentes, ao que considerar como limite o cenário de aumento da
temperatura global em 1,5 ou 2°C, em comparação com os níveis pré-industriais.
O IPCC já alertou para os dois níveis de temperatura, quando estabeleceu a
necessidade de reduções profundas, rápidas e sustentáveis das emissões de GEE e
que, para travar em até 1,5°C, temos hipóteses de menos de 50%, ou para
garantir um aquecimento de menos de 2°C, temos hipóteses de cerca de 67%, ambos
considerando como horizonte temporal até ao fim do século.
Há a ênfase ao facto de a contenção dos danos depender
do aumento da temperatura global abaixo de 1.5 °C, como indicado no Acordo de
Paris. Porém, a minuta do relatório menciona: um novo objetivo coletivo para
acelerar os esforços em conter o aumento da temperatura global “bem abaixo” de
2 °C, devendo ser perseguidos os esforços de limitar este aumento em até 1.5°C;
o reconhecimento de que serão muito mais baixos os impactos no ambiente, se
travarmos o aumento da temperatura global em 1,5 °C, e não em 2°C, pelo que se insiste
nos esforços que considerem a marca de 1,5 °C; e um pedido para que o IPCC
prepare um relatório extra e especial, no seu próximo ciclo de análises, que
considere os custos económicos e sociais, bem como as necessidades e
implicações de limitar o aquecimento global nos dois cenários: de até 1,5 °C e
de “bem abaixo” de 2°C, com relação aos níveis pré industriais.
A par de todas as importantes e inafastáveis questões
técnicas, é de se notar a crucialidade de estarem as atenções mundiais voltadas
para o mesmo assunto: a sobrevivência do planeta como o conhecemos. Podemos não
precisar de consensos, precisamos de ação, coordenada e efetiva. As jornadas
irão variar, e é expectável que sejam adaptadas às realidades dos países para
que sejam justas, mas o objetivo é um só: travar o aquecimento global. Ciência,
métodos, objetivos e cooperação deviam ser os nossos desejos de final de ano,
além de entregas no final da COP28.
***
Entretanto, os países favoráveis à redução ou à eliminação dos
combustíveis fósseis reagiram contra a oposição do líder da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP)
a qualquer acordo na COP28 que vise o petróleo, o gás e o carvão. “Acho que é uma coisa muito repugnante os países da OPEP oporem-se a colocar a fasquia onde deve estar” em
relação ao combate às alterações climáticas, disse a ministra da Transição
Ecológica espanhola, Teresa Ribera, cujo país detém a presidência semestral do
Conselho da União Europeia (UE). E a ministra da Transição Energética francesa,
Agnès Pannier-Runacher, disse estar “atordoada” e “zangada“.
De facto, o secretário-geral da OPEP, o kwaitiano Haitham
al-Ghais, pediu urgentemente aos 23
países-membros ou associados para “rejeitarem proativamente”
qualquer acordo que vise os combustíveis fósseis nas negociações climáticas. A
intervenção provocou uma série de reações no Dubai, onde o futuro dos
combustíveis fósseis está no centro das negociações e a nação líder da OPEP e
do bloco de países árabes, a Arábia Saudita, está a ser acusada de obstrução
nas negociações de um acordo na 28.ª Conferência das Nações Unidas sobre
Alterações Climáticas de 2023 (COP28), que decorre no Dubai de 30 de novembro a
12 de dezembro.
“Nada põe mais em perigo a prosperidade e o
futuro dos habitantes da Terra, incluindo os cidadãos dos países da OPEP, do
que os combustíveis fósseis”, disse Tina Stege, enviada para o
clima das Ilhas Marshall, no Pacífico, ameaçadas pela subida das águas do mar.
Entretanto, segundo um membro da presidência da COP28, nenhum país quer
ser considerado causador de problemas,
sendo as manobras sauditas uma técnica típica para efeitos de negociação.
A OPEP, que tem pavilhão na COP28, mostra medo dos crescentes apelos à saída dos combustíveis fósseis
e à transição
energética, pois há a possibilidade real de a COP28 enviar um sinal sobre o
início do fim dos combustíveis fósseis. As
posições endurecem à medida que a COP28 entra na reta final, com o regresso dos
ministros dos países participantes para levar as negociações a conclusão
bem-sucedida até ao dia 12. Os países emergentes e em desenvolvimento exigem compensações
dos países ricos para assinarem o abandono dos fósseis.
***
O cenário da COP28 já era complicado e esperavam-se contradições.
Com efeito, a ação climática urge, mas o presidente da cimeira é presidente
executivo de uma das grandes empresas produtoras de petróleo e, segundo consta,
não terá perdido o ensejo de estabelecer contactos paralelos favoráveis ao seu
negócio. É certo que as tomadas de decisão cabem aos países participantes, mas
os grandes projetos podem ser bloqueados ao dobrar próxima esquina. Esperemos, entretanto,
pelas conclusões da cimeira.
2023.12.10
– Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário