A 14 de dezembro, em entrevista ao Jornal de Notícias (JN), Rui Rio, ex-líder do Partido Social Democrata (PSD), defendeu que a procuradora-geral da República deveria sair, disse
discordar da dissolução da Assembleia da República (AR) e alertou para a
necessidade de esclarecimento total no caso das gémeas.
Efetivamente, Lucília Gago sabia ou
devia saber que a inclusão, num comunicado de imprensa da Procuradoria-Geral da
República (PGR) de parágrafo que revelava o curso de um inquérito ao
primeiro-ministro (PM) no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), por ser esse o
foro competente, levaria à demissão do governo, pelo que não pode lavar as mãos
como Pôncio Pilatos, dizendo que não foi responsável por nada e que o Ministério
Publico (MP) tem de investigar sempre que haja suspeitas. O problema não está
em investigar, mas na forma como o faz e como o comunica.
Ora, se as suspeitas não são
sustentadas (surgiram de referências ao PM por parte de outros inquiridos no
processo), embora a investigação devesse prosseguir, o facto não deveria ter
sido publicitado até as suspeitas, eventualmente, terem consistência.
Quanto à discordância de Rui Rio,
relativamente à dissolução da AR, é de toda a justiça reconhecer-lhe a razão.
Com efeito, as eleições legislativas não gravitam em torno dos líderes dos
partidos, mas dos partidos, pelo que o líder pode ficar impedido, renunciar,
ser deposto no partido e o partido permanece. É temerário dissolver uma AR em
que há uma força partidária com maioria absoluta. Argumentar com o passado não
colhe, porque nunca um Presidente da República (PR) dissolveu a AR com a
maioria absoluta de um só partido. E a dissolução da AR que dispunha duma maioria
absoluta resultante de coligação é de legitimidade duvidosa.
Por sua vez, o PR não pode
argumentar o que Partido Socialista (PS) é que, no passado, pedia eleições,
mercê da saída do PM. A avaliação judiciosa cabe ao PR, não aos partidos,
embora estes devam ser ouvidos. Neste caso, todos os partidos mostraram querer
eleições, com exceção do PS, que não as queria, apesar de facilmente se
conformar com a decisão presidencial. E o PR não pode argumentar que não mandou
embora o PM: ele é que pretendeu sair. Na sua visão judiciosa, talvez pudesse
segurá-lo até o STJ, eventualmente, apurar o fundamento das suspeitas.
O ex-líder do PSD evidencia a
necessidade de total esclarecimento no caso das gémeas luso-brasileiras. Na
verdade, estamos enredados nas afirmações de exceção e da sua negação. Todos os
implicados dizem não ter havido favorecimento. Porém, não é tudo normal. Alguém
usou o nome do PR, com ou sem consentimento dele, coisa que ele não fez parar.
E os executores do tratamento de exceção misturaram decisão clínica (certa) com
temor reverencial (indevido).
É preciso esclarecer tudo. Os
responsáveis devem fazer mea culpa;
quem tem responsabilidade política deve tirar as consequências; e o MP não pode
ficar no inquérito contra desconhecidos.
O constitucionalista Vital Moreira (blogue
“Causa nossa”) não se surpreende com a posição de Rui Rio. Com efeito, foi dos primeiros dirigentes
políticos a alertar para a deriva persecutória do MP contra os políticos stricto sensu e a equacionar reformas
para a contrariar, nomeadamente alterando a composição do Conselho Superior do
Ministério Público (CSMP). Por outro lado, “foi ele próprio vítima especial dos
abusos do MP, em manifesta retaliação corporativa, aquando das buscas à sua
casa, no Porto, acompanhadas pelas televisões na rua, previamente informadas”.
Por isso, o
renomado constitucionalista, que defendeu idêntica posição, “logo após o golpe
de Estado ‘a frio’ do MP que fez demitir António Costa”, sem qualquer
esclarecimento adicional sobre o assunto e sem
se saber que suspeita impende sobre o PM, entende que “só há razões para
reforçar a exigência de demissão”. Na verdade, a procuradora-geral
de República “não é digna das responsabilidades institucionais que,
inadvertidamente, lhe foram confiadas”.
O MP, a
coberto da imperiosidade de instaurar inquérito, mostra a propensão para
diminuir ou eliminar as garantias mínimas de “imparcialidade contra a
perseguição política” e, fazendo, espetáculo com a Justiça, sugere a condenação
das pessoas na praça pública, antes do côngruo julgamento, com garantias de
defesa e observando-se a presunção de inocência.
***
A Operação
Influencer, que fez cair o governo, andou nas bocas do mundo e tem valido
muitas críticas à atuação do MP, que mereceram resposta da procuradora-geral da
República.
Entre os
procuradores responsáveis pelo caso que abanou a política nacional, está Hugo
Neto, que foi, segundo a revista Sábado,
foi assessor do Ministério da Defesa Nacional e do Ministério da Defesa Nacional
e dos Assuntos do Mar, quando este era tutelado por Paulo Portas, num governo
de coligação entre o Partido Social Democrata (PSD) e o Partido do Centro
Democrático Social – Partido Popular (CDS-PP). Em 2004, foi assessor do
secretário de Estado da Defesa Nacional e Antigos Combatentes, José Manuel
Pereira da Costa – que o agraciou com louvor público, “pelos serviços
prestados” e, designadamente, por ter revelado “grande competência, extraordinário
desempenho e invulgares qualidades pessoais –, tendo transitado, depois, para o
gabinete do novo secretário de Estado da Defesa Nacional e Assuntos do Mar,
Jorge Freitas Neto.
Já no Departamento
Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), enquanto investigador
especializado em crime económico, esteve envolvido na investigação a Manuel
Pinho, no processo EDP, tendo indiciado por corrupção passiva Artur Trindade,
secretário de Estado da Energia do executivo do governo de coligação PSD/CDS liderado
por Passos Coelho.
Foi também
um dos magistrados do MP que foi alvo de Rui Pinto, tendo o ‘hacker’ português
acedido à sua caixa de e-mail. E, em
2021, liderou as buscas à SAD (Sociedade Anónima Desportiva) do Futebol Clube
do Porto (FCP) no âmbito das suspeitas em torno dos negócios do futebol que
foram levantadas pelo “Football Leaks”.
Não é caso
único de ‘troca de cromos’ da magistratura para a política stricto sensu. A revista Sábado
recorda os exemplos de Francisca Van Dunem, que passou de juíza a ministra da
Justiça, ou de José João Abrantes, presidente do Tribunal Constitucional (TC) que,
antes, trabalhou na Secretaria de Estado da Defesa de António Guterres (Já
ninguém se lembra de Laborinho Lúcio, que passou de juiz a ministro e retornou).
João Batalha, vice-presidente da Frente Cívica, assinala à Sábado que é “problema”. A Associação Sindical dos Juízes
Portugueses (ASJP) e o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) têm
defendido um aperto das regras de portas giratórias. “Quem, no seu direito,
interrompe a magistratura para um ministério, seja um gabinete ou um cargo
político, não pode voltar”, sustenta. Por mim, entendo que o mal não está no
exercício da magistratura em si, mas na forma como se exerce e em pedir ou
aceitar escusa de intervir em processos em que a ação do magistrado possa
levantar fundada suspeição.
***
O artigo 6.º do Estatuto do Ministério Público (EMP)
assegura “o acesso, pelo público e pelos órgãos de comunicação social, à
informação relativa à atividade do Ministério Público, nos termos da lei”. Para
tanto, a PGR dispõe do Gabinete de Imprensa e Comunicação (GIC), a funcionar no
gabinete do Procurador-Geral da República, e pode
organizar gabinetes de imprensa e de comunicação junto das procuradorias-gerais
regionais, sob a orientação dos procuradores-gerais regionais e a
superintendência do
Procurador-Geral da República – o que não existe.
Se informa dos inquéritos, também o deve fazer,
para arquivamentos, condenações e absolvições.
O
procurador Adão Carvalho, líder do SMMP, defende que, prevendo-se que um
inquérito chegará ao conhecimento público, até pela sua conexão ou origem em
outro inquérito que não está já sob segredo de Justiça e está acessível aos
sujeitos processuais, envolvendo pessoas com especiais responsabilidades
públicas, como os titulares de cargos políticos, a PGR deve informar os
cidadãos do do inquérito, de modo objetivo e sucinto, designadamente
identificando o crime ou crimes em
investigação, o estado e o ou os visados nela. Isso não
aconteceu em relação ao PM.
Porém,
Adão Carvalho assume que “deveria existir é uma
melhor capacidade de comunicação no que tange a esclarecer os cidadãos sobre os
momentos do processo, o seu âmbito e finalidade, para melhor compreensão dos
cidadãos e para que possam filtrar um conjunto de informações falsas, inverídicas
ou inexatas com que são bombardeados nas redes sociais e na comunicação
social”. E sustenta que a comunicação do MP com os cidadãos tem e deve
melhorar, mas sem esquecer que, no processo penal, o MP “não é uma parte, mas
uma verdadeira magistratura”.
Já Rui
Costa Pereira, advogado da MFA Legal, assume-se crítico da forma como o MP
exerce as suas atribuições em matéria de informação sobre a sua atividade,
particularmente no processo criminal. “Do oito passou para o oitenta e
a tendência é para piorar.”
As
regras que regem o dever de comunicar e de informar do MP não mudaram tanto ao
longo dos anos. E ditam que o MP tem o dever de informar em caso de necessidade
de restabelecimento da verdade. Isso pressupõe que aos
comunicados da PGR antecedam notícias ou informações públicas sobre os
processos, não o inverso. Ao seguir a prática de informar
os cidadãos antes dos órgãos de comunicação social, a PGR funciona como agência
noticiosa e não como magistratura. “A Operação Influencer é talvez o exemplo
mais infeliz desta prática errada”, adianta Rui Costa Pereira, que pensa não
ter a PGR vontade em
efetivamente informar. “Através dos
comunicados, a PGR informa o que quer, quando quer e como quer. Sem ‘dar a
cara’. Sem responder às perguntas e interrogações que esses comunicados
levantam. Levando ao público a sua verdade, não necessariamente sinónima da
verdade”, sustenta.
Alexandra
Mota Gomes, sócia da Antas da Cunha, na área de Criminal, Contraordenacional e
Compliance, defende que “a nota para a comunicação
social relativa à Operação Influencer seguiu o padrão normalmente utilizado
pelo Gabinete de Imprensa”. E acrescenta: “Contudo, ao
divulgar a invocação por suspeitos do nome e da autoridade do primeiro-ministro
e da sua intervenção no contexto da Operação Influencer, é legítimo que se
questione a forma e o conteúdo do comunicado, dadas as inevitáveis
consequências políticas daí decorrentes, bem como a ausência de qualquer dever
de divulgação dessa informação pelo Ministério Público”.
Referindo
que a forma como o MP comunica “não se encontra prevista no respetivo Estatuto”,
a advogada frisa que, nesta medida, “a PGR não se encontra impedida de realizar
conferências de imprensa”. Ao invés dos países onde a prática é comum em
investigações mediáticas, em Portugal a opção da PGR recai sobre os comunicados
do GIC. Porém, ressalva: “As conferências de impressa implicariam sempre um foco direto de
atenção e, consequentemente, uma maior mediatização do processo, o que
conduziria ao aumento da pressão da opinião pública sobre
as autoridades envolvidas, o que manifestamente se pretendeu evitar através da
opção da PGR pelas notas para a comunicação social.”
Assim,
quatro dias após o comunicado de 7 de novembro, o GIC do MP publicou um
esclarecimento, que não seria necessário, se o comunicado tivesse sido claro. É o que diz Miguel Pereira Coutinho,
advogado da Cuatrecasas, defendendo que, o MP “deve repensar a sua
política de comunicação”, para que “a comunidade escrutine a
sua atuação em cada processo”, e para que “não se gerem dúvidas quanto à forma
como as investigações são conduzidas”.
Defende
a ideia da designação de um porta-voz
para dialogar com a comunicação social, sobretudo quando estão em
causa processos de elevado eco público, e para dar explicações quanto
a questões processuais e para fazer pedagogia sobre o funcionamento da justiça
penal e as suas várias fases. Assim, evitar-se-ia que se gerassem erros na
comunicação social.
Sobre
a realização de conferências de imprensa pela PGR, o advogado entende que, pelo
menos, quando ocorram grandes operações de buscas ou detenções em larga escala,
em processos de elevado interesse público, se justificaria essa prestação de esclarecimentos por parte do MP, em vez de transferir
esse ónus para a Polícia Judiciária (PJ). Além disso, pelo
menos, no início do mandato e no seu fim, a PGR deveria prestar contas na AR,
relativamente à sua atividade de orientação do MP e de exercício da ação penal,
independentemente de para tal ser chamada.
***
Criticar o
MP não é eliminá-lo ou diminuí-lo (nem dizer que todos os procuradores agem sempre
mal), mas remetê-lo para o seu enquadramento constitucional, reforçar a separação
dos poderes, a cooperação institucional e respeitar os detentores de cargos
soberania. Autonomia não é independência e implica a subordinação hierárquica e
a prestação de contas.
2023.12.16 – Louro de Carvalho
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