Samuel Moyn, professor de Direito e de História na Universidade de Yale, sustenta que a retórica que a esquerda tem
adotado contra a extrema-direita só prejudica a esquerda, dando força ao
radicalismo. E, desafiando as narrativas convencionais sobre neoliberalismo,
afirma que “o sistema político está a
virar à direita, desde que os partidos socialistas se tornaram neoliberais”.
Tornou-se conhecido, ao escrever, em 2017, um artigo no “The New York
Times”, advogando que “Trump não é uma ameaça à nossa democracia”, mas “a
histeria”. Recentemente, publicou “Liberalism Against Itself: Cold War
Intellectuals and the Making of Our Times” [Liberalismo contra si mesmo:
Intelectuais da Guerra Fria e a Construção dos Nossos Tempos], a explicar como
o liberalismo dos Estados Unidos da América (EUA) se construiu sobre o medo
irracional do comunismo. Condenando a União Soviética como equivalente à
Alemanha nazi e tentando escapar ao socialismo clássico, os liberais preparam
terreno para ascensão da direita.
O professor, que reúne um clube de admiradores de esquerda e que, há anos,
estuda direito humanitário, em entrevista ao Expresso, publicada online,
explica a ascensão da direita radical e adianta possibilidades para a
geopolítica, nos próximos anos. Vejamos os dados mais prementes.
Sobre a génese do neoliberalismo, em particular, nos EUA, aponta a sensação
de que ali há “um sistema super-rico, quando “muitas pessoas receberam uma
proporção muito menor do bolo nacional” e “houve estagnação salarial durante a
maior parte dos últimos 50 anos”. Situa a erupção do neoliberalismo na eleição
de Ronald Reagan, que falhou aos eleitores, os quais o acharam em Donald Trump,
que pressionou “por mais políticas neoliberais e defendeu as décadas de
aplicação dessas regras”.
Tudo começou nos anos 70, mas a origem do neoliberalismo tem raízes
intelectuais nas décadas de 30 e 40. O primeiro país onde é institucionalizado
é o Chile, depois de 1973, seguindo-se o mundo anglófono, com Margaret Thatcher
e Ronald Reagan, nos anos 80. Porém, segundo alguns, os socialistas anteriores
a 1989 desempenharam papel importante na sua invenção.
Algumas crises, como a da
habitação e a dos serviços públicos, têm raízes naquelas décadas. Afirmava-se a “propriedade estatal da indústria” e o “compromisso
do Estado de prestar serviços diretos”. Porém, “os Estados começaram a deixar
de o fazer, a reduzir e a terceirizar”. A onda afeta todos os países, mas só
começa na Europa de Leste após 1989. Na China e na China, é igual. Cerca de
1989, surge o ponto de rutura, com a política neoliberal a institucionalizar-se.
As posições neoliberais sociais-democratas foram adotadas por liberais e
progressistas nos anos 80 e, sobretudo, na década de 1990, de Bill Clinton a
Tony Blair. Sob a designação de Terceira Via, a esquerda fez políticas que
promovem a reação da extrema-direita e a da esquerda mais radical, que reage menos.
Nos EUA e no Reino Unido, são os partidos de esquerda (não muito à esquerda e
até não são socialistas) que favorecem os ricos e as pessoas das cidades, em
vez das classes trabalhadoras. Por isso, o eleitorado do Partido Democrata vive
nas cidades e na costa, quando era, no passado, constituído por “eleitores
rurais e do centro do país, onde grande parte da indústria pesada está ou
esteve”.
Assim, o Partido Democrata torna-se partido de tendência esquerdista que
une ricos e pobres, nas cidades, e abandona a classe média, sobretudo a classe média
branca do interior. Muitos dos que votavam nos democratas “nunca mais o fizeram,
depois dos anos 90”.
O mesmo se aplica ao Reino Unido, em relação às antigas Midlands
Ocidentais. Por exemplo, em Manchester, que era reduto do trabalho, onde vivia
o proletariado industrial, as pessoas perderam, quando Blair converteu o
Partido Trabalhista à Terceira Via, uma força neoliberal que atraiu banqueiros
e a “cidadania multicultural, especialmente em torno de Londres”.
O entrevistado não tem a certeza de que a forte polarização atual, entre
esquerda e direita, tenha origem nas redes sociais. Todavia, “depende do lugar
onde estamos”. Por exemplo, os EUA “têm um certo sistema político” em que “os
partidos estão polarizados” e “discordam cada vez mais”, ao invés do que
sucedia antes. Durante muitas décadas, os dois partidos foram neoliberais. Ora,
“o distanciamento não é necessariamente coisa má”, pois há “a possibilidade de
realinhamento, ou seja, de um dos partidos romper com o neoliberalismo que
partilhavam”.
Uma grande maioria dos americanos apoia coisas como o direito ao aborto ou
salários mínimos mais elevados, mas não consegue o que quer, “porque o sistema
político não é maioritário”. As redes sociais desempenharam um papel, entre os
novos meios de comunicação, na mudança do discurso político, mas “a realidade é
mais profunda”. Os partidos são vistos cada vez mais como falhados perante o
povo. E o povo tem “queixa legítima contra as elites que governam”. Não há
maior polarização entre os americanos ou, pelo menos, não é a caraterística que
impera. Porém, admite que isso aconteça noutros países.
Em relação à Europa, Samuel Moyn considera que “a extrema-direita está a regressar, há décadas, desde a
descoberta de [Jean-Marie] Le Pen, ainda na década de 80”, e concorda que, “nos
últimos cinco anos, vemos mais e mais avanços da extrema-direita, como os que
têm ocorrido na Hungria”, mas contesta que seja “uma história de polarização”. E
explica: “Nas décadas de 60 e 70, ainda havia partidos socialistas, que
normalmente lutavam contra os democratas-cristãos. O que aconteceu foi que os
partidos socialistas entraram em colapso. Em certo sentido, os
democratas-cristãos tornaram-se a esquerda, e a extrema-direita tomou o lugar
do centro-direita.”
Então, isto não é “história de polarização”, mas de “reação da direita
contra o sistema político”, ou seja, houve reação de direita ao neoliberalismo,
em vez de reação de esquerda.
Nalguns países existe, de facto, esquerda. Assim, a Grécia foi um exemplo
contra a austeridade, verifica. Todavia, o entrevistado pensa que o populismo
não será “a melhor forma de pensar sobre isto”. Há nova visibilidade dos
partidos de direita, de extrema-direita, talvez porque o centro liga “os
extremos populistas”. Porém, o investigador de Yale considera que “a ideia de
populismo não é muito interessante, porque não sabemos o que a palavra
significa”. Admite que “os extremos são mais populares do que antes”, o que revela
que “o centro é menos popular do que era”. E conclui que “todo o sistema
político está a mudar para a direita, com o colapso da alternativa socialista”,
isto é, desde que os partidos socialistas “se tornaram neoliberais”. Houve uma
reação de direita ao neoliberalismo, em vez de uma reação de esquerda.
À questão “como podem os
políticos combater a popularidade de pessoas como Trump”, o investigador responde
que “talvez o neoliberalismo assuste o
centro, porque o obriga a enfrentar o verdadeiro neoliberalismo”. Vota-se em quem
perspetive a mudança para uma vida melhor. Por isso, na ótica de Samuel Moyn, “a única esperança é uma
alternativa de esquerda”.
Questionado se “os eleitores
não se definem como os analistas e os media os definem”, sustenta que “a maioria dos analistas tem tratado os eleitores
como irracionais”, ao passo que estes “têm sido bastante racionais ao reagirem
à transformação do seu sistema político e ao neoliberalismo”.
O investigador não defende “a recuperação da indústria”, o que Donald Trump
prometeu, primeiro, e Joe Biden, seguir. Porém, entende que estes populistas “estão
a responder às queixas legítimas dos eleitores, e o centro não”.
Face às duas guerras em
curso, admite que o mundo multipolar, como Vladimir Putin o imaginou, pode vir
a ser uma realidade, pois a tendência é essa e já não há “a unipolaridade de 1989”. Os EUA são um país muito
poderoso, mas, militarmente, “não são o mesmo que antes”. Questiona-se a
centralidade do dólar como moeda global, estando o país enormemente endividado.
Contudo, o multipolarismo não é algo que surja de repente. “É uma transformação
lenta.”
Quanto ao que espera para os
próximos anos, o investigador adverte que há “oportunidades
e riscos”. Antevê muitas oportunidades, porque houve muitos problemas num mundo
liderado pelos EUA, “muitas guerras desnecessárias e o neoliberalismo promovido
pelas elites globais”. “Terá sido esse o processo que levou as pessoas a
votarem Trump”, admite, defendendo que a perspetiva de um Mundo multipolar pode
ser melhor. E exemplifica: “antigamente, teria sido difícil resistir à proteção
de Israel pelos EUA”, mas, hoje, muitos países “apresentam resistência à guerra
de Israel”, por causa da crise mundial e das críticas do hemisfério Sul e porque
os americanos “estão numa situação muito diferente, tendo visto tantas guerras
sem boas razões”.
Não crê que a China, o concorrente mais próximo dos EUA, tenha um plano
global, nem que se considere “relevante para a Humanidade da mesma forma que a
União Soviética se considerava”. Da Rússia, diz que “é uma potência forte com
armas nucleares”, mas a guerra na Ucrânia mostrou que mal consegue capturar um
pouco de território de um país próximo que integrava a União Soviética. Por
isso, “não será ameaça significativa para ninguém”. E é insana a pressa dos
Estados bálticos e dos escandinavos, dantes neutros, em procurar proteção
contra a Rússia, pois “a Rússia não age contra eles” e “todo o poder da Rússia
depende da venda do seu petróleo às mesmas pessoas que estão zangadas com
Moscovo: os europeus”. Ao invés, julga “mais interessante o Brasil e a Índia”,
que “serão forças significativas de uma forma que até aqui não foram”.
Pensa que a resposta a Trump “foi dizer que era a pior coisa que já
aconteceu”, em vez de enfrentarem os próprios problemas, que foram as décadas
de militarismo e de neoliberalismo. Espera que ele não ganhe as eleições nos
EUA, mas, até que os democratas se olhem ao espelho, terão Trump a assombrá-los,
ou alguém como ele. É preciso resolver os problemas que levam ao surgimento de
pessoas como Trump.
Supõe que Trump não levaria
à alteração do cenário geopolítico. Com efeito, o anterior presidente dos EUA “era muito fraco no cargo, porque o sistema político o
continha”. Poderia acabar com a guerra na Ucrânia, deixando Putin ficar com parte
do território, mas isso terá de acontecer, “exceto se se quiser manter uma
guerra congelada no leste da Ucrânia”. Poderia ser ainda mais permissivo com
Israel, mas Biden já foi tão permissivo talvez não houvesse diferença. Contudo,
“Trump seria mais hostil aos multilateralismos e a entidades como a NATO”, o
que preocupa algumas pessoas. Se for eleito, pode levar a “crítica ao
neoliberalismo mais a sério do que da última vez e influenciar o comércio
mundial, numa direção menos neoliberal”, mas isso é duvidoso, porque “as suas
próprias políticas eram neoliberais”.
Quanto à forma como o jornalismo
deveria lidar com a questão da extrema-direita, é de opinião que aí “há polarização”, visto que “a comunicação social não
está disposta a mostrar ao centro que foi ele que deu origem à extrema-direita”
e porque “grande parte dos media, especialmente
dos novos media, serve a extrema-direita” – “situação
sobre a qual os cidadãos comuns não têm informação suficiente”, pois cada força
tem o seu “ecossistema mediático”.
E, sobre a crença de muitas
pessoas acreditarem que os partidos de extrema-direita resolverão o problema da
corrupção, mas muitos dos seus líderes serem responsáveis por mentiras e por
desinformação, discorre: “A democracia
foi tentada por pessoas que compreenderam que haveria um processo de
aprendizagem. Porque sabemos que um ecossistema democrático é, até certo ponto,
irracional. Não estou a dizer para nos livrarmos dele ou para o contornarmos,
porque não creio que as elites façam bom trabalho sob pressão, mantendo-se
honestas. Mas isto significa que há sempre espaço para a retórica, em detrimento
da razão, e para brincar com a irracionalidade das pessoas comuns para criar
inimigos, os chamados bodes expiatórios.”
***
Salvo as reservas à desvalorização da hegemonia da União soviética e da
periculosidade da Rússia e da China, bem como à defesa do sistema maioritário, o
pensamento de Samuel Moyn pode ser boa lição
para a esquerda e para o centro em Portugal, face ao avanço dos populismos.
2023.12.27 –
Louro de Carvalho
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